1. Os anos da guerra foram dramáticos: quer de um lado, quer do outro, morreram inúmeros angolanos; famílias inteiras desapareceram, sobretudo nas áreas rurais, onde a ferocidade foi maior; compatriotas nossos ficaram isolados em zonas remotas, sem contacto, ou com medo de se exporem e serem, então, tidos por perigosos ou inimigos.
2. Um dos maiores dramas humanos que a guerra produziu foi o afastamento de pais e filhos, idos para as frentes de combate, ou então, saídos para o exterior. Uns partiram para estudar, outros para trabalhar. Não poucos retornaram esporadicamente ao país, para assistirem, por exemplo, a funerais, ou então, nas épocas festivas – geralmente, pelo Natal. Houve quem nunca mais voltou a pisar solo angolano. Esses, no mínimo, perderam as ténues raízes que os ligavam à terra. Foi o caso do Miguel Ângelo, meu sobrinho, filho da minha irmã Antónia Pinto de Andrade e do Joaquim Gouveia. O Miguel Ângelo ficou lá fora, para sempre… Nunca mais retornará à nossa terra. O meu sobrinho, Miguel Ângelo, foi de vez… Ele que tinha ido apenas para estudar. Peço que partilhem comigo esta pequena parcela da minha intimidade.
3. A minha irmã Antónia foi de um grande simbolismo para a nossa família. Ela foi sempre referencial. Na nossa família, não nos habituámos a distinguir entre filhos de pai e mãe, ou filhos apenas de uma das partes. Fomos sempre muito unidos. Desconhecemos a figura do meio-irmão.
4. Causa-me algum incómodo, quando ouço, por exemplo, alguém dizer que fulano é meio-irmão de sicrano. Não foi essa a linguagem que aprendi no seio familiar. Fomos todos irmãos, sem restrições ou partilhas reduzidas. A minha irmã Antónia, que não era filha da minha mãe, tratava a minha mãe por mãe, com o mesmo carinho que nós, seus filhos de sangue. A minha mãe sempre dedicou um extremo carinho à minha irmã Antónia, sua enteada. Entre nós, estabeleceu-se uma afectividade pura. De algum modo, isso ajuda a explicar a sensibilidade e também o espírito solidário que cultivámos como um valor inquebrantável.
5. Depois de fazer o Liceu, no Liceu Salvador Correia, a minha irmã Antónia tirou o Curso Geral de Enfermagem. Foi sucessivamente transferida de uma Província para outra Província, até que conheceu Angola de lés-a-lés.
6. Já a trabalhar, a minha irmã Antónia regressava a Luanda por curtos períodos de tempo – um regresso que nos enchia de alegria, mas, também, de ansiedade. Para além do carinho, ela fazia-se acompanhar de prendas. Éramos órfãos de pai – o nosso pai comum morrera cedo. A Mana Antónia oferecia-nos calções novos, camisas, camisolas, sandálias, bikinis, sapatos. Fazia questão de nos levar ao restaurante, para quebrarmos um pouco aquela monotonia de órfãos com poucos recursos. A Antónia queria ocupar o espaço do pai que havia morrido…
7. A Antónia era carinhosa, muito meiga e atenciosa. Recebíamo-la sempre com entusiasmo. Preocupava-se connosco, com os nossos estudos, com a nossa educação, com o nosso futuro. O apoio da Mana Antónia completava o esforço e a dedicação da nossa mãe.
8. Depois, casou com o Joaquim Gouveia, que foi para nós, igualmente, como um irmão mais velho. Bom e extremamente educado, de boas maneiras. O casal tinha um padrão de vida razoável para a época, inclusive, já tinham casa e carro próprios. O Mano Gouveia vestia bem, gostava de fatos elegantes. Foi dele o primeiro fato que eu vesti – para ir a um funeral. Não me senti bem dentro do fato: o Gouveia era alto; eu, não.
9. O Mano Gouveia e a Mana Antónia tornaram-se a imagem do casal exemplar, do casal de respeito. Eram motivo da nossa admiração. Nunca lhes ouvi, por um momento que fosse, a voz alterada. Tenho sempre saudades da minha irmã Antónia e do meu cunhado Gouveia! …
10. Chegados de Cabo Verde, eu e o Vicente partimos para o Congo, passando por Cabinda. A Antónia e o Gouveia estavam em Cabinda – ela, enfermeira; ele, funcionário de Fazenda. Os anos que estivemos na cadeia deixaram nesses nossos irmãos uma enorme saudade. Revimo-nos brevemente. Tínhamos que partir, novamente, para iniciar uma nova aventura – eu e o Vicente.
11. O Gouveia apoiou-nos. Arranjou o estafeta que nos fez atravessar a fronteira de Massabi, com o Congo Brazzaville. Também se chamava Vicente. A minha irmã e o meu cunhado foram muito solidários connosco: entendiam a nossa inquietude e a nossa forma de estar na vida, compreendiam também o nosso modo de estar na política. Nós fomos sempre inquietos e inconformistas.
12. Em Cabinda, estavam também os seus dois únicos filhos, ainda pequenos, o Tó Quim e o Miguel Ângelo. O Tó Quim e o Miguel Ângelo eram sobrinhos exemplares: educados, de boas maneiras, bons filhos, bons sobrinhos. O meu cunhado Gouveia e a minha irmã Antónia adoravam os seus dois filhos. Os meus sobrinhos eram distintos: o Tó Quim sempre muito chegado ao pai, um pai que o cumulava de mimos e presentes; o Miguel Ângelo era um pouco mais expansivo – era muito próximo da mãe.
13. Retornando a Luanda, viveram no Bairro Alvalade. Até que a guerra fez com que tomassem a decisão de enviar os dois únicos filhos para Portugal, para estudar. Privaram-se da sua presença, para garantir o seu futuro, sem muitos sobressaltos. A minha irmã e o meu cunhado fizeram tudo para que nada faltasse aos seus filhos. Vi muitas vezes a melancolia escondida dentro dos seus olhos. Estavam a envelhecer com os filhos distantes. Primeiro, Lisboa; depois, partiram para Londres. Passados anos, os meus sobrinhos regressaram a Portugal, optando, então, por se fixarem no Algarve, em Portimão.
14. A minha irmã Antónia morreu de ataque cardíaco – seguramente sofrendo pela ausência dos filhos. O meu cunhado Gouveia morreu pouco depois. Não era possível continuar a viver sem a Antónia e sem os filhos. O Gouveia não resistiu a tanta saudade… Os meus sobrinhos viram-se, assim, bruscamente, sozinhos no mundo, e afastados do núcleo central da família.
15. Quando o Miguel Ângelo era pequeno, eu dizia, frequentemente: gostava que fosses pintor ou escultor, um artista como o Miguel Ângelo, o famoso italiano da época renascentista, o autor da Pietá e de David, o autor do Génesis e do Juízo Final, pintados na Capela Sistina. É que a minha irmã e o meu cunhado guardaram zelosamente consigo os desenhos que os meus sobrinhos fizeram na infância. Guardaram também os seus brinquedos.
16. O meu sobrinho Miguel ouvia-me e ria-se. Ele dizia que a única coincidência que havia entre si e o Miguel Ângelo, o italiano, era apenas no nome – nunca nos destinos da vida. Propus-lhe um outro percurso, o de Michelangelo Antonioni, o cineasta italiano, autor de L’Eclisse e de Il Deserto Rosso. O meu sobrinho Miguel Ângelo recusou o caminho do Michelangelo Antonioni. O intelectual é o Tó Quim, que começou por estudar Direito em Lisboa e foi para Londres para estudar História da Arte.
17. Que eu saiba, o meu sobrinho Miguel Ângelo foi, até hoje, o único Miguel Ângelo na estirpe dos Pinto de Andrade – A nossa estirpe tem séculos e vários caminhos percorridos. O Miguel morreu no Domingo, dia 25, em Portimão, abruptamente, fulminado por um ataque cardíaco – afinal, como morreu a sua mãe e alguns dos outros meus irmãos. O Miguel Ângelo morreu como, geralmente, morrem os Pinto de Andrade. Ele foi o único Miguel Ângelo da nossa linhagem, mas morreu como morrem muitos dos Pinto de Andrade: de ataque cardíaco. Afinal, essa é a nossa estranha forma de morrer...
2. Um dos maiores dramas humanos que a guerra produziu foi o afastamento de pais e filhos, idos para as frentes de combate, ou então, saídos para o exterior. Uns partiram para estudar, outros para trabalhar. Não poucos retornaram esporadicamente ao país, para assistirem, por exemplo, a funerais, ou então, nas épocas festivas – geralmente, pelo Natal. Houve quem nunca mais voltou a pisar solo angolano. Esses, no mínimo, perderam as ténues raízes que os ligavam à terra. Foi o caso do Miguel Ângelo, meu sobrinho, filho da minha irmã Antónia Pinto de Andrade e do Joaquim Gouveia. O Miguel Ângelo ficou lá fora, para sempre… Nunca mais retornará à nossa terra. O meu sobrinho, Miguel Ângelo, foi de vez… Ele que tinha ido apenas para estudar. Peço que partilhem comigo esta pequena parcela da minha intimidade.
3. A minha irmã Antónia foi de um grande simbolismo para a nossa família. Ela foi sempre referencial. Na nossa família, não nos habituámos a distinguir entre filhos de pai e mãe, ou filhos apenas de uma das partes. Fomos sempre muito unidos. Desconhecemos a figura do meio-irmão.
4. Causa-me algum incómodo, quando ouço, por exemplo, alguém dizer que fulano é meio-irmão de sicrano. Não foi essa a linguagem que aprendi no seio familiar. Fomos todos irmãos, sem restrições ou partilhas reduzidas. A minha irmã Antónia, que não era filha da minha mãe, tratava a minha mãe por mãe, com o mesmo carinho que nós, seus filhos de sangue. A minha mãe sempre dedicou um extremo carinho à minha irmã Antónia, sua enteada. Entre nós, estabeleceu-se uma afectividade pura. De algum modo, isso ajuda a explicar a sensibilidade e também o espírito solidário que cultivámos como um valor inquebrantável.
5. Depois de fazer o Liceu, no Liceu Salvador Correia, a minha irmã Antónia tirou o Curso Geral de Enfermagem. Foi sucessivamente transferida de uma Província para outra Província, até que conheceu Angola de lés-a-lés.
6. Já a trabalhar, a minha irmã Antónia regressava a Luanda por curtos períodos de tempo – um regresso que nos enchia de alegria, mas, também, de ansiedade. Para além do carinho, ela fazia-se acompanhar de prendas. Éramos órfãos de pai – o nosso pai comum morrera cedo. A Mana Antónia oferecia-nos calções novos, camisas, camisolas, sandálias, bikinis, sapatos. Fazia questão de nos levar ao restaurante, para quebrarmos um pouco aquela monotonia de órfãos com poucos recursos. A Antónia queria ocupar o espaço do pai que havia morrido…
7. A Antónia era carinhosa, muito meiga e atenciosa. Recebíamo-la sempre com entusiasmo. Preocupava-se connosco, com os nossos estudos, com a nossa educação, com o nosso futuro. O apoio da Mana Antónia completava o esforço e a dedicação da nossa mãe.
8. Depois, casou com o Joaquim Gouveia, que foi para nós, igualmente, como um irmão mais velho. Bom e extremamente educado, de boas maneiras. O casal tinha um padrão de vida razoável para a época, inclusive, já tinham casa e carro próprios. O Mano Gouveia vestia bem, gostava de fatos elegantes. Foi dele o primeiro fato que eu vesti – para ir a um funeral. Não me senti bem dentro do fato: o Gouveia era alto; eu, não.
9. O Mano Gouveia e a Mana Antónia tornaram-se a imagem do casal exemplar, do casal de respeito. Eram motivo da nossa admiração. Nunca lhes ouvi, por um momento que fosse, a voz alterada. Tenho sempre saudades da minha irmã Antónia e do meu cunhado Gouveia! …
10. Chegados de Cabo Verde, eu e o Vicente partimos para o Congo, passando por Cabinda. A Antónia e o Gouveia estavam em Cabinda – ela, enfermeira; ele, funcionário de Fazenda. Os anos que estivemos na cadeia deixaram nesses nossos irmãos uma enorme saudade. Revimo-nos brevemente. Tínhamos que partir, novamente, para iniciar uma nova aventura – eu e o Vicente.
11. O Gouveia apoiou-nos. Arranjou o estafeta que nos fez atravessar a fronteira de Massabi, com o Congo Brazzaville. Também se chamava Vicente. A minha irmã e o meu cunhado foram muito solidários connosco: entendiam a nossa inquietude e a nossa forma de estar na vida, compreendiam também o nosso modo de estar na política. Nós fomos sempre inquietos e inconformistas.
12. Em Cabinda, estavam também os seus dois únicos filhos, ainda pequenos, o Tó Quim e o Miguel Ângelo. O Tó Quim e o Miguel Ângelo eram sobrinhos exemplares: educados, de boas maneiras, bons filhos, bons sobrinhos. O meu cunhado Gouveia e a minha irmã Antónia adoravam os seus dois filhos. Os meus sobrinhos eram distintos: o Tó Quim sempre muito chegado ao pai, um pai que o cumulava de mimos e presentes; o Miguel Ângelo era um pouco mais expansivo – era muito próximo da mãe.
13. Retornando a Luanda, viveram no Bairro Alvalade. Até que a guerra fez com que tomassem a decisão de enviar os dois únicos filhos para Portugal, para estudar. Privaram-se da sua presença, para garantir o seu futuro, sem muitos sobressaltos. A minha irmã e o meu cunhado fizeram tudo para que nada faltasse aos seus filhos. Vi muitas vezes a melancolia escondida dentro dos seus olhos. Estavam a envelhecer com os filhos distantes. Primeiro, Lisboa; depois, partiram para Londres. Passados anos, os meus sobrinhos regressaram a Portugal, optando, então, por se fixarem no Algarve, em Portimão.
14. A minha irmã Antónia morreu de ataque cardíaco – seguramente sofrendo pela ausência dos filhos. O meu cunhado Gouveia morreu pouco depois. Não era possível continuar a viver sem a Antónia e sem os filhos. O Gouveia não resistiu a tanta saudade… Os meus sobrinhos viram-se, assim, bruscamente, sozinhos no mundo, e afastados do núcleo central da família.
15. Quando o Miguel Ângelo era pequeno, eu dizia, frequentemente: gostava que fosses pintor ou escultor, um artista como o Miguel Ângelo, o famoso italiano da época renascentista, o autor da Pietá e de David, o autor do Génesis e do Juízo Final, pintados na Capela Sistina. É que a minha irmã e o meu cunhado guardaram zelosamente consigo os desenhos que os meus sobrinhos fizeram na infância. Guardaram também os seus brinquedos.
16. O meu sobrinho Miguel ouvia-me e ria-se. Ele dizia que a única coincidência que havia entre si e o Miguel Ângelo, o italiano, era apenas no nome – nunca nos destinos da vida. Propus-lhe um outro percurso, o de Michelangelo Antonioni, o cineasta italiano, autor de L’Eclisse e de Il Deserto Rosso. O meu sobrinho Miguel Ângelo recusou o caminho do Michelangelo Antonioni. O intelectual é o Tó Quim, que começou por estudar Direito em Lisboa e foi para Londres para estudar História da Arte.
17. Que eu saiba, o meu sobrinho Miguel Ângelo foi, até hoje, o único Miguel Ângelo na estirpe dos Pinto de Andrade – A nossa estirpe tem séculos e vários caminhos percorridos. O Miguel morreu no Domingo, dia 25, em Portimão, abruptamente, fulminado por um ataque cardíaco – afinal, como morreu a sua mãe e alguns dos outros meus irmãos. O Miguel Ângelo morreu como, geralmente, morrem os Pinto de Andrade. Ele foi o único Miguel Ângelo da nossa linhagem, mas morreu como morrem muitos dos Pinto de Andrade: de ataque cardíaco. Afinal, essa é a nossa estranha forma de morrer...
Terá porventura morrido de saudades de Angola...
ResponderEliminarCorrendo o risco de entrar em demasia numa intimidade que permite no seu blog aproveito para lhe dar os meus pêsames...
ResponderEliminare desejar que nunca mais Angola necessite de viver longe dos dos seus filhos.
Na vida a paz nunca é demais!
Esses pêsames e sentimentos que se dizem ou se demonstram, as vezes parecem insignificantes diante de tamanha dor. Mas fica registada a solidariedade no momento de dor, dor que pela guerra esperamos não mais sentir.
ResponderEliminarA família Pinto de Andrade é muito conhecida, de todos aqueles que se interessam por Angola.
ResponderEliminarEu sou português, não vivi em Angola, mas adoro essa terra. Leio muito sobre Angola, possivelmente até conheco mais de Angola, que muitos angolanos...
Nos meus tempos de ócio, navego na net e, procuro tudo que fale de Angola. Não sei de onde me vem este amor pela sua terra. Dito isto, gostei muito desta linda história de amor da família Pinto de Andrade. Aceite os meus sentidos pêsames.
A. Madeira