terça-feira, 29 de dezembro de 2009

PAUL SAMUELSON

1. Volta e meia, um amigo meu que não é economista coloca-me questões interessantes sobre economia. Há dias, por exemplo, ele desafiou-me a escrever um texto de homenagem ao Professor Paul Samuelson, recentemente falecido, aos 94 anos de idade. Para quem não sabe, o Professor Paul Samuelson foi dos mais brilhantes economistas do século XX. Foi, também, o primeiro norte-americano a ganhar o Prémio Nobel da Economia, em 1970, cuja verdadeira denominação é “Prémio de Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel”.

2. O meu amigo é médico mas, num dos seus devaneios e curiosidades científicas, fez uma curta incursão pelo estudo da economia, já lá vão, seguramente, umas boas dezenas de anos. Nesta vertente, ele é um pouco o espelho da minha geração.

3. Muitos dos meus contemporâneos primaram pelo engajamento social e político, mas outros manifestaram sempre um elevado apego ao conhecimento científico. Houve, também, quem tivesse conseguido associar todas essas vocações. Indiferentes, conheci poucos.

4. O meu amigo Gigi Mendonça, o tal médico de que vos falei, sempre me disse que não se importava nada de ser economista, talvez sociólogo, até mesmo advogado. Inteligência e capacidade de trabalho nunca lhe faltaram. Outro amigo meu, o Manuel Jorge – que é advogado – na nossa juventude, foi de tal modo metediço que até estudava os mesmos livros que nós. Nós que éramos da área das Ciências Exactas. Havia ainda o Vicente, o meu irmão, que trocava voluntariamente o estudo das suas matérias curriculares pela leitura de outros livros, livros de todo o tipo, literatura diversa. Na realidade, éramos todos mais ou menos assim: curiosos e inquietos.

5. De forma alguma eu podia desconsiderar o pedido do meu amigo Gigi Mendonça, já porque ele sempre me disse que tinha dadosos seus passos iniciais no estudo da economia socorrendo-se do mais famoso livro de Paul Samuelson: “Economia: Uma Análise Introdutória”.

6. Há que fazer justiça: Paul Samuelson foi um pouco o Professor de todos nós – nós que estudámos pelos seus livros. Os livros de Paul Samuelson foram sucessivamente actualizados, fazendo parte das nossas bibliotecas. De um modo sistemático e organizado, Samuelson contribuiu para que entendêssemos melhor os meandros da ciência económica.

7. Eu digo sempre aos meus alunos que, sem o contributo da matemática, a Economia não passaria de um discurso teórico, e ficaria ainda ao nível da Economia Política. Ou então, manter-se-ia (já o fora no passado) como um ramo auxiliar do Direito. Foi a matemática que deu, pois, estrutura, consistência e autonomia à ciência económica.

8. Paul Samuelson foi dos que mais contribuiu para essa estruturação, consistência e independência. A ele se devem trabalhos de aplicação rigorosa da análise matemática ao equilíbrio entre preços, oferta e procura. Com ele, e graças à matemática, foi possível a elaboração dos modelos económicos, de que hoje nos socorremos para estudar os fenómenos, e depois fazer previsões.

9. Paul Samuelson foi consequente até ao final dos seus dias, mantendo-se fiel ao pensamento keynesiano. Para si, por exemplo, a saída da recente crise económica passava pelo aumento da despesa do Estado, pelo corte nos impostos e pela manutenção de taxas de juro bastante reduzidas, muito próximas de zero. Paul Samuelson nunca acreditou na infalibilidade dos mercados, ou na sua capacidade ilimitada de gerar empregos. Achou que, sobretudo em momentos de crise, o papel do Estado era fundamental.

10. Paul Samuelson licenciou-se na Universidade de Chicago, onde conheceu o também famoso economista Milton Friedman. Mas não se deixou seduzir pelas ideias de Milton Friedman. Figuram nos anais da história as discussões intelectuais entre estes dois economistas, que se tornaram uma das marcas do século XX. Ele seguiu, sim, os ensinamentos de um outro economista, Alvin Hansen, este também um distinto keynesiano. Depois, partiu para Harvard, fixando-se, porém, definitivamente, no MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts).

11. A sua tese de doutoramento, publicada em livro com o título “Fundamentos da Análise Económica”, datada de 1947, revolucionou o pensamento económico e foi considerada a melhor tese de Doutoramento da Universidade de Harvard sobre economia. O livro mais lido de Paul Samuelson, “Economia: Uma Análise Introdutória” foi editado 19 vezes, em 40 línguas. Actualizou-as sempre, inserindo novas questões e exemplos mais recentes. Publicaram-se 4 milhões de exemplares. Durante vários anos, fiz questão de adquirir as sucessivas edições desse livro. Nos últimos 4 ou cinco anos, perdi-lhe o rasto.

12. Paul Samuelson foi Professor de muitos laureados com o Prémio Nobel de Economia, como, por exemplo, Paul Krugman. Foi também Professor do actual líder da Reserva Federal norte-americana, Ben Bernanke que, ao tomar conhecimento da sua morte, declarou: “Paul Samuelson foi tanto um pioneiro quanto um teórico económico prolífico, e um dos maiores professores que a economia já conheceu”. E acrescentou: “Ele é um titã da economia”.

NÃO SOMOS NADA ESPECIAIS

1. Decorreu mais um ano do calendário, e este é o período dos balanços. Far-se-ão balanços para todos os gostos, e a todos os níveis. É o típico remexer no fundo do baú – um exercício que não é nada fácil, e que vem muitas vezes carregado de algum subjectivismo.

2. Para início de conversa, é preciso dizer que, em 2008, o nosso país era já a 7ª economia africana, a 2ª da SADC (Comunidade dos Países da África Austral), a 1ª da CEEAC (Comunidade Económica dos Estados da África Central). Em termos africanos, somos, pois, já um país a ter em conta. Tomando como referência apenas a nossa inserção nessas duas sub-regiões, fica mais fácil reconhecer o nosso peso específico.

3. Mas, não podemos perder de vista o seguinte: a nossa relevância económica no continente africano, e nas duas sub-regiões, não se traduziu ainda num grande fluxo de comércio no seu interior, já porque temos relações comerciais privilegiadas com países de outros continentes, o americano, o europeu, o asiático, com excepção para algumas trocas comerciais que realizamos com a África do Sul. Tudo o resto é paisagem. Infelizmente, esse é o modelo da maioria dos países africanos: não trocam quase nada entre si.

4. Como somos muito dependentes da produção mineral, fomos mais uma das vítimas da crise económica que se instalou no mundo, crise essa que se acentuou em meados do ano de 2008. As nossas autoridades tardaram em reconhecer a nossa vulnerabilidade, e talvez isso tenha atrasado a tomada de medidas para reduzir os seus danos.

5. Ainda em 2009, e durante algum tempo, ouviram-se entre nós discursos demasiado optimistas, muitas vezes, roçando mesmo a sobranceria e a arrogância, que é o fruto da cultura que se instalou entre nós. Quiseram fazer-nos crer que éramos “especiais”, que os males que atacam os outros nos deixavam imunes, passavam ao nosso lado… Depois, sobreveio o susto. Começámos a tomar consciência da necessidade de diversificarmos a nossa economia. Mas, creio que ainda estamos no campo das intenções.

6. Activar (ou reactivar) determinados sectores económicos é uma tarefa quase hercúlea. Na maioria dos casos, exige a mobilização de volumosos investimentos. Para que eles se realizem, há que ter disponíveis recursos de todo o tipo: materiais, financeiros e humanos. Não basta ter vontade. Alguns desses quesitos escapam ao nosso controlo, são mais de âmbito internacional.

7. Para o ano que agora acaba, fizeram-se múltiplas previsões. Algumas instituições internacionais disseram que Angola conheceria uma profunda recessão económica, com o nosso PIB a experimentar taxas de crescimento negativas. Também houve quem tivesse apontado para um crescimento nulo. Mas, o nosso governo resistiu como pôde a esse pessimismo que vinha de fora. Assim, da boca do Ministro da Economia, ouviram-se previsões positivas, se bem que muito distantes dos valores atingidos nos últimos 6 anos. A previsão mais optimista que se lhe ouviu foi a de que cresceríamos a uma taxa nunca inferior à do nosso crescimento demográfico.

8. Uma instituição científica nacional foi ainda mais arrojada, avançando com uma perspectiva de crescimento na ordem dos 6%. Por fim, e já na recta final do ano, veio de novo à liça o Ministro da Economia, mas com discurso oficial mais moderado. Para o Ministro Manuel Nunes Júnior, em 2009, teremos um crescimento de somente 1,3%, percentagem que fica claramente abaixo do crescimento demográfico. Quer então dizer que, em termos per capita, piorámos.

9. O remate final foi dado pelo Presidente da República, aquando do 6º Congresso do MPLA. Nesse conclave, o PR afirmou que mais de 60% dos angolanos vivem abaixo do limiar da pobreza, uma pobreza que, seguramente, se acentuou com o mau desempenho económico do ano que está a findar. O Presidente da República falou também, entre outras questões, das degradantes condições sanitárias, dos elevados níveis de analfabetismo, da baixa escolaridade geral da nossa população. Se mantivermos este perfil, não iremos lá, não chegaremos ao desenvolvimento. Pelo menos, nos próximos tempos.

10. Os relatórios internacionais, e também alguns estudos realizados internamente, vêm demonstrando a enorme distância que existe entre a riqueza dos mais ricos e a pobreza dos mais pobres. Este “gap”, denominado na linguagem económica de “Índice de Gini”, não deixa dúvidas: somos um país que cresce cada vez mais de um modo assimétrico, um país onde a riqueza e o rendimento estão a ser muito mal distribuídos entre a população.

11. Eu penso que essa má distribuição decorre da lógica com que funciona o governo, e que se inspira na ideia do partido político que o suporta. Isto é, a prioridade é fazer ricos e não para combater a pobreza, uma prática económica que tem respaldo no duvidoso desígnio político de assim se garantir melhor a defesa do interesse nacional.

12. Ainda tenho dúvidas sobre a validade absoluta da premissa de que os ricos são o garante da soberania nacional. Para mim, continua válida a asserção de que o capital não tem pátria, de que ele se instala ali onde ele é mais lucrativo. Torna-se, assim, fácil compreender o porquê de tão volumosos investimentos de americanos, por exemplo, na China ou no Japão, ou o fluxo de capitais russos para a Europa. Isso também ajuda-nos a melhor perceber o que está por detrás das crescentes parcerias entre os nossos neo-capitalistas e o capital estrangeiro, a todos os níveis.

13. O interesse nacional está, sim, mais protegido quando temos um maior nível de satisfação geral; quando há maior equilíbrio entre as regiões; quando possuímos uma classe média de base larga; quando a elite pensante é dinâmica e crescentemente autónoma; quando o país possui estruturas governativas sólidas e democraticamente organizadas. É todo esse conjunto de circunstâncias que gera elites económicas patrióticas. Elas criam-se nessa prática e nessa cultura.

14. Não posso deixar de assinalar o facto de, finalmente, o nosso governo ter chegado a um entendimento com o Fundo Monetário Internacional. Um entendimento que estabeleceu a cedência de um empréstimo de usd 1.4 mil milhões, com vista a equilibrar a nossa fragilizada Balança de Pagamentos.

15. Logo de seguida, e talvez movidos por um falso pudor, alguns governantes saíram à rua para dizer que o nosso governo não tinha feito concessões ao FMI. Veio depois a constatar-se que pelo menos algumas das exigências do FMI tinham sido contempladas. A prová-lo está o acordo para a colocação em Angola de dois funcionários superiores dessa proveniência, um junto do Ministério das Finanças, outro no BNA. Isso inspira a seguinte questão: Então, dá ainda para dizer que somos “especiais”? Aconselho, pois, que se dê um basta à cultura da sobranceria e da arrogância!

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

OS DEMOCRATAS DE PACOTILHA

1. No dia 7 deste mês, ouvi um discurso que colocava pontos de interrogação sobre a seriedade e até mesmo a legitimidade de certas organizações da sociedade civil. No discurso, ficou implícito que se tratava de organizações geralmente não comprometidas com o regime. Prevejo, pois, dentro em breve, o desencadear de uma nova cruzada contra tais organizações, uma prática que já é habitual. Oralmente, ou através de artigos de opinião, os “guardiães do templo”, irão, pois, expelir verdadeiras labaredas…

2. Seguramente, os propagandistas de serviço estarão já a esquadrinhar, em busca das melhores formas para manchar a imagem das organizações, acusando-as das mais abjectas mentiras: por exemplo, de serem desestabilizadoras da acção do governo, ou até mesmo de conspirarem para servir interesses estranhos ao povo angolano. É assim que o aparelho funciona…

3. Estranhamente, o discurso traçou também um compromisso com os princípios e os valores da esquerda democrática.

4. Por norma, a esquerda democrática tem nos movimentos sociais alguns dos seus principais aliados. Aqui entre nós, os movimentos sociais são tidos como autênticos adversários; não poucas vezes, como os verdadeiros inimigos. Há, pois, uma forte contradição entre esse discurso teórico e a prática política.

5. Integrar a chamada esquerda democrática implica um forte compromisso com determinados valores e princípios. Não basta aceitar formalmente a pluralidade partidária, é também necessário agir no sentido de que essa pluralidade seja viva e dinâmica.

6. Os democratas dão espaço e alento à pluralidade partidária. Para os democratas de esquerda, é também essencial que os cidadãos se organizem, se associem em função de interesses específicos. Os democratas de esquerda não impõem amarras nem impedem a acção dos movimentos sociais.


7. É com enorme estranheza que vejo os nossos “novos” democratas de esquerda terem entre os seus “amigos do peito” precisamente partidos com um longo historial antidemocrático, partidos que odeiam a democracia, asfixiando as liberdades individuais e colectivas.

8. Ser adepto sincero da esquerda democrática implica ser adverso aos totalitarismos e às ditaduras. Ser da esquerda democrática é ser solidário com os defensores dos direitos humanos, não é persegui-los. Ser democrata de esquerda é ser contra os regimes que violam sistematicamente os direitos mais essenciais da pessoa humana, contra os que pisoteiam o princípio sagrado da liberdade de expressão.

9. A esquerda democrática é a guardiã universal dos valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade. Ela está sempre aberta à livre iniciativa, mas, também, à inovação e ao progresso. A esquerda democrática não é rancorosa.

10. Um democrata de esquerda não faz tábua rasa da história, ele assume o seu percurso e respeita a memória dos seus teóricos e dos seus artífices. Não é prática da esquerda democrática tentar “apagar” os nomes daqueles que contribuíram para a sua estruturação e para o seu desenvolvimento. Por isso, na esquerda democrática vê-se uma vasta galeria de pensadores. Ela não se coaduna com a cultura do pensamento único, nem com o culto da personalidade. Não se tem apego ao Chefe, porque, para os democratas de esquerda, os chefes são transitórios, e revezam-se à medida que o tempo passa.

11. Os líderes dos partidos democráticos sujeitam-se ao contraditório e aceitam ser questionados. Eles não são eternos, nem se eternizam no poder. Muito menos se socorrem de métodos capciosos para distrair o povo… A demagogia e o populismo têm limites.

12. A esquerda democrática tem um sólido apego ao princípio da paz, e procura alargar o espaço das liberdades. Tem respeito pela diferença e pela singularidade de cada um.

13. Hoje, muitos dos que abusivamente se arrogam à condição de integrantes da esquerda democrática são precisamente os que, ainda há bem pouco tempo, se auto-proclamavam arautos da ditadura, fosse ela “ditadura do proletariado”, fosse a dita “ditadura democrática revolucionária”.

14. Foram os agora democratas que nos impuseram um regime de partido único. Aí prevalecia a exclusão, era fortemente repressor. Foram os neo-democratas que encheram as prisões de prisioneiros de consciência, eliminando do mapa os que se lhes opunham. Por isso, condenaram o país a um medo atávico que emudece muitas vozes, tementes ainda de um regresso ao passado de terror.

15. Muitos dos que hoje se reclamam da esquerda democrática agem, por vezes, como agiria um qualquer “cabeça rapada”: para nos distraírem do essencial, exaltam um patriotismo de algibeira, o que redunda, depois, no estímulo à xenofobia.

16. São esses os nossos “democratas de pacotilha” que descuram os interesses dos sectores mais frágeis da nossa sociedade. Reprimem violentamente e despojam os pobres dos seus parcos bens. Em nome duma suposta modernização da sociedade, os nossos “democratas de pacotilha” desalojam os pobres das suas já míseras habitações, sem cuidarem antes de criar condições para os acolher com algum conforto e dignidade. São eles também que confundem o interesse nacional com o enriquecimento ilícito.

17. O espaço dos democratas de esquerda é um espaço ideológico, político e cultural que tem história. Ele é dos principais responsáveis pelo actual formato da humanidade. O espaço dos nossos “democratas de pacotilha” é um espaço defunto que a história rejeitou. O espaço privilegiado dos nossos “democratas de pacotilha” foi deitado para o caixote do lixo.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O PASSEIO DOS DITADORES

1. Encontrava-me na Costa do Marfim – a participar numa acção de formação promovida pelo Banco Africano de Desenvolvimento – quando o Coronel Lansana Conte tomou o poder na Guiné-Conacry. São já passados 25 anos. Mesmo assim, e com tão longo distanciamento, ainda me recordo da estupefacção que se assolou de mim, quando soube da queda do regime do Presidente Ahmed Sékou Touré, rendido por uma Junta Militar. Na altura, colocava-se ainda a hipótese de ser substituído por um membro da sua família, que estava na forja.

2. Para mim, os regimes militares são sempre uma grande incógnita, mesmo que comecem por prometer mundos e fundos… Fica sempre tudo em aberto. Não há nada que não possa acontecer, até mesmo a instalação de uma ditadura sanguinária e depredadora…

3. Juntamente com Kwame Nkrumah, do Ghana, Leopold Senghor, do Senegal, Ahmed Ben Bella, da Argélia, Julius Nyerere, da Tanzânia, Patrice Lumumba, do Congo Kinshasa, nos finais dos anos da década de 1950, início da década de 1960, Ahmed Sékou Touré ajudou a tingir com cores da esperança o mapa das novas nações africanas independentes. De certo modo, Sékou Touré representava a irreverência de uma nação emergente, confrontado que estava com as pretensões hegemónicas da antiga potência colonial.

4. Para muitos, a figura de Ahmed Sékou Touré tinha um sinal contrário à do então Presidente da Costa do Marfim, Félix Houphouet-Boigny. Houphouet-Boigny era tido como muito subserviente, era visto como a expressão acabada de um certo enfeudamento aos desígnios neo-coloniais franceses. Mas, a esperança que se depositou em Ahmed Sékou Touré mostrou-se um logro, pois, fez questão de criar – e alimentar até ao fim dos seus dias – um regime despótico, que empobreceu ainda mais o seu país, marcando-lhe o destino até hoje.

5. Proveniente do movimento sindical, Sékou Touré poderia ter compreendido e assimilado melhor a cultura do respeito pela diferença e da pluralidade de ideias. Mas, Sékou Touré tornou-se o protagonista de um dos regimes africanos mais implacáveis para com os seus adversários. Durante o seu longo consolado de 27 anos, eliminou-os. Inclusive, mandou matar o seu compatriota Diallo Telli, um diplomata respeitado que se tornou no primeiro Secretário-geral da Organização de Unidade Africana, a OUA.

6. Depois da morte de Sékou Touré, o novo regime de Lansana Conte expôs aos olhos da imprensa e do mundo o campo de concentração de Boiro. Era ali onde os seus esbirros torturavam e assassinavam todos quantos se mostrassem inconvenientes. Os direitos humanos, assim como o direito à diferença não tinham, pois, lugar na pauta dos valores e dos princípios políticos de Ahmed Sékou Touré.

7. Lansana Conte foi outra fraude política. Instalou-se no poder durante 24 anos, e cometeu as mesmas tropelias que o seu antecessor. Reprimiu com inusitada violência os que se lhe opunham, inclusive, muitos dos que o ajudaram na ascensão ao poder. Qualitativamente, os dois eram iguais.

8. Quando pegou a moda da implantação de sistemas multipartidários em África, tal como a maioria dos seus homólogos, Lansana Conte também organizou eleições e ganhou-as sempre. Ganhou as eleições de 1993, também as do ano de 1998, bem como as de 2003. Nestas últimas, teve expressivos 96% dos votos.

9. Infelizmente, esta é a matriz política preferida das lideranças africanas: quem está no poder, invariavelmente, ganha as eleições. De seguida, vêm os aplausos da comunidade internacional, a começar pelas instituições africanas. Afinal, o que interessa é a simples aparência, a legitimação formal dos poderes instituídos. É com quem está no poder que interessa continuar a negociar…

10. As eleições em África, realizadas na maioria das vezes com o suporte financeiro da comunidade internacional, estão a tornar-se um mero teatro, algo cómico, mas pode descambar numa tragédia… As eleições africanas, tidas como “geralmente livres e justas”, estão a ditar o fim dos sonhos democráticos ainda alimentados por muitos. Essas eleições são, afinal, o instrumento apropriado para matar as democracias emergentes. Elas não contribuem para o aprofundamento de regimes democráticos, antes pelo contrário, servem para estreitar o espaço político, para retirar de cena as oposições, até mesmo para as ridicularizar…

11. Como é possível manter activos regimes democráticos, quando os partidos governantes – ou os seus candidatos – recebem votações esmagadoras de 76%, de 82%, de 96%, de 97%? Esta questão deveria merecer uma profunda reflexão entre os políticos, os politólogos, os analistas africanos.

12. Será que os africanos se ajustam melhor ao esquema do pensamento único? Será que os seus líderes governantes são de tal modo esclarecidos e clarividentes que, por artes mágicas, conseguem satisfazer todos os desejos e anseios dos seus povos? E porquê que isso não sucede nos países mais desenvolvidos, onde o nível de satisfação material e espiritual das populações é maior?

13. Tal como aconteceu com Lansana Conte, muito recentemente, o actual Presidente da Guiné-Equatorial, Teodoro Obiang Nguema, venceu as eleições presidenciais com mais de 97% dos votos escrutinados. Será que isto também não quer dizer nada?

14. É bom recordarmos que Obiang Nguema governa o seu país há mais de 30 anos, e que tem imposto o seu regime muito à custa da repressão… Hoje, grande parte da riqueza nacional da Guiné-Equatorial, conseguida pelo “milagre do petróleo”, está nas mãos da sua família.

15. O açambarcamento da riqueza de todos por um punhado de indivíduos ligados umbilicalmente aos poderes instituídos, está a tornar-se uma constante. Esses títeres dominam a economia, dominam os meios de comunicação social, influenciam todas as decisões. Muitas vezes, até as decisões… É lá, é aqui, é em todos os nossos países. Este é um polvo que se alastra. Esta é uma gangrena que destrói as nossas sociedades.

16. Depois da morte de Lansana Conte – vai para perto de 1 ano – sucedeu-lhe, também por golpe militar, o Capitão Moussa Dadis Camara. Como sempre, este prometeu restaurar a democracia, organizar eleições livres e transparentes, e, depois, regressar aos quartéis. Acreditou nele apenas quem é ingénuo, ou quem não conhece a recente história africana. Em 1 ano, Moussa Dadis Camara adaptou-se ao poder, tomou-lhe o gosto… Nos últimos tempos, virou o disco e passou a dizer que iria concorrer às eleições presidenciais. Naturalmente, concorrer para as ganhar, e com a percentagem a que agora a África nos habituou. É isso que nos envergonha…

17. A população da Guiné-Conacry saiu à rua e, como habitual, não se respeitou o direito á liberdade de expressão: as forças militares dispararam indiscriminadamente, matando perto de duas centenas de populares, num acto que causou indignação nacional e internacional.

18. A Guiné-Conacry e outros países africanos continuam numa encruzilhada: ainda estão em busca de um rumo; vivem um processo de auto-flagelação; manifestam completa inadaptação aos valores e aos princípios democráticos. O resultado mais recente foi o atentado agora sofrido por Moussa Dadis Camara. Um subordinado tentou assassiná-lo, possivelmente para ocupar o seu lugar e tentar ele também eternizar-se no poder.

19. A eternização no poder é uma triste vocação dos líderes em África. É, também, a traição ao sonho de uma África livre de ditadores.

20. Os ditadores só largam o poder quando morrem. Umas vezes, eles morrem de causas naturais. Outras vezes, eles são removidos à força por outros candidatos a ditadores, que os matam. É a África que definha, e fica-se com a ilusão de que alguns países se desenvolvem, apenas porque possuem riquezas naturais no seu subsolo.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A CIMEIRA DO CLIMA

1. Aqui vai um dado revelador: as economias ditas emergentes possuem já uma taxa de crescimento do consumo de energia maior que a dos países desenvolvidos. Alto aí! Eu não disse que as economias emergentes consomem mais energia que os países desenvolvidos. O que eu disse foi que a taxa de crescimento do consumo energético é mais veloz no primeiro que no segundo grupo de países. Confundir esta leitura pode acarretar interpretações erróneas, e pode até mesmo confundir o fenómeno político e económico mundial.

2. Aqui vai mais um dado: a grande aceleração do consumo de energia verificou-se, sobretudo, em alguns países asiáticos – de que podemos destacar a China e a Índia – mas, também, em países da América Latina, com um especial realce para o Brasil, a Argentina e o México.

3. O aumento do consumo de energia é um indicador que pressagia o crescimento da economia. Se associado ao aumento de outros consumos como, por exemplo, de aço e de algumas outras matérias-primas, então, pode indiciar um processo de industrialização acelerado. Mas, há também o reverso da medalha, ou seja, determinados consumos energéticos podem ter implicações negativas sobre a preservação do ambiente, concomitantemente, sobre o futuro do nosso planeta.

4. Daí que se veja hoje como determinante a presença de certos países, – os ditos emergentes – na Cimeira das Nações Unidas que terá lugar em Copenhaga, na Dinamarca, dentro de dias. Esta Cimeira, já justamente denominada “Cimeira do Clima”, centrar-se-á exclusivamente sobre as medidas a serem tomadas para que se reduzam as emissões de gases poluentes causadores do chamado Efeito Estufa.

5. O tema do ambiente anima numerosos debates, quer pelas suas implicações políticas, quer pelas económicas, quer mesmo até no que diz respeito aos equilíbrios entre o homem e o meio envolvente.

6. Os ambientalistas – que são aqueles que possuem uma melhor percepção sobre o fenómeno e as suas implicações – estão a dar tudo por tudo, para influenciarem as decisões. O mesmo sucede por parte de alguns lobbies económicos, mais interessados geralmente nos seus resultados imediatos, nem sempre tendo em devida conta a perspectiva do longo prazo, a sustentabilidade do crescimento económico. Mas compete aos políticos casar e coordenar esses interesses contraditórios.


7. Estamos, pois, a poucos dias da abertura da Cimeira de Copenhaga, e alguns países individualmente, ou mesmo até blocos de países, vão proferindo declarações que fazem alimentar expectativas positivas sobre os resultados. Por exemplo, a União Europeia já disse que irá avançar com uma proposta de redução das suas emissões poluentes, até ao ano de 2020, na ordem dos 20% – e pode, inclusive, chegar aos 30%, caso a reunião da Dinamarca aposte num compromisso ambicioso; a Noruega foi ainda mais longe, ao propor uma taxa de redução próxima dos 40%; por sua vez, o Japão assume uma taxa de redução de 25%.


8. Antes, instalou-se o receio de um fracasso em Copenhaga, dadas as dificuldades reconhecidas de os Estados Unidos da América estarem, ou não, em condições de assumir um compromisso quantitativo, pelos seus dilemas internos. Outra grande dúvida advinha da vontade da China, actualmente o maior poluidor mundial, comprometer-se com uma qualquer taxa de redução de emissões poluentes que, eventualmente, pusesse em causa o seu espectacular crescimento económico.

9. Porém, na semana que findou, surgiram declarações animadoras. Os Estados Unidos da América deram a conhecer que avançarão com a taxa de redução de 17%, afinal, a meta que foi aprovada por uma das duas Câmaras do Congresso norte-americano, a Câmara dos Representantes, contrariando, porém, os 20% aceites pelo Senado. Na sequência de todas essas declarações, as autoridades chinesas surpreenderam o mundo ao anunciarem a disposição de reduzirem as suas emissões numa percentagem de entre 40 a 45%. Neste clima de optimismo, abrem-se agora boas perspectivas para a cimeira mundial, uma etapa crucial para a definição do futuro da humanidade e do nosso planeta.

10. São, pois, números para todos os gostos e para todos os interesses. Mas, há que ter atenção sobre o que eles eventualmente possam esconder. Por exemplo, a taxa apresentada pela União Europeia tem como referência o ano de 1990, enquanto que a taxa de redução que foi anunciada pelos EUA tem como referência o ano de 2005. Para quem é leigo, pode parecer que não é nada, mas será de facto uma diferença a não ter em conta?

11. Uma coisa é falar em emissões poluentes do ano de 1990; outra coisa é ter-se como referencial as emitidas 15 anos depois. São taxas distintas, e podem não se equivaler. Mas, essa é uma matéria para os especialistas.

12. Vejo outra diferença na linguagem que se está a usar para se anunciar a vontade de reduzir as emissões. De um modo geral, todos os proponentes falam em gases causadores do Efeito Estufa. Mas, a notícia posta a circular sobre a determinação chinesa reporta somente o dióxido de carbono. É que são vários os gases que provocam o Efeito Estufa: é o dióxido de carbono – tido justamente como o maior causador antropogénico do aquecimento global – mas é também o gás metano, o óxido de azoto, os hidrocarbonetos fluorados, os hidrocarbonetos perfluorados, o hexafluoreto de enxofre.

13. A desflorestação é outra prática que também tem grande quota de responsabilidade no aquecimento global. De tal modo que foi objecto de uma cimeira prévia, em Manaus, no Brasil, o estado brasileiro onde se instala grande parte do pulmão do nosso planeta, a floresta da Amazónia. Apela-se igualmente ao contributo dos países da Bacia do Rio Congo, assim como a Indonésia, detentores de vastas florestas.

14. O petróleo é ainda o maior participante na produção de energia – creio que ele se encarrega de 40% da produção total de energia, embora, nos últimos anos, se tenha assistido a uma derivação acentuada para a utilização do gás natural e outros combustíveis, especialmente quando se trata da geração de electricidade. Porém, no que diz respeito aos transportes, o recurso ao petróleo ainda permanece sem um substituto credível à vista. Pelo menos, para os anos que se avizinham.

15. A proposta avançada pela China, de diminuir de entre 40 a 45% das emissões de gás carbónico, até ao ano de 2020, só será factível se aquele país reduzir substancialmente o seu consumo de carvão. É que a China e a Índia possuem reservas incalculáveis deste combustível fóssil, ele que é tido como o que mais dióxido de carbono produz.

16. Para além de grande gerador de electricidade, o carvão tem também outros usos industriais. Os chineses construíram, e ainda continuam a construir, muitas centrais eléctricas que usam carvão. Presentemente, estão também empenhados na construção de inúmeras barragens hidroeléctricas, mesmo até centrais nucleares, e entraram de um modo acelerado na produção de energia proveniente de outras fontes renováveis e não poluidoras. Daí, talvez, a recente tomada de posição que surpreendeu o mundo: o grande poluidor ambiental avançou uma proposta arrojada e de grande impacto mediático. Será uma atitude sincera? Ou um mero jogo propagandístico?

17. Sobre essa e outras matérias, fica ainda muito por dizer. Não tenho tempo, nem me resta espaço, embora eu tenha de sobra uma enorme vontade de continuar a abordar este assunto que é crucial para a nossa sobrevivência, e para a existência do nosso planeta.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

OS QUILOMBOS DE ANGOLA E DO BRASIL

Nos dias 17, 18 e 19 de Setembro, participei no V Encontro Anual da ANDHEP (Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação). Ele teve lugar no Brasil, na cidade de Belém, capital do estado do Pará, e o seu Lema foi “Direitos Humanos: Democracia e Diversidade”. Fizeram-se presentes académicos brasileiros ligados a diversas Universidades, bem como algumas individualidades angolanas e moçambicanas ligadas igualmente a Universidades. Foram debatidas questões fundamentais para o actual momento brasileiro, como: “Política Criminal, Segurança Pública e Direitos Humanos”, “Direitos Humanos e Povos Indígenas”, “Educação para os Direitos Humanos”, “Memória e Justiça de Transição”, “Educação Escolar Indígena”.

Para além da questão Indígena (que ocupou muito espaço do debates), abordou-se ainda a problemática das “Comunidades Remanescentes dos Quilombos”, um tema que, de algum modo, nos remete para a ancestralidade angolana, uma vez que muitos dos povos negros brasileiros provêm de Angola – a própria expressão “Quilombo” tem origem no kimbundo, significando “Povoação”.

No Brasil, falar em “Quilombo”, conduz imediatamente à figura de Zumbi dos Palmares, o líder negro mais consagrado dos que opuseram uma feroz resistência à escravidão nas Américas.

Para nós, angolanos, o mês de Novembro tem um enorme simbolismo: foi no seu décimo primeiro dia que ascendemos à independência. Para os negros brasileiros ou seus descendentes, e também para os activistas dos direitos humanos, o mês de Novembro tem igualmente um grande significado, dado que, no seu vigésimo dia, no ano de 1695, aos 40 anos de idade, morreu Zumbi dos Palmares, depois de mais de 20 anos de resistência às sucessivas incursões de forças militares (portugueses, e até mesmo holandeses), bandeirantes, e mercenários. Zumbi recusou a escravidão a que estavam sujeitos os negros levados para o Brasil, por isso lutou até à exaustão. Zumbi tombou após ter sido traído por um dos seus principais comandantes. Foi preso, degolado e a sua cabeça ficou exposta publicamente, no Recife, como a prova de que, finalmente, se tinha extirpado o “mal”.

Por ironia do destino, precisamente 380 anos depois do sacrifício supremo de Zumbi dos Palmares, o nosso país tornou-se independente, resgatando assim um direito que, de algum modo, se tornou a bandeira Zumbi no continente americano. Zumbi dos Palmares era descendente de angolanos.

“Quilombo” foi a designação por que passaram a ser chamados todos os núcleos habitacionais e comerciais que abrigavam os escravos fugidos das fazendas (engenhos de açúcar). Eram, pois, locais de resistência à escravidão. Muitos deles tornaram-se, porém, também locais de refúgio para índios e brancos pobres, desprovendo, pois, a ideia de um carácter eminentemente rácico desses locais de resistência. Tal é o caso do “Quilombo dos Palmares”, situado na Serra da Barriga, no estado de Pernambuco.

A visão portuguesa da época remetia para a categoria de “Quilombo” apenas os núcleos isolados compostos por “negros fugidos”, isolados dos grandes centros urbanos ou das fazendas. Porém, a antropologia moderna integra hoje nas “Comunidades Remanescentes de Quilombo” muitos agrupamentos humanos que se constituíram a partir de diversos processos, como, por exemplo, doação de terras, heranças, recebimentos de terras como pagamento por serviços prestados ao Estado, mesmo até agrupamentos populacionais que se formaram dentro de grandes propriedades agrícolas depois da abolição da escravatura, ou terras que foram compradas por escravos alforriados ou libertos.

O Grupo de Trabalho sobre Comunidades Rurais Negras, criado pela Associação Brasileira de Antropologia, na tentativa de auxiliar a aplicação do dispositivo constitucional nº 68, que define o direito à terra das “Comunidades Remanescentes dos Quilombos”, recusa a definição do”Quilombo” somente a partir da fuga e do isolamento, aderindo, sim, à ideia de resistência e autonomia. Diz, concretamente: “Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogénea. Consistem, sobretudo, em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”. Portanto, o que define os “quilombolas” “é uma identidade étnica, fruto de ancestralidade comum, práticas políticas, religiosas e sociais. É um processo de auto-identificação bastante dinâmico que não se reduz a elementos materiais ou traços biológicos distintivos como a cor da pele, por exemplo.”

A questão do reconhecimento do direito de posse das terras pelas “Comunidades Remanescentes dos Quilombos” é um sério problema de Direitos Humanos, pois muitas dessas terras estão a ser alvo da cobiça por parte do sector agro-pecuário, como recentemente reconheceu, em entrevista a um jornal brasileiro, o Ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República do Brasil, Edson Santos.

Mas, a importância de algumas dessas terras reivindicadas pelos “quilombolas” não se manifesta apenas pela cobiça que elas despertam no sector agro-pecuário, são também interesses vinculados à exploração mineral. Lá existem muitas pedras preciosas, e até mesmo urânio – reconheceu o Ministro, destacando, igualmente, um eventual conflito de interesses entre as comunidades e o próprio Estado brasileiro. Por exemplo, em determinada área habitada por “quilombolas”, no estado do Maranhão (em Alcântara), “existe o melhor lugar do mundo para o lançamento de satélites”. A Agência Espacial Brasileira instalou em terras reivindicadas pelos “quilombolas” um Centro de Lançamento. E acrescentou: “A solução do problema passa pela conjugação dos dois interesses, o do Estado e o das comunidades”.

Estes conflitos brasileiros remetem-me para os nossos actuais conflitos de terras. Estamos numa época em que se desalojam comunidades inteiras nas áreas periféricas das cidades (com destaque para Luanda) para, aparentemente, dar resposta à necessidade de modernização da nossa sociedade, construindo-se os já famosos condomínios, muitos deles de luxo. É visível, porém que, por detrás destas acções, escondem-se os fortes interesses imobiliários titulados por novos-ricos criados à custa da sua forte ligação ao aparelho de estado. Só que, em Angola, infelizmente, o Estado não manifesta a preocupação social que se descobre nas actuais autoridades brasileiras. Aqui, a tónica principal é destruir, sem o cuidado de antes realojar em condições dignas de seres humanos. Há, pois, uma clara violação de um dos mais fundamentais direitos humanos, o direito a uma habitação digna. E quando se realoja, descuidam-se outros direitos do cidadão. Alguns dos desalojados perdem os seus empregos, deixam de ter acesso à escola, ou aos cuidados primários de saúde.

É claro que não estamos ainda perante a figura dos “quilombolas” – nem coisa parecida, já porque a sua génese das nossas comunidades de desalojados é diferente. Todavia, não tenho dúvidas de que, caso se prossiga a política cega de desapropriação e de desalojamento cego das comunidades mais pobres, poderemos ter, no futuro, segmentos sociais a exercitar movimentos de resistência que nos farão então lembrar, seguramente, os Zumbis e outros mártires de épocas passadas.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

POSTAL DA COREIA DO SUL (III)

1. Cá estou eu, de novo, tal como prometi, enviando-vos o último “Postal da Coreia do Sul”. Com este “Postal”, quero, afinal, compreender melhor como foi possível, em tão pouco tempo, o “salto em frente” dado pela República da Coreia. Primeiro que tudo, devo dizer-vos que este país é pobre em matérias-primas, além de que é também demasiado montanhoso.

2. Teria apenas, pela frente, duas hipóteses: ou assentar o seu desenvolvimento na exploração de um qualquer factor natural que potenciasse, por exemplo, o turismo; ou, então, optar pela criação de tecnologia, de conhecimento, da indústria do saber fazer... É aqui, pois, que reside o mérito. Os coreanos seguiram um caminho idêntico ao do Japão, ainda a 2ª economia do mundo, esse vasto arquipélago constituído por uma multidão de ilhas, muitas delas desabitadas.

3. Viajei para a cidade imperial de Gyeongju, utilizando o “TGV” local – o TGV é a sigla usada para designar “O Comboio de Alta Velocidade” e que vem do francês “ Le Train à Grande Vitesse”. Aqui chamam-lhe “KTX”, com origem na designação “Korea Train Express”. Tal como o seu equivalente europeu, este comboio chega a ultrapassar a velocidade de 300 km/hora. Na sua construção, contou com a colaboração inicial de empresas francesas, como, por exemplo, a Alstom.

4. Entrei, pois, no “TGV” coreano em Seul, e saí na cidade de Daegu. Este meio de transporte, rápido, seguro e muito cómodo ainda não chegou à cidade de Gyeongju, que era, afinal, o meu destino. Ele só atingirá Gyeongju no ano de 2010, quando estiver terminado o seu segundo troço. O “TGV” é um “luxo” que já existe na Coreia há cerca de 5 anos. Ele permite reduzir para metade o tempo do percurso entre Seul e Daegu. Reparem que a variável tempo é fundamental na equação do desenvolvimento. Daí que se diga, justamente: “Tempo é dinheiro”. Para os ingleses: “Time is money”.

5. A questão da construção, ou não, do “TGV” é matéria do debate político português... E esses políticos perdem demasiado tempo a discutir uma matéria que nem deveria ser objecto de discussão... Na pior da hipóteses, seria admissível apenas questionar sobre os “timings”, nunca sobre a sua utilidade... É evidente que se os portugueses não construírem o seu “TGV”, a fronteira económica e social ocidental da Europa colocar-se-á no ponto em que Portugal roça a Espanha…Como toda a Europa praticamente já aderiu ao “TGV”, eu penso, pois, que os portugueses ainda discutem o sexo dos anjos… Mas, vamos prosseguir.

6. No percurso para Daegu, a minha cicerone e intérprete mostrou-me a cidade onde vive a sua mãe. A cidade chama-se Daejeon, e intérprete disse-me: “A cidade tem como actividade principal a investigação de alta tecnologia. É uma espécie de NASA”. Vou ajudar-vos a entender a mensagem: A NASA é a Agência Espacial Norte-Americana, aquela que lança os satélites para o espaço.

7. Cheguei, então, a Daegu. Trata-se de uma cidade metropolitana com uma grande concentração académica. É a capital da província de Gyeongsang Norte - apesar de não fazer parte dessa província. Esse é um dado original: a capital da província não faz parte da província. Quarta maior cidade do país, possui à volta de 2,5 milhões de habitantes. Albergou parte dos jogos da Copa do Mundo de 2002.

8. Daegu possui uma das universidades públicas mais importantes do país, com cerca de 32.000 estudantes, dos quais 1.267 são estrangeiros. São estudantes vindos de muitas partes da Ásia, mas, em especial, da China e do Japão. Ela acolhe também estudantes provenientes da Europa e de outras paragens.

9. A cidade de Daegu orgulha-se de ter uma das escolas tecnológicas mais avançadas do país e do mundo e um campus universitário que se confunde com uma cidade. No conjunto dos 4 campus dessa universidade, espalhados por outros locais, existem 180 edifícios, muitos deles de enormes dimensões – em Luanda, seriam, por exemplo, considerados torres... Os edifícios estão profusamente cercados por muito verde, por jardins, relva, quadras de jogos, etc. É uma cidade dentro da grande cidade.

10. Afinal, foi a educação que criou as condições para o desenvolvimento da Coreia. Foi também a razão de ser da minha visita a este país moderno, mas velho com mais de 5.000 anos de história. Ele reconstruiu-se em pouco mais de 30 anos. Por isso, é justamente considerado como um dos “Tigres Asiáticos”. Digo-vos: os coreanos apostaram na educação, mantendo a cortesia – e, de modo algum, se consideram especiais… É bom que saibamos isso!

11. A Coreia do Sul é hoje o país com o melhor ensino de base do mundo. Os investimentos que fez na educação são o principal responsável pelo seu crescimento económico.

12. A chamada “Guerra da Coreia” havia deixado atrás de si um milhão de mortos e uma miséria generalizada. 1 em cada 3 sul-coreanos era analfabeto. Hoje, algumas décadas depois, 8 em cada 10 sul-coreanos chegam à Universidade. De tal modo que as Secretárias têm que possuir uma Licenciatura em Secretariado, e aos Professores Primários exige-se um Mestrado em Pedagogia.

13. A Coreia do Sul possui cerca de 4 milhões de estudantes a frequentar o ensino superior, e perto de 200 mil a realizar Mestrados e Doutoramentos. Muitos desses Mestrandos e Doutorandos estão em Universidades americanas, britânicas e japonesas.

14. A opção pela educação é clara e inequívoca. O ensino de base é todo gratuito. O ensino superior não é - mas o Estado subsidia os melhores estudantes, dá bolsas a quem tem bom aproveitamento. Premeia-se o mérito – não se põe todos em pé de igualdade. A lógica sul-coreana foi: universalizar o ensino, permitir a igualdade de oportunidades, apostar na qualidade.

15. As autoridades acham que a melhor forma de participar na globalização é promover uma educação de qualidade, para tornar os seus cidadãos competitivos à nível mundial. Para isso, decidiram introduzir o ensino do inglês desde o nível primário. Assim, o inglês transformar-se-á também uma língua nacional e os coreanos poderão facilmente ingressar em qualquer das melhores escolas do mundo.

16. Pensemos seriamente nisso. Não tenhamos receio de colocar esta questão em discussão. Senão, o nosso lugar no ranking mundial será o pelotão retardatário, ou mesmo a cauda. E o desenvolvimento passará por nós de risco ao lado..., assobiando para o ar...

17. Para além das imensas e enormes torres, Seul possui muitos museus temáticos e palácios para visitar. Aqui, respira-se história e cultura. É uma pena já vos ter cansado com três “Postais”, senão, um dia destes ainda falaríamos da história e da cultura. Sobretudo, da cultura que é um factor de desenvolvimento.

18. Eles possuem uma multidão de cientistas, na sua maioria ligados às áreas tecnológicas, que vão desde a computação à genética. A Matemática é a base do desenvolvimento tecnológico. Nós, em Angola, temos que criar a cultura da Matemática. É isso que tornou a Coreia ou o Japão players de alta competitividade mundial. Boa educação, muitos recursos investidos na investigação, quer na investigação pura, quer na aplicada. Resultado: Hoje, a Coreia possui cerca de 3 mil produtos patenteados mundialmente. É um agente da globalização e não uma “vítima” da globalização... Não se queixa, orgulha-se.

19. Não é possível entrar no mundo desenvolvido sem ter tecnologia própria. Inicialmente, o país pode começar por comprar tecnologia, mas, depois, ele tem de passar à fase da elaboração de tecnologia própria. Não fazer isso, é laborar num tremendo erro. É criar múltiplos equívocos.

20. A reforma na educação, permitiu que, durante os últimos 30 anos, a economia do país tivesse crescido a uma média de 9% ao ano. Há 30 anos atrás, o PIB per capita da Coreia do Sul era de 80 usd; hoje está nos 20.000 usd. Não é petróleo, nem qualquer outro recurso natural, é labor, é trabalho, dentro de uma estratégia correcta.

21. Há mesmo quem tenha feito a seguinte comparação interessante: Há 40 anos atrás, a Coreia do tinha o mesmo PIB per capita que o Brasil. Hoje, o seu PIB per capita é o dobro do Brasil. Com apenas 40 milhões de habitantes, a Coreia do Sul exporta o dobro das exportações do Brasil, e exporta, sobretudo, produtos de alta densidade tecnológica.

22. Vale a pena estudar este país, analisar o seu processo de desenvolvimento. Vale a pena tê-lo como referência. Ele é hoje uma montra do mundo.

23. Tenho razão quando, por vezes, digo que o século XXI será asiático, pelo menos no que diz respeito à Ásia do Nordeste. Se quisermos que, pelo menos uma parte deste século XXI também seja africano, há que lançar desde já as sementes. As sementes são os homens, são os jovens, é a qualidade da educação. Esse é, sim, um investimento virtuoso!

terça-feira, 17 de novembro de 2009

POSTAL DA COREIA DO SUL (II)

1. Aqui está o meu segundo “Postal da Coreia do Sul”. Poderá ser o último, pois já estou quase de volta. No regresso, decidirei, então, se ainda vale a pena continuar a enviar-vos “Postais da Coreia”, ou se é melhor tratar de um outro tema, talvez mais interessante, quiçá mais atractivo. A decisão final competirá a vocês que me ouvem (e lêem) com bastante indulgência. Prometo-vos que saberei interpretar a vossa vontade.

2. Na realidade – e para ser sincero – esta curta estadia na Coreia do Sul foi tão rica que até me passou pela cabeça voltar a Seul, para continuar a perceber como foi possível, em tão pouco tempo, terem reconstruído um país de mais 40 milhões de habitantes, um país que sofrera uma guerra destruidora. Como sabem, a chamada Guerra da Coreia, que inspirou livros e filmes da minha juventude, provocou a separação da Península da Coreia em duas partes: a Coreia do Sul, democrática, de economia de mercado e liberal; a Coreia do Norte, de regime totalitário de cariz comunista, economia planificada e dirigida centralmente. Uma é uma democracia que funciona; a outra, é uma ditadura feita república monárquica, onde os filhos substituem os pais, apenas porque são filhos desses pais…

3. Olhando para o passado, dou razão a quem me disse, ainda há dias, o seguinte: “A Inglaterra iniciou a sua Revolução Industrial há 200 anos. Hoje é um país desenvolvido, como todos sabemos e reconhecemos. A Coreia do Sul precisou apenas de 3 décadas para se reconstruir e, sobretudo, para vencer um secular subdesenvolvimento”. É, realmente, um feito espectacular, tendo como referencial os maus momentos por que também passou, até consolidar a sua democracia.

4. Visito, pois, a 12ª economia do mundo. É isso mesmo o que eu disse: Num mundo com cerca de 200 países, a Coreia do Sul tem a 12ª economia mais forte, em termos globais, além de possuir um dos PIBs per capita mais robustos das chamadas economias emergentes – uns invejáveis 20.000 dólares norte-americanos. Quer dizer que, se houvesse um G20 –instituído apenas com base no PIB Global (e mesmo até que o fosse com base no PIB per capita) – a Coreia do Sul seria, seguramente, hoje, seu membro de pleno direito. De modo algum seria um convidado de circunstância…

5. Como é meu hábito, não me fiquei pela observação de jardins, palácios, torres, rios e avenidas. Tive também a possibilidade de conversar, de questionar, de dar opinião, socorrendo-me do conhecimento que tenho sobre a história e sobre o momento presente desta parte do mundo, dos países do nordeste da Ásia.

6. O mal de muitos de nós é não darmos atenção à história dos outros povos, nem cuidarmos de acompanhar com a devida atenção o seu desenvolvimento. É isso que, por vezes, dificulta o diálogo e nos impede de entender as transformações que vão acontecendo, e cada vez mais de um modo acelerado. Outro dos nossos males é ficarmo-nos por um conhecimento muito superficial das suas culturas, estreitando o nosso saber ao que se passa nos países ocidentais. Isso coarcta-nos a possibilidade de fazermos uma leitura global e transversal, estreita os nossos horizontes. Um terceiro mal, é vermos os outros países como se fossem apenas um “centro comercial”, um grande “bazar”, um local para fazer compras.

7. Seul é uma cidade impressionante: limpa, moderna, que soube preservar os traços marcantes da sua história. De algum modo, Seul cuida da sua identidade – apesar dos seus 11 milhões de habitantes. Esta Seul moderna, a Seul dos nossos dias, está hoje a ser construída na vertical, não por um mero capricho, ou por um modismo efémero, mas porque tem pouco espaço para se expandir. Foi a própria natureza que lhe traçou os limites.

8. Seul está cercada por montanhas e é rasgada por um largo rio alimentado por pequenos riachos, como a rede de veios que alimenta uma folha larga. Dentro de Seul há numerosos e longos túneis, mas também inúmeras pontes, ligando as margens e facilitando a fluição automóvel. Tem um sistema de Metro muito moderno, competente, extenso e articulado, o que facilita, e de que maneira, o trânsito dos que moram longe dos seus locais de estudo ou de trabalho. É, sim, uma grande metrópole em qualquer parte do mundo, seja no continente europeu, seja no continente americano, seja nas restantes cidades asiáticas modernas e avançadas.

9. Seul é um gigante dinâmico e cheio de vitalidade, com os pés bem assentes na terra. Seul não dá a sensação de se estar a navegar num iate de luxo, deslizando sobre um curso de água caótico e poluído, como sucede nas grandes metrópoles dos países do Terceiro Mundo.

10. Por norma, as grandes cidades do Terceiro Mundo são extensas e asfixiantes. São contraditórias. Nelas, lado a lado, coexiste a miséria mais humilhante e degradante, com a riqueza agressiva, provocante e arrogante. São desordenadas, porque são o fruto de uma qualquer e fortuita circunstância: ou porque o país (através das suas elites) beneficiou, num determinado período, de um rendimento extraordinário; ou porque as burguesias estrangeiras, e fruto dessa circunstância, decidiram transportar para tais cidades pedaços seleccionados dos seus modos de vida. Tomam, então, a forma curiosa de ilhas de modernidade cercadas por grande miséria geral.

11. Isso não é desenvolvimento. Isso é, apenas, uma ficção, uma ilusão de desenvolvimento. Esse é um crescimento ocasional, sem sustentabilidade, porque não está assente num enriquecimento duradouro. De repente, tudo pode ruir – caso as circunstâncias que lhe deram origem se alterem bruscamente… Aconselho a que não tenhamos essas sociedades como as nossas referências. O desenvolvimento pressupõe crescimento, mas um crescimento em todas as dimensões, um crescimento que também incorpore o homem nas suas variáveis.

12. É evidente que um país com generosos recursos naturais poderá ter mais facilidades para se desenvolver. Mas tem também de saber elaborar estratégias políticas coerentes e consistentes. O desenvolvimento não se consegue aos solavancos, com inspirações momentâneas. Temos, por isso, que abrir um profundo debate sobre o que queremos para o futuro e como devemos aplicar os resultados dos recursos que a natureza nos ofereceu. Esse não pode ser o privilégio de alguns que se julgam com mandato indeterminado para decidirem sobre o futuro de todos, do país.

13. Olhando de novo para Seul. Vemo-la cercada por inúmeras montanhas, montanhas que lhe emprestam beleza natural e a sensação de equilíbrio e da natureza estar sempre presente. Se os coreanos tivessem arrasado as montanhas para ampliar o raio da cidade, teriam, seguramente, provocado uma subida da temperatura, com as consequências que se adivinham.

14. O homem moderno coreano soube criar edificações para seu uso, mas sem agredir a natureza. Percorrendo as suas múltiplas auto-estradas, vemos como se pode fazer um bom aproveitamento dos vales para a produção agrícola. Estão lá as montanhas, imponentes, florestadas, produzindo oxigénio que insufla vida.

15. Agora é o Outono, e o Outono é lindo: a folhagem está a mudar de cor, as folhas estão a cair. As árvores ainda exibem múltiplas tonalidades. Depois, virá o Inverso, rigoroso, com o seu manto branco. Por definição, todas as estações do ano têm a sua originalidade e a sua beleza. Compete ao homem saber retirar o devido proveito de todas elas. Geralmente, a natureza é boa – nós é que a agredimos, e depois sofremos as consequências dessa agressão.

16. Esta é uma sociedade altamente tecnológica. Possui, inclusive, cidades de uma fortíssima densidade tecnológica, onde se concentram os principais cérebros do país nos laboratórios de investigação do mais elevado nível. São estes homens e mulheres que criam novos produtos e novos processos. São eles que transformam o presente e moldam o futuro. São os verdadeiros responsáveis pelo salto para o futuro que foi dado em tão pouco tempo. Isso deveu-se à educação, assunto de que vos falarei no próximo “Postal de Coreia do Sul”. Está percebido e está decidido. Bye, Bye!

terça-feira, 10 de novembro de 2009

POSTAL DA COREIA DO SUL (I)

1. Estou na Coreia do Sul e escrevo-vos a crónica desta semana sob a forma de um Postal de Viagem. É um pouco original, mas conto com a voz do Manuel Vieira para a fazer chegar até vós, na devida forma. Achei esta a via mais adequada para prosseguirmos o nosso diálogo semanal, um diálogo que já dura 10 anos e que muito prezo. Pelas vossas manifestações de carinho, sei que vos agrada este contacto, esta interacção permanente. No meu regresso, terão de novo a minha voz, esta voz a que já se habituaram e que vos é fiel às Segundas e Terças-Feiras.

2. Sei desde muito pequeno que a Península Coreana foi historicamente um alvo privilegiado da cobiça estrangeira, ou por parte da China, ou por parte do Japão. Se o Japão dominasse a Coreia, mais facilmente chegaria à China, afinal, a sua grande ambição. Se a China a subjugasse, ficaria com o Japão de frente, à sua mão de semear, como dizia repetidamente a minha mãe. A Península Coreana chegou a ser anexada pelo Japão, no ano de 1910, numa altura em que, fruto do processo de industrialização e desenvolvimento capitalista, aquele país pretendeu transformar-se na principal potência oriental. A Península Coreana pagou, assim, o tributo devido à sua localização entre as duas potências asiáticas com vocação mais hegemónica.

3. Para além das destruições e mortes causadas pela invasão japonesa, os coreanos lamentam ainda hoje as suas diversas tentativas de assimilação. Para além do esforço de integração da economia coreana na japonesa, os japoneses tentaram ainda impor-lhes a sua língua, também os seus hábitos e costumes, inclusive, os seus nomes. Eu penso que a posterior influência cultural e económica norte-americana, terá ajudado, por exemplo, a Coreia do Sul a transformar-se naquilo que é hoje: uma economia moderna dando corpo a um país de progresso.

4. Quando cheguei, no dia 5, ao aeroporto de Incheon, situado a uma razoável distância de Seul, a capital da Coreia do Sul, foi fácil entender como um acontecimento desportivo da dimensão do Campeonato de Mundo de Futebol de 2002, realizado conjuntamente pela Coreia e o Japão, pôde estimular a modernização de uma região do país outrora retardada. O novo aeroporto internacional de Incheon e a auto-estrada que lhe dá acesso criaram as condições para urbanizações modernas, valorizando assim largas superfícies de terra. É aquilo que podemos chamar de investimento virtuoso, gerador de sinergias.

5. Porém, pelo menos até agora, e no ponto em que me encontro desta primeira visita à Coreia do Sul, o que mais me impressionou foi ver o esforço que as autoridades locais realizaram para despoluir e reaproveitar o velho e antes muito poluído rio Cheong Gye Cheon, que corta praticamente ao meio a cidade de Seul. Assim, reurbanizaram uma boa parte da cidade, num esforço tão simbólico e gigantesco, que o governo da cidade mandou edificar um museu, apenas com o objectivo de preservar a história desse grandioso projecto.

6. Até ao ano de 2005, o rio Cheong Gye Cheon era extremamente poluído, por causa da falta de saneamento numa parte da cidade. Em 2 anos e 3 meses, com início em 2003, procedeu-se à sua transformação radical. Começou por se retirar um viaduto construído sobre o rio em 1958. Reabilitou-se o canal, melhorou-se a qualidade da água, reintegrou-se no ecossistema espécies animais e vegetais outrora desaparecidas. Hoje, onde antes havia degradação e caos, há um lindo espaço de recreação e turismo, com o comércio ordenado. A reabilitação do rio Cheong Gye Cheon produziu, igualmente, efeitos sobre a temperatura ambiente. A temperatura média diminuiu alguns graus centígrados. O clima ficou mais ameno. É acção positiva do homem sobre o meio em que se insere, pondo-o ao seu serviço, no seu interesse e das futuras gerações.

7. Este primeiro contacto com Seul colocou-me de frente com a triste realidade da nossa Luanda. Em Luanda, insistimos em destruir o nosso património histórico e cultural, e faz-se um esforço notável para a desarborizar a cidade – uma cidade que já está praticamente careca... A perceptível que a nossa cidade está cada vez mais quente, e mesmo assim, os sucessivos governadores mostram-se insensíveis e incapazes de compreender os impactos ambientais resultantes da destruição das árvores e da eliminação de poucos espaços de recreação que restaram do período colonial.

8. Quando hoje percorria as estradas que ladeiam o rio Cheong Gye Cheon, deu-me para perguntar a quem me acompanhava sobre o que seria feito das casas antigas que ainda já se vêem. Responderam-me que algumas delas seriam preservadas, permanecendo como um testemunho para a posteridade. A municipalidade manterá o conceito da Cidade Velha, como sucede em qualquer grande cidade que tenha história e que a preze.

9. Infelizmente, em Luanda, estamos a matar a nossa Cidade Velha, estamos deliberadamente a sepultar a sua história. As antigas edificações que testemunhavam a história da nossa cidade, da nossa economia e da nossa sociedade tornaram-se o alvo preferencial do camartelo demolidor e da especulação imobiliária. Nos espaços assim criados, edificam-se agora instalações sem qualquer originalidade, visíveis em qualquer parte do mundo.

10. À medida que em Luanda se derrubam as nossas casas centenárias, perco a possibilidade de revisitar a história que aprendi nos livros, bem como aquela que entendi nos ensinamentos dos mais-velhos.

11. Ver o rio Cheong Gye Cheon, de Seul, reabilitado, purificado e ordenado, ele que era caótico e poluído, hoje purificado e ordenado, dá-me a sensação da utilidade desta visita à Coreia do Sul. Resta-me, porém, ainda, a esperança de ver alguém fazer qualquer coisa para salvar a nossa Luanda, modernizando-a, sim, mas preservando os vestígios da sua história, ela que se orgulhava de ser a cidade mais antiga da costa ocidental de África. Hoje, Luanda está demasiado exposta à sanha destruidora dos que só sonham com betão e com espelhos de várias cores. Luanda está feita uma cidade extremamente quente e sem história.

12. Mais uma coisa: acabo de visitar o Palácio Chang Deok Gung, o antigo palácio dos Reis da Coreia. Está preservado e aberto ao turismo. Aqui ninguém o transformou num local de farras, ou em espaço para se festejarem os casamentos da nomencklatura.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

MIGUEL ÂNGELO, MEU SOBRINHO

1. Os anos da guerra foram dramáticos: quer de um lado, quer do outro, morreram inúmeros angolanos; famílias inteiras desapareceram, sobretudo nas áreas rurais, onde a ferocidade foi maior; compatriotas nossos ficaram isolados em zonas remotas, sem contacto, ou com medo de se exporem e serem, então, tidos por perigosos ou inimigos.

2. Um dos maiores dramas humanos que a guerra produziu foi o afastamento de pais e filhos, idos para as frentes de combate, ou então, saídos para o exterior. Uns partiram para estudar, outros para trabalhar. Não poucos retornaram esporadicamente ao país, para assistirem, por exemplo, a funerais, ou então, nas épocas festivas – geralmente, pelo Natal. Houve quem nunca mais voltou a pisar solo angolano. Esses, no mínimo, perderam as ténues raízes que os ligavam à terra. Foi o caso do Miguel Ângelo, meu sobrinho, filho da minha irmã Antónia Pinto de Andrade e do Joaquim Gouveia. O Miguel Ângelo ficou lá fora, para sempre… Nunca mais retornará à nossa terra. O meu sobrinho, Miguel Ângelo, foi de vez… Ele que tinha ido apenas para estudar. Peço que partilhem comigo esta pequena parcela da minha intimidade.

3. A minha irmã Antónia foi de um grande simbolismo para a nossa família. Ela foi sempre referencial. Na nossa família, não nos habituámos a distinguir entre filhos de pai e mãe, ou filhos apenas de uma das partes. Fomos sempre muito unidos. Desconhecemos a figura do meio-irmão.

4. Causa-me algum incómodo, quando ouço, por exemplo, alguém dizer que fulano é meio-irmão de sicrano. Não foi essa a linguagem que aprendi no seio familiar. Fomos todos irmãos, sem restrições ou partilhas reduzidas. A minha irmã Antónia, que não era filha da minha mãe, tratava a minha mãe por mãe, com o mesmo carinho que nós, seus filhos de sangue. A minha mãe sempre dedicou um extremo carinho à minha irmã Antónia, sua enteada. Entre nós, estabeleceu-se uma afectividade pura. De algum modo, isso ajuda a explicar a sensibilidade e também o espírito solidário que cultivámos como um valor inquebrantável.

5. Depois de fazer o Liceu, no Liceu Salvador Correia, a minha irmã Antónia tirou o Curso Geral de Enfermagem. Foi sucessivamente transferida de uma Província para outra Província, até que conheceu Angola de lés-a-lés.

6. Já a trabalhar, a minha irmã Antónia regressava a Luanda por curtos períodos de tempo – um regresso que nos enchia de alegria, mas, também, de ansiedade. Para além do carinho, ela fazia-se acompanhar de prendas. Éramos órfãos de pai – o nosso pai comum morrera cedo. A Mana Antónia oferecia-nos calções novos, camisas, camisolas, sandálias, bikinis, sapatos. Fazia questão de nos levar ao restaurante, para quebrarmos um pouco aquela monotonia de órfãos com poucos recursos. A Antónia queria ocupar o espaço do pai que havia morrido…

7. A Antónia era carinhosa, muito meiga e atenciosa. Recebíamo-la sempre com entusiasmo. Preocupava-se connosco, com os nossos estudos, com a nossa educação, com o nosso futuro. O apoio da Mana Antónia completava o esforço e a dedicação da nossa mãe.

8. Depois, casou com o Joaquim Gouveia, que foi para nós, igualmente, como um irmão mais velho. Bom e extremamente educado, de boas maneiras. O casal tinha um padrão de vida razoável para a época, inclusive, já tinham casa e carro próprios. O Mano Gouveia vestia bem, gostava de fatos elegantes. Foi dele o primeiro fato que eu vesti – para ir a um funeral. Não me senti bem dentro do fato: o Gouveia era alto; eu, não.

9. O Mano Gouveia e a Mana Antónia tornaram-se a imagem do casal exemplar, do casal de respeito. Eram motivo da nossa admiração. Nunca lhes ouvi, por um momento que fosse, a voz alterada. Tenho sempre saudades da minha irmã Antónia e do meu cunhado Gouveia! …

10. Chegados de Cabo Verde, eu e o Vicente partimos para o Congo, passando por Cabinda. A Antónia e o Gouveia estavam em Cabinda – ela, enfermeira; ele, funcionário de Fazenda. Os anos que estivemos na cadeia deixaram nesses nossos irmãos uma enorme saudade. Revimo-nos brevemente. Tínhamos que partir, novamente, para iniciar uma nova aventura – eu e o Vicente.

11. O Gouveia apoiou-nos. Arranjou o estafeta que nos fez atravessar a fronteira de Massabi, com o Congo Brazzaville. Também se chamava Vicente. A minha irmã e o meu cunhado foram muito solidários connosco: entendiam a nossa inquietude e a nossa forma de estar na vida, compreendiam também o nosso modo de estar na política. Nós fomos sempre inquietos e inconformistas.

12. Em Cabinda, estavam também os seus dois únicos filhos, ainda pequenos, o Tó Quim e o Miguel Ângelo. O Tó Quim e o Miguel Ângelo eram sobrinhos exemplares: educados, de boas maneiras, bons filhos, bons sobrinhos. O meu cunhado Gouveia e a minha irmã Antónia adoravam os seus dois filhos. Os meus sobrinhos eram distintos: o Tó Quim sempre muito chegado ao pai, um pai que o cumulava de mimos e presentes; o Miguel Ângelo era um pouco mais expansivo – era muito próximo da mãe.

13. Retornando a Luanda, viveram no Bairro Alvalade. Até que a guerra fez com que tomassem a decisão de enviar os dois únicos filhos para Portugal, para estudar. Privaram-se da sua presença, para garantir o seu futuro, sem muitos sobressaltos. A minha irmã e o meu cunhado fizeram tudo para que nada faltasse aos seus filhos. Vi muitas vezes a melancolia escondida dentro dos seus olhos. Estavam a envelhecer com os filhos distantes. Primeiro, Lisboa; depois, partiram para Londres. Passados anos, os meus sobrinhos regressaram a Portugal, optando, então, por se fixarem no Algarve, em Portimão.

14. A minha irmã Antónia morreu de ataque cardíaco – seguramente sofrendo pela ausência dos filhos. O meu cunhado Gouveia morreu pouco depois. Não era possível continuar a viver sem a Antónia e sem os filhos. O Gouveia não resistiu a tanta saudade… Os meus sobrinhos viram-se, assim, bruscamente, sozinhos no mundo, e afastados do núcleo central da família.

15. Quando o Miguel Ângelo era pequeno, eu dizia, frequentemente: gostava que fosses pintor ou escultor, um artista como o Miguel Ângelo, o famoso italiano da época renascentista, o autor da Pietá e de David, o autor do Génesis e do Juízo Final, pintados na Capela Sistina. É que a minha irmã e o meu cunhado guardaram zelosamente consigo os desenhos que os meus sobrinhos fizeram na infância. Guardaram também os seus brinquedos.

16. O meu sobrinho Miguel ouvia-me e ria-se. Ele dizia que a única coincidência que havia entre si e o Miguel Ângelo, o italiano, era apenas no nome – nunca nos destinos da vida. Propus-lhe um outro percurso, o de Michelangelo Antonioni, o cineasta italiano, autor de L’Eclisse e de Il Deserto Rosso. O meu sobrinho Miguel Ângelo recusou o caminho do Michelangelo Antonioni. O intelectual é o Tó Quim, que começou por estudar Direito em Lisboa e foi para Londres para estudar História da Arte.

17. Que eu saiba, o meu sobrinho Miguel Ângelo foi, até hoje, o único Miguel Ângelo na estirpe dos Pinto de Andrade – A nossa estirpe tem séculos e vários caminhos percorridos. O Miguel morreu no Domingo, dia 25, em Portimão, abruptamente, fulminado por um ataque cardíaco – afinal, como morreu a sua mãe e alguns dos outros meus irmãos. O Miguel Ângelo morreu como, geralmente, morrem os Pinto de Andrade. Ele foi o único Miguel Ângelo da nossa linhagem, mas morreu como morrem muitos dos Pinto de Andrade: de ataque cardíaco. Afinal, essa é a nossa estranha forma de morrer...

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A PENA DE MORTE. UMA QUESTÃO DO NOSSO TEMPO

1. Muitas das notícias vindas recentemente a público são deprimentes: por exemplo, as várias condenações à morte decretadas contra cidadãos de etnia uigure, envolvidos nos tumultos inter-étnicos de Julho, na província chinesa de Xinjiang; igualmente, as condenações à morte de manifestantes iranianos que contestaram os resultados das eleições de Junho; finalmente, o drama vivido por um cidadão equatoriano que passou três anos no “corredor da morte”, à espera de ser executado, tendo-se, afinal, provado que se tratava de mais um inocente.

2. No mês de Julho, a região de Xinjiang, noroeste da China, viveu dias de grande agitação de rua, com confrontos entre cidadãos de duas comunidades distintas, os han, que são maioritários no conjunto do território chinês – mas, minoritários na província de Xinjiang – e os uigures, amplamente maioritários nesta província. Os uigures são muçulmanos etnicamente aparentados com os turcos.

3. O conflito inter-étnico surgiu depois de dois operários uigures terem sido mortos numa província do sul da China, supostamente por responsabilidade de indivíduos de etnia han, com quem trabalhavam numa fábrica. O facto começou por desencadear manifestações pacíficas, porém, devido ao comportamento repressivo das autoridades, elas evoluíram e degeneraram em motins e pilhagens, tornando alvo, sobretudo, propriedades de membros da etnia han. Os uigures dizem-se discriminados a favor dos han, pretendendo, por isso, separar-se da China. As autoridades chinesas resumem o conflito étnico naquela região às chamadas “três forças”: separatismo, terrorismo e extremismo religioso.

4. Mesmo que aleguem terem sido cometidos actos de pura marginalidade, as condenações à morte agora decretadas surgiram perante o mundo como tendo motivações políticas.

5. É claro que não se deve matar por razões políticas. A política tem que saber buscar outras formas de resolução das suas contradições. Na política, não há verdades absolutas. Por vezes, aquilo que aparenta ser a verdade pode, depois, transformar-se num grande embuste. Aprendi esse princípio com a experiência própria e com a experiência alheia. Vi ao longo da vida demasiados castelos de verdades políticas desmoronarem como baralhos de cartas… Vi fortes convicções evoluírem para dúvidas absolutas, ou então simples dúvidas firmarem-se como convicções seguras. Em política tudo está sempre inacabado, e os edifícios são delimitados por frágeis contornos, nunca por estruturas de betão…

6. As condenações à morte no Irão emergiram no rescaldo do conflito pós-eleitoral que opôs Mahmud Ahmadinejad, declarado vencedor das recentes eleições presidenciais, aos apoiantes do líder reformista Mir Hussein Moussavi. Hoje, juntamente com a China, o Irão lidera a «lista negra» dos países que mais usam a pena de morte como fórmula de punição. Os sucessivos relatórios produzidos pela Amnistia Internacional apresentam dados que juntam a estes dois países também o Paquistão, Arábia Saudita e Estados Unidos da América. Em termos per capita, a Arábia Saudita é o país líder das execuções, seguido do Irão e da Líbia. Nalguns desses países chegam mesmo a ser executados indivíduos por terem cometido crimes quando ainda eram menores. Se olharmos atentamente, veremos que, na sua maioria, não são democracias, com excepção dos Estados Unidos da América. São, sobretudo, países asiáticos, ou então, países africanos, como a Líbia. Porém, o Japão, sendo embora uma democracia, ainda executa pessoas.

7. Nos Estados Unidos da América persiste a prática da pena de morte para punir determinados tipos de delitos, se bem que o processo que conduz à execução da pena seja bastante demorado e obedeça a trâmites apertados. Não poucas vezes, e mesmo que haja maior possibilidade de se garantir transparência, o sistema judicial norte-americano mostra pouca segurança. Contam-se por inúmeros os casos em que foram condenados à morte indivíduos inocentes, o que é grave, pois a pena de morte é um castigo irreversível. Uma vez aplicada a pena, não há hipóteses de recuo.

8. Por exemplo, há poucos dias eu li uma entrevista dada a um jornal português por um imigrante equatoriano, que esteve preso durante 5 anos na Prisão Estadual da Florida, nos Estados Unidos da América. Dos cinco anos de prisão, ele passou 3 longos anos no “corredor da morte”, à espera da hora da execução. Fora acusado de um duplo assassínio. Mas, afinal, tudo não passou de uma tramóia engendrada pela ex-esposa.

9. Joaquim José Martinez tinha então 26 anos de idade. Até ser preso, fora adepto da aplicação da pena de morte, como forma exemplar de punição. Hoje, tem 39 anos. Depois de ter passado tudo o que passou e ter visto tudo quanto viu, Joaquim José Martinez tornou-se activista contra a pena de morte, precisamente porque a sua própria experiência permitiu-lhe perceber que, não poucas vezes, são executados inocentes.

10. A experiência dos três anos no “corredor da morte” foi-lhe traumática: qualquer tilintar de chaves, durante a noite, ainda o assusta… Lembra-se de como as pessoas tremem e choram, até urinam, enquanto caminham para a execução... Perdeu assim o seu melhor amigo, Benny Temps… Antes de tudo acabar, vira Benny Temps com a família, com os seus filhos, a despedirem-se… Depois, Benny Temps caminhou para o local onde estava instalada a cadeira eléctrica.

11. Eram sete horas da manhã. As lâmpadas piscaram três vezes. Apagaram-se e voltaram a acender-se. A execução tinha terminado. Joaquim José Martinez deixou de usar lâmpadas como aquelas que havia na prisão. Hoje só usa lâmpadas de halogéneo. Elas são sinais e lembranças que deseja apagar para sempre da memória.

12. Eu também tenho na memória gente com quem convivi, e que depois foi executada. São, talvez, histórias para as memórias que um dia pretendo escrever – se tiver tempo para tal. Afinal, Angola faz parte do mundo… Angola também teve os seus momentos traumáticos.

13. Por vezes, surpreendo-me a pensar na sensação que se apossa de quem, de repente, vê desmoronar todo o seu projecto de vida – vê ruir tudo, a partir dos alicerces.

14. Eu sei que a pena de morte é demasiado controversa. Mas sei também que a sua utilidade, e, sobretudo, a lógica do seu direito ainda a tornam mais questionável… Vale, pois, a pena reflectirmos sobre as três questões que aqui apresentei. Infelizmente, elas são ainda questões do nosso tempo. Vê-se que a pena de morte não é uma questão do passado – como seria desejável.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A PRISÃO DE IDELPHONSE NIZEYIMANA

1. A prisão no dia 5 de Outubro, no Uganda, de Idelphonse Nizeyimana, é uma boa notícia, sobretudo para mim que tive ocasião de ler, muito recentemente, o emocionante livro escrito pela ruandeza Immaculée Ilibagiza, no qual ela relata, ao pormenor, uma das dimensões mais chocantes do seu drama, do da sua família e também do seu povo, nos conhecidos fatídicos 100 dias do ano de 1994. Nessa altura, perpetrou-se no Ruanda, sem dúvidas, um dos maiores massacres dos tempos modernos.

2. A detenção de Idelphonse Nizeyimana assume justamente a importância que aqui atribuo, pois ele não foi um qualquer peão naquele macabro jogo de morte. Ex-capitão do Exército ruandez, ex-chefe dos serviços de inteligência, Idelphonse Nizeyimana foi tão-somente um dos mais conhecidos chefes operacionais das milícias extremistas hutus, os Interahamwe, responsáveis pela eliminação de cerca de 800 mil tutsis e hutus moderados.

3. Eu penso que todos quantos acompanharam, com algum cuidado, o genocídio que aconteceu no Ruanda, têm hoje uma ideia bem formada sobre o que se passou nos 100 dias que se seguiram à morte do presidente Juvenal Habyarimana. Contudo, se lerem – tal como eu li – o livro de Immaculée Ilibagiza, intitulado “Sobrevivi”, consolidarão a convicção de que, quer os autores directores, quer os mentores do massacre não são homens e mulheres civilizados – são puramente selvagens. Há que ter coragem de o dizer, mesmo que a expressão pareça exagerada. Eles portaram-se como os animais na selva, desventrando, degolando, fazendo pilhas de corpos sem vida, desrespeitando os mais elementares direitos humanos. E, como tal, merecem ser detidos, julgados, e responsabilizados pelos actos bárbaros que cometeram.

4. Em Abril de 1994, o avião em que viajava Juvenal Habyarimana, de regresso da Tanzânia, juntamente como o presidente do Burundi, foi abatido ainda no ar, quando pretendia aterrar no aeroporto de Kigali, a capital do Ruanda. O anúncio da sua morte escancarou, então, as portas do inferno… Caiu sobre os vales e as colinas do Ruanda um dos maiores castigos humanos que a história moderna regista. Aquilo não foi um confronto entre exércitos, nem mesmo uma luta entre homens civis mas munidos cada um de instrumentos de defesa, foi um acto de pura barbárie. No Ruanda aconteceu um morticínio motivado simplesmente por recalcamentos históricos e pelo ódio étnico. Por arrasto, os extremistas hutus eliminaram também os da sua etnia que não tinham relutância em conviver com a diferença.

5. Para entendermos melhor este acto de verdadeira loucura colectiva, ouçamos o modo como Immaculée Ilibagiza descreve a imagem física do seu país: “… um país minúsculo, engastado como uma jóia na África Central. É tão belo e deslumbrante que é impossível não ver a mão de Deus nas suas colinas suaves e exuberantes, montanhas envoltas em nevoeiro, vales verdejantes e lagos cristalinos. As brisas suaves que sopram pelas colinas e vagueiam por entre as florestas de pinheiros e cedros, são perfumadas com o doce aroma dos lírios e crisântemos. E o clima é tão agradável o ano inteiro que os colonizadores alemães que chegaram no final do século XIX a baptizaram com «terra da Primavera eterna»”.

6. Sigamos ainda o modo como ela resume a sua infância e a inocência que povoava o seu pequeno mundo: “As forças do mal que dariam à luz um holocausto que mergulhou o meu amado país num mar de sangue, estavam escondidas de mim quando eu era criança. Enquanto jovem, tudo o que conhecia do mundo era a maravilhosa paisagem que me rodeava, a bondade dos meus vizinhos e o profundo amor dos meus pais e irmãos. Na nossa casa, o racismo e o preconceito eram desconhecidos. Não tinha consciência de que as pessoas pertenciam a diferentes tribos ou raças, e nunca tinha sequer ouvido os termos tutsi e hutu até ter ido para a escola.” Tudo isso, depois, acabou.

7. Quando iniciou o massacre, Immaculée Ilibagiza teve que se refugiar na casa de um pastor hutu, amigo da família, que lhe deu guarida e a mais cinco mulheres de etnia tutsi. Ficaram escondidas numa minúscula casa de banho secreta, durante 90 dias. Eis também o relato dramático que ela faz, de quando a procuravam para a matar: “Havia muitas vozes, muitos assassinos. Conseguia visualizá-los na minha mente: os meus amigos e vizinhos – que sempre me tinham cumprimentado com amor e bondade – a moverem-se pela casa, com lanças e catanas e chamando pelo meu nome.”

8. No Ruanda, foi perpetrado um massacre selectivo pelas milícias Interahamwe de que Idelphonse Nizeyimana era chefe operacional. Esse grupo de extermínio nasceu de um movimento juvenil criado pelo partido do presidente Juvenal Habyarimana e que atraiu para a s suas fileiras milhares de jovens sem-abrigo. Espalharam-se rapidamente por todo o país, tornando-se numa milícia sectária, exclusivamente constituída por membros da etnia hutu. Evoluíram para verdadeiros bandos de rufias sem rei nem roque. Foram eles que executaram o projecto engendrado por Idelphonse Nizeyimana, Felicien Kabuga (ainda a monte), Bagosora, e outros.

9. Como foi possível gente vivendo num meio tão puro e tão belo praticar actos de tamanha barbárie, como os que Immaculée Ilibagiza viu e retrata no seu livro? É isto que me faz acreditar que, por vezes, o demónio pode estar escondido até mesmo por entre as flores mais belas e aromáticas de um jardim… Um desses demónios será, seguramente, Idelphonse Nizeyimana, um dos chefes operacionais do massacre que chocou o mundo e que desnudou ao pormenor os meandros da mente humana.

10. Afinal, quando o ódio se sobrepõe ao amor, quando a insanidade toma o espaço devido à racionalidade, quando os instintos mais primários se sobrepõem à reflexão, todos perdemos a inocência… E até mesmo as crianças deixam de o ser, tornando-se adultos, compulsivamente...

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

UMA NOVA ORDEM MUNDIAL

1. Pelos dados que foram recentemente apresentados sobre o desempenho, no segundo trimestre do corrente ano, das principais economias do mundo, são cada vez mais evidentes os sinais de recuperação da economia mundial. Começam, assim, a ser sinalizados com taxas de crescimento positivas certos indicadores que expressam o seu desempenho. As previsões para os terceiro e quarto trimestres denotam, igualmente, uma recuperação, mesmo que tímida. Porém, para o ano de 2010, os analistas perspectivam mais sólidas melhorias.

2. Quanto ao desempenho de Angola, subsistem dúvidas, face às posições contraditórias assumidas pelas principais agências especializadas, mesmo que se assista a um discurso optimista por parte das nossas autoridades. O último Relatório do Fundo Monetário Internacional, divulgado na Quinta-Feira, dia 1 de Outubro, prevê uma quase estagnação da economia angolana, para este ano, ao apontar para uma taxa de 0,2%. Este valor está muito próximo do avançado pelo Banco Mundial, e fica, porém, demasiado distante dos 6,1% inseridos no Orçamento Geral do Estado revisto. Todavia, o Banco Mundial acredita que a economia angolana ainda assim possa crescer, desde que o sector petrolífero cresça acima dos 10%, o que se afigura pouco provável, se tidos em conta os dados que vêm saindo a público.

3. A actual crise económica éa mais grave, desde a Grande Depressão que teve lugar nos Estados Unidos da América, entre os anos 1929 e 1933. Nessa época, o processo de integração das diversas economias, nem de perto, nem de longe se parecia com o que hoje existe. A ainda pouca integração das economias nessa época explica, pelo menos em parte, que as repercussões além-fronteiras da Grande Depressão tenham sido relativamente reduzidas.

4. A Grande Depressão foi uma crise local. Mas, hoje, fruto das múltiplas interligações financeiras e económicas que se teceram, o descalabro do mercado imobiliário norte-americano e a consequente falência de algumas das suas principais agências financeiras, repercutiram-se, de imediato, quer nas restantes esferas da economia dos Estados Unidos da América, quer sobre o exterior. É caso para dizer que uma maleita americana contaminou a saúde de toda a economia mundial. Logo, a crise actual é global.

5. As crises nas economias de mercado são um fenómeno recorrente e fazem parte da própria essência do capitalismo. No passado, surgiram várias interpretações sobre a essência das crises do capitalismo. Recordo, por exemplo, a visão do economista soviético Nicolai Kondratiev, que atribuía a razão das crises às inovações tecnológicas. Ele chegou mesmo a postular que as depressões económicas prolongadas que acompanham as crises se repetiriam por períodos de 50 a 60 anos. Também o economista austríaco Joseph Schumpeter acompanhou o pensamento de Kondratiev, pormenorizando, porém, ainda mais o modo da repetição das crises. Por sua vez, John Maynard Keynes, talvez o economista mais renomado do século XX, contribuiu, sobretudo, com fórmulas para a sua superação.

6. Foi Karl Marx quem realizou o estudo mais aprofundado sobre o fenómeno das crises capitalistas. Para Marx, o excesso de produção, motivado pela concorrência irracional entre os produtores, estava na base das crises do sistema. A procura desenfreada do lucro por parte dos proprietários e o aumento da miséria das classes trabalhadoras criariam as condições para o desencadear de sucessivas crises. Marx chegou ao ponto de profetizar a emergência de uma Crise Geral capaz de enterrar, em definitivo, o sistema capitalista de produção. É a sua célebre Teoria da Catástrofe Inevitável do Capitalismo.

7. Quando o mundo mergulhou na presente crise global, alguns políticos e analistas terão pensado que, finalmente, acontecera a previsão de Karl Max. Mas, como vemos agora, tal não sucedeu. Felizmente, houve também políticos que perceberam bem a urgente necessidade de uma maior intervenção do Estado nos processos económicos, aumentando o seu poder como agente regulador.

8. Se comparadas também com a presente crise, as crises económicas que ocorreram na década de 1990 não tiveram lugar em economias desenvolvidas. Elas ocorreram, por exemplo, no México, em alguns países asiáticos, na Rússia e no Brasil, com uma repercussão muito menor. Elas nunca puseram em causa a sobrevivência da economia mundial.

9. A presente crise nasceu precisamente na economia mais desenvolvida do mundo, os Estados Unidos da América, e, logo de início, ela abalou praticamente todo o seu sistema financeiro. Pela importância global da economia norte-americana, a crise espalhou-se para a grande maioria dos países desenvolvidos. Depois, chegou a vez das economias emergentes e das economias dos países subdesenvolvidos receberem os seus impactos, evidenciando, pois, o carácter global da crise.

10. Uma pronta resposta dada pelos governos dos países mais avançados, ao cederem liquidez ao sistema financeiro, e ao definirem novas regras de funcionamento desse mesmo sistema financeiro, terá evitado um maior descontrolo ou até mesmo o colapso das economias. O governo dos Estados Unidos da América foi ainda mais longe, ao ponto de interferir directamente no funcionamento de algumas empresas industriais, como aconteceu com a General Motors. Barack Obama não só injectou liquidez pública no gigante do mundo automóvel, como também reestruturou e definiu novos padrões de produção.

11. Hoje, quando já se nota um crescente optimismo quanto às hipóteses de recuperação da economia mundial, é justo assinalar o papel desempenhado pelas principais economias emergentes, nomeadamente a China e Índia, e mesmo até o Brasil. Sem sombra de dúvidas, eles foram os verdadeiros motores da presente recuperação económica. Pelo seu papel crescente, merecerem, pois, um espaço mais alargado nas tomadas das decisões políticas na arena internacional.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O BRASIL PROFUNDO


1. Decorridos 6 anos, regressei ao Brasil, e novamente para participar numa Conferência sobre a problemática dos Direitos Humanos. Desta feita, o palco do encontro foi Belém (uma velha cidade com perto de 400 anos de idade; foi fundada em 1616). Belém é a capital do estado do Pará, norte do Brasil, na região da Amazónia. Reparem que, em superfície, o estado do Pará é tão grande como Angola.

2. Logo ao primeiro relance, um facto despertou a minha curiosidade: em Belém, dificilmente nos deparamos com indivíduos de tez escura. O tom predominante é o do mestiço, porém, um mestiço que se adivinha ser o fruto de muitos antigos cruzamentos, sobretudo, do cruzamento entre índios e brancos. São raros os mestiços produto da ligação de uma negra com um branco, de um negro com uma branca, ou mesmo de laços estabelecidos entre mestiços de múltiplas misturas, tal como é muito habitual em Angola.


3. Pensar que Angola é o exemplo mais acabado da multiplicidade de raças, é um redondo engano. Nós somos apenas uma parte do problema, pois a pluralidade de raças no mundo é muito mais vasta do que o pequeno leque que temos aqui, dentro das nossas fronteiras. A África do Sul, por exemplo, possui uma maior amplitude racial que nós, e essa diversidade assume matizes distintas, sempre que caminhamos de uma região para outra região desse país.

4. É claro que eu acredito que, com a presente confluência de povos estrangeiros para o nosso país, teremos também, no futuro, um mais vasto mosaico étnico e rácico. Daí advirão, seguramente, implicações, umas eventualmente positivas, outras talvez até negativas. Mas, não é propriamente sobre tais implicações que eu quero tratar aqui neste espaço. Eu quero tão-somente falar da diversidade étnica e cultural do Brasil, espicaçado pelo que observei na cidade brasileira de Belém, uma cidade guardiã de uma história centenária, com traços ainda evidentes de um passado de grande actividade comercial.

5. O Brasil tem a diversidade de um país para onde confluíram povos de várias origens, mas o estado da Bahia será, talvez, aquele que apresenta mais semelhanças com o continente africano. São semelhanças na tez dos indivíduos, maioritariamente, negros e mestiços. São semelhanças nas práticas culturais – música, culinária, religião. Há mesmo quem diga que Salvador, a capital do estado da Bahia (ela que foi também a primeira capital do Brasil), representa um misto de Luanda e Benguela da época colonial (mais Benguela que Luanda), sobretudo nas suas zonas históricas – Infelizmente, muitas dessas áreas históricas de Luanda e Benguela estão já a ser sistematicamente demolidas, a mando de quem desvaloriza a história dos povos e menospreza o seu património. Salvador da Bahia guarda também vestígios de outros povos do Golfo da Guiné. Diz-se que na Bahia podemos cruzar-nos, a qualquer instante, com alguém parecido connosco, com os nossos familiares, com os nossos amigos.

6. Há anos, por exemplo, o meu filho Justino (o “Pinto”, como é mais conhecido) visitou o estado brasileiro da Bahia. Ao percorrer a cidade capital, Salvador, o “Pinto” “viu” semelhanças entre as pessoas com quem se cruzava e muitos daqueles de que se lembrava de Angola. Entusiasmado, ligou-me do seu telemóvel, para me dizer que me estava a “ver”, em vários pontos daquela cidade brasileira... Também “via”, nas ruas e em outros locais, a mãe, os irmãos, os tios, os primos e mais parentes. “Via” até pessoas que já tinham morrido… Estava maravilhado com tantas parecenças … Naquele momento, para o meu filho “Pinto”, o mundo tornara-se um espaço muito pequeno, e a raça humana era, afinal, única, mesmo que espalhada por várias partes do nosso planeta...

7. Porém, se o meu filho “Pinto” tivesse estado, como eu estive há pouco tempo, no estado brasileiro do Pará, seria certamente muito mais difícil ele “ver” lá alguém da nossa família, muito menos os seus amigos de infância e adolescência... E os mortos, claro, esses tinham morrido definitivamente… Na cidade de Belém do Pará, circulam predominantemente outros sangues. Os nossos sangues são uma excepção. Prevalece, sim, o sangue de índio, mas misturado com o de europeus de múltiplas proveniências. Afinal, isso é um dos frutos históricos da colonização do Brasil. No Brasil entrecruzam-se sangues de todas as origens, e tal como os Estados Unidos, o Brasil transformou-se num dos laboratórios da humanidade.

8. Mesmo que eventualmente não tenham atingido a “dimensão laboratorial” desses dois grandes países, quase todas as colónias são, afinal, tributárias do seu passado colonial. Mais ou menos evidentes, guardam as marcas da história.

9. Não tenho receio de errar, ao afirmar que, se é verdade que os ciclos económicos determinaram a direcção das migrações, não é menos verdade que eles influenciaram também a composição demográfica das localidades. Como é lógico, o Brasil é um dos espelhos desse “fatalismo”. É um país muito distinto de uma região para outra região, de um estado para outro estado. E cada um desses espaços reflecte os ciclos económicos e, consequentemente, as migrações.

10. Podemos dizer que o Brasil é um verdadeiro mosaico cultural e étnico, que é dos países que melhor reflecte a pluralidade da espécie humana, salvaguardando, claro, os seus evidentes desequilíbrios.

11. No contexto da sua expansão colonial, foram os portugueses os primeiros povos estrangeiros que demandaram o Brasil. Depois, levaram consigo escravos provenientes de África, num processo migratório forçado que se prolongou por cerca de três séculos. Esse processo migratório forçado custou ao nosso continente a perda de milhões de habitantes: entre os que foram mortos aquando da apanha dos escravos, também os que morreram durante o seu transporte, e entre aqueles que, finalmente, chegaram aos pontos de destino. Não há números seguros sobre quantos africanos escravos morreram, sobre quantos chegaram ao destino, mas sabe-se que o número se saldou por dezenas de milhões. Foram apanhados e transportados, afinal, para criarem e desenvolverem uma agricultura de exportação nesse outro continente, as Américas.

12. No século XVIII, a economia de mineração intensificou o fluxo de força-de-trabalho escrava para o Brasil. Aí misturaram-se os interesses de portugueses, franceses, também de holandeses. O século XIX produziu outros fluxos migratórios, com o aparecimento de alemães, austríacos e até mesmo suíços, idos para regiões situadas mais ao sul, como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Santa Catarina.

13. O ano de 1888 foi o ano em que se libertaram os escravos. Em consequência, intensificou-se o movimento migratório internacional para o Brasil, com destaque para imigrantes provenientes da Europa e de algumas regiões da Ásia, muito em especial, fruto das grandes transformações sócio-demográficas que ocorriam nessas áreas. Assim, o Brasil conseguia resolver dois problemas: foi-se povoando e conseguiu mão-de-obra para o seu desenvolvimento. O “ciclo do café” acentuou ainda mais a entrada de estrangeiros de diversas nacionalidades, alguns saídos até da Europa Oriental.

14. A paralisação do envio de escravos de África e o aumento do fluxo de força-de-trabalho proveniente da Europa e de outras paragens determinou, pois, uma alteração sensível na composição étnica do Brasil, alteração que também obedeceu uma estratégia de “branqueamento”.

15. Segundo sei, o grande fluxo de imigrantes brancos para a região da Amazónia (incluindo, portanto, o estado do Pará) teve muito a ver com o “Ciclo da Borracha”, e a exploração da madeira. Foi mais difícil recrutar um grande volume de força-de-trabalho negra, pois tal “Ciclo” tem lugar quando já não vigorava o trabalho escravo. Talvez, então, daí, essa percentagem menor de sangue negro que se nota entre os povos paraenses.

16. Nas próximas viagens do meu filho “Pinto” ao Brasil, caso ele queira continuar a “ver” nas ruas a nossa família e até mesmo muitos dos seus amigos de infância e adolescência, aconselho-o a percorrer o Nordeste brasileiro. Talvez seja bom dar mais umas voltas pela Bahia. Que vá também ao Piauí e ao Maranhão. E porque não também, a Pernambuco, Paraíba, ou mesmo o Rio Grande do Norte? No Pará, não me “verá”, seguramente… Disso tenho eu a certeza. Pois, sendo, embora, um fruto de múltiplas misturas, pelo menos que eu saiba, não me corre nas veias qualquer gota de sangue de índio…

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O AGOSTO DOS MEUS SINAIS

1. Para mim, Agosto é talvez dos meses mais simbólicos. Logo no seu segundo dia, vêm-me à lembrança duas pessoas que me foram muito queridas: o meu colega de Faculdade, José António de Sousa Matos, o Zeca Matos, e um jovem, ainda quase criança, o Kuriva Jorge. Eles morreram nesse dia, num estúpido acidente de viação ocorrido no Brasil.

2. O Zeca Matos era brilhante, era cerebral. Na Faculdade de Economia dos nossos tempos, o Zeca era praticamente imbatível, quer em Matemática, quer em outras áreas que se socorressem do cálculo numérico. Rapaz simples, dedicado aos amigos. Guardo do Zeca Matos memórias inesquecíveis, como aquela em que ele me disse que chegaria o dia em que, para determinados níveis de responsabilidade, seriam nomeados indivíduos de tal forma incompetentes que escolheríamos entre “um mau” e “um pior ainda”… Não teríamos outra escolha, face ao nível de exigência de quem decidia. O Zeca pensava assim. E teve razão, já lá vão mais de 20 anos…

3. O Kuriva Jorge, filho do Felito e da Dadi, morreu juntamente com o Zeca. O Felito, o Félix Matias Neto, é meu companheiro de velha data, das cumplicidades da luta anti-colonial. A Dadi é uma amiga por quem nutro estima. Os dois puseram no mundo o Kuriva Jorge, um miúdo alegre e com grande sentido de humor. No sítio em que estivesse, o Kuriva tomava conta do espaço. Nós, os mais velhos, ouvíamo-lo com prazer, como se fôssemos contemporâneos. Sem preconceito de idade, o Kuriva Jorge tratava-me por “Primo Justo”. Parecia um adulto precoce... Quis o destino que ele partisse com o Zeca, naquele fatídico dia 2 de Agosto de 1985. Quando vou ao cemitério do Alto das Cruzes, não deixo de os visitar, na sua última morada.

4. O dia 11 de Agosto é também muito especial para mim. Foi a 11 de Agosto que nasceu o meu filho Nelito. O Nelito é muito chegado a mim, e revejo-me nalguns pormenores da sua personalidade. Nesse meu filho, aprecio, sobretudo, a vontade de vencer, a sua viva inteligência, a elegância no trato. Também gosto da sua ligeira vaidade, encoberta por detrás de uma elegante modéstia. Ele sabe estar. Ele sabe ser. Aliás, todos os meus filhos preenchem o espaço do meu orgulho.

5. A 13 de Agosto de 1943 nasceu a minha irmã que mais sofreu, enquanto viva, a minha irmã Elsa. Considero-a a cabeça mais valiosa que a minha mãe e o meu pai puseram no mundo. Sempre brilhante em matemática. Porém, desde criança, começou a sofrer de epilepsia, doença que arrastou aos ombros durante toda a vida, até que sucumbiu, enfraquecida por tanto sofrimento.

6. Quando a minha querida irmã Elsa morreu, senti uma profunda dor. Mas tive que me conformar: chegara ao término uma vida muito marcada pela dor. A Elsa era bondosa e sublime. Lembrei-me, então, dos cuidados que ela sempre requereu. A Néné (era este o seu nome familiar) desmaiava, não importava em que sítio. Por vezes, era acometida por desequilíbrios psicológicos que quase raiavam a loucura. Essa minha irmã que nasceu no mês de Agosto possuía uma espécie de loucura de génio. E eu controlava-a pondo-a a fazer complexos exercícios de matemática. Foi assim na nossa infância. Foi assim na nossa adolescência. Devo a ela também o simbolismo e a magia que para mim tem o mês de Agosto.

7. O mês de Agosto é igualmente o mês do Mário Pinto de Andrade, esse andarilho do mundo, o homem de quase todas as lutas de libertação de África, o intelectual que se emprestou à política e que da política nada recebeu – O Mário só deu…, independentemente de que país africano se tratasse. Quis o destino que o Mário tivesse nascido em Agosto e morrido também em Agosto. Ele partiu de Angola ainda jovem, para estudar em Portugal, precisamente no ano em que eu nasci. Depois, fez o seu percurso de vida. Levou uma vida de engajamento total pela libertação do nosso continente. Encontrámo-nos também em Agosto, na Zâmbia, no falhado Congresso do MPLA. Vínhamos de um longa caminhada: ele das suas lutas, eu, da cadeia, do Tarrafal. Abraçáramos a mesma causa: a libertação de Angola. Senti viva emoção quando o encontrei. Ele estava sentado numa mesinha colocada no exterior de uma tenda – Tinha caído o dia e começava a noite… àÀ luz de uma vela, o Mário a ler… O mês de Agosto é um mês de tantas emoções…

8. O meu amigo Mendes de Carvalho também é de Agosto, de 29. O Mendes de Carvalho é um velho amigo, é um Mais-Velho por quem nutro elevada estima e carinho. Conhecemo-nos no Tarrafal, tinha eu 22 anos e ele 46. Nos seus bilhetinhos, o Mendes assinava “Welema”, seu nome de guerra. Mais-Velho vivido, ele conhecia todas as nossas famílias. Por isso, recebeu-nos com um sentimento quase paternal. Ainda hoje temos uma amizade sem mácula. Devo-lhe uma atenção especial: já na Independência, quando voltei a ser preso, o velho companheiro do Tarrafal foi visitar-nos. Levou-nos o seu conforto. Manifestou-nos a sua estima e consideração. Ainda hoje, continuamos a ter causas em comum. O velho Leão que está dentre dele não morre. Nem o tempo conseguiu aparar-lhe a juba. O mês de Agosto também é dele.

9. Este Agosto que já passou quero dedicar especialmente a dois amigos antigos e muito queridos, eles que foram devorados no turbilhão, na orgia do pós-Independência: o Zé Van Dunem e a Sita Valles.

10. O texto que a Francisca Van Dunem, irmã do Zé, escreveu no Expresso, causou-me emoção. O Zé teria feito 60 anos de idade, se estivesse vivo, tal como a Sita. A Francisca bordejou um lindo e muito simbólico texto, intitulado “Parabéns Zé, Parabéns Sita”. Um hino de amor fraternal. O Zé Van Dunem nasceu a 29 de Agosto e a Sita a 23. Fomos colegas de escola – o Zé, no Liceu, e a Sita Valles, no Liceu e depois na Faculdade de Medicina, para onde entrámos no mesmo ano, já lá vão mais de 40 anos. Quando entrámos para a Faculdade, a Sita Valles foi considerada a “Miss Caloira”. Ela era de uma elegância e finura estonteantes…

11. O meu amigo Zé Van Dunem foi meu camarada de luta. A sua irmã, a Francisca, retrata-o com o carinho merecido: “Bom, justo, leal, compassivo e solidário, com uma dimensão única de coragem física num corpo franzino”. Simbolicamente, a irmã atribui-lhe ainda a beleza singular e distinta do melhor filho da sua mãe. Esse é também o Zé que eu guardo na minha memória.

12. E a Francisca Van Dunem, cunhada da Sita, descreveu-lhe a imagem com os seguintes traços: “Bela, altiva e indomável, herdeira da perturbadora beleza da filha da deusa Terra, a inteligência de Atena e a força determinada de Isis”. E prosseguiu, dizendo: “Agradecerei sempre a coragem sublime e a firmeza da mão que entrou pela última vez com o Zé na Fortaleza de S. Miguel”.

13. Entendem vocês melhor agora o porquê que eu digo que o mês de Agosto é um mês cheio de simbolismo? É que Agosto é, para mim, um mês de múltiplos sinais...