- Demorei mais tempo do que é habitual a reagir, por escrito, à trágica morte do antigo líder líbio, Muhamar Gadhafi, às mãos dos seus captores.
- Quer a derrota militar dos homens de Gadhafi, quer a sua morte eram desfechos perfeitamente previsíveis, dados os meios bélicos em presença, também por causa do contexto político em que o conflito se circunscreveu – com as forças da NATO a usarem tecnologia de último grito – e, sobretudo, pelo ódio que ia crescendo entre os líbios, à medida que a guerra se tornava mais cruel. Mesmo assim, causou-me comoção a forma bárbara como os captores do antigo líder líbio o trataram. Senti profunda repulsa ao vê-los violarem princípios éticos que faço questão de manter intactos, de preservar.
- Na análise do conflito que decorreu na Líbia há, pois, que separar as águas: uma coisa é apoiar inequivocamente o fim a um regime despótico, outra coisa é dar respaldo ao modo selvagem como os vencedores da guerra concluíram o processo. Eles deram um tratamento inqualificável ao antigo líder, mesmo depois de ele já não oferecer qualquer perigo – Gadhafi já estava rendido.
- Mesmo sabendo, de antemão, que Gadhafi e os seus homens não teriam também qualquer relutância em assassinar os seus adversários, se os derrotassem – foi essa a promessa, mais ou menos clara, que Gadhafi e um dos seus filhos fizeram publicamente – não posso, todavia, deixar de condenar o tratamento desumano que lhe foi dado. É nesses momentos que se avalia devidamente a qualidade das pessoas: no modo como tratam os derrotados.
- As imagens que vi na televisão, depois retomadas pelos jornais, abalaram os meus suportes éticos e morais, mexeram muito profundamente no meu estado de alma. Os assassinos do Coronel Gadhafi mereciam que gritássemos bem alto junto aos ouvidos: “Não foi isso o que combinámos!”; “Não deve ser esse o comportamento de homens que afirmam lutar pela justiça, paz e bem-estar para o seu povo!”.
- Quando lutavam em desvantagem contra as forças bem armadas e organizadas do Coronel Gadhafi, os rebeldes foram ganhando imagem de combatentes “quixotescos”, gente apostada em substituir uma ditadura feroz por uma democracia. Surgiam aos olhos do mundo como defensores dos direitos humanos. Porém, ao cometerem o crime repugnante que todos nós vimos, perderam de imediato pelo menos parte do capital afectivo que haviam granjeado. Há, pois, agora, razão bastante para nos interrogarmos sobre o que se passará nos próximos tempos.
- Há muito venho dizendo que os conflitos não se devem prolongar por muito tempo. E, sobretudo, que se deve procurar limitar a violência. Quando não obedecem a esses dois critérios, o espaço passa a ser ocupado fundamentalmente por gente inconveniente, muitos deles com passados sombrios ou obscuros. São esses homens e mulheres que aproveitam a oportunidade para dar livre curso aos seus instintos mais baixos. Nós ainda temos a memória viva da nossa própria história recente…
- É necessário, pois, que os políticos saibam definir devidamente os limites a que se pode levar os conflitos. Se extravasadas as fronteiras, os políticos sujeitam-se a perder o controlo. Por vezes, tornam-se eles próprios as vítimas das acções desses malfeitores. É impossível agir de um modo “civilizado” – se é que as guerras têm mesmo alguma coisa de civilizado…
- Não interessa agora abordar a dimensão política do conflito líbio. Por diversas vezes me exprimi a respeito das questões de ordem política nesse conflito. Daí que não faça qualquer sentido subsistirem dúvidas quanto ao que eu penso sobre as ditaduras e, em particular, sobre a que teve como protagonista o Coronel Muhamar Gadhafi. Vale a pena, neste momento, tão-somente, realçar a vertente ética e moral, no pressuposto de que os vencedores da guerra se tornaram ética e moralmente derrotados, ao matizarem a sua vitória no terreno militar com as cores de uma verdadeira orgia típica da barbárie.
- É evidente que a dose de simpatia que os antigos rebeldes granjearam resultou também, em grande medida, do modo como nos chegaram as imagens e os relatos vindos do teatro da luta: apresentavam uma única parte da contenda, pois, os órgãos de comunicação social, em especial as televisões, estiveram praticamente só desse lado, fazendo-nos, assim, perder a visão do conjunto. Quase nada chegou, vindo do outro lado, de onde poderiam ter havido também não poucos episódios de sofrimento e, igualmente, de algum estoicismo.
- É bom que se perceba que, de modo algum, estou a pretender glorificar a tirania. Estou, tão-somente, a reconhecer que, nas guerras, há sempre razões que a própria razão desconhece… Por exemplo, factores de agregação primária, com a proximidade de sangue, a identidade étnica, afinidades de ordem cultural ou religiosa, podem motivar determinadas tomadas de posição. Contudo, e muitas vezes, resume-se o conflito a uma simples partilha de ideais políticos e ideológicos.
- Numa determinada fase da luta, os ecrãs de televisão foram exibindo imagens de concentrações e passeatas de apoiantes de Gadhafi, quando a capital, Tripoli, ainda se achava sob seu controlo. Dava-se-lhes um crédito quase nulo, dado que os apoiantes de Gadhafi eram já a figura do “bichinho feio”... É sempre assim: ou se opta pelo “lado bom”, ou se prefere o “lado mau”. Raramente se fica neutro.
- As guerras alimentam-se muito da falta de informação e, por vezes, de uma elevada dose de desinformação. Daí a importância da comunicação social na moldagem da opinião pública e na conformação das nossas mentes. Somos, afinal, e em grande medida, um pouco o produto da mídia.
- Dois ou três dias depois de Gadhafi ter sido assassinado, e em conversa com amigos, alguém disse que, felizmente, os angolanos não eram como os líbios… Que nós éramos “essencialmente pacíficos”. Mas, será que faz sentido colocar as coisas nestes termos? Haverá mesmo “povos bons” e “povos maus”?
- Eu penso que os povos não são “maus” nem são “bons”. Os povos tornam-se, sim, essencialmente, um fruto das circunstâncias. E é nessas circunstâncias que eles são capazes dos praticar actos de grande bravura e abnegação, ou mesmo se tornam capazes de cometer os actos mais bárbaros, como aqueles que alguns líbios protagonizaram, e que nós, aqui mesmo entre nós, temos assistido.
- Por isso, recomendo que, nas nossas reflexões, tenhamos sempre presente a recente tragédia líbia… Nunca nos esqueçamos, também, do velho ditado que diz que “não só do pão vive o homem”, pois há dimensões imateriais da vida que, em determinadas circunstâncias, ganham relevo e impulsionam as pessoas para a violência. É isso o que os ditadores têm enorme dificuldade em perceber.
- Os ditadores desvalorizam em absoluto o valor da liberdade, e depois ficam estupefactos quando se confrontam com levantamentos populares. Ao ponto de Gadhafi ter chegado ao ridículo de dizer que o povo o amava, quando pelo menos uma boa parte do seu povo já o enfrentava de arma na mão… Gadhafi limitou-se a ver algumas árvores. Gadhafi deixou de perceber que naquela local já havia uma vasta floresta, e até muito densa.