1. A natureza agrediu de novo o país mais pobre do Hemisfério Ocidental, o Haiti. E fê-lo de uma forma implacável. A história do Haiti está matizada de agressões de diversa ordem, umas vezes, por parte da natureza, mas, a maioria, foi a acção próprio homem que as levou a cabo.
2. Quando é a natureza age contra o Haiti, os seus impactos são amplificados pelos estragos historicamente causados pelo homem. É verdade, se a natureza encontra criadas as condições, então, o desastre ainda é maior, e os danos humanos são incalculáveis.
3. No dia 13, uma notícia aterradora tomou conta das estações de rádio e de televisão de todo o mundo. Logo pela manhã, ouviu-se dizer: “Eclodiu um forte sismo em Port-au-Prince, a capital do Haiti. As previsões são catastróficas, quer em danos físicos, quer em perda de vidas humanas”. A informação foi-se repetindo e os dados começaram a ser cada vez mais pormenorizados: gente soterrada, mortos acumulados nas estradas e nas vielas, casas derrubadas, bairros de lata em escombros, pessoas em desespero, nenhuma capacidade de atendimento aos sinistrados. Estava tudo em ruínas. Até o Estado parecia ter desaparecido por entre cacos, pedregulhos, chapas de zinco retorcidas, telhas quebradas, troncos de árvores tombados, carros encalhados em qualquer parte, corpos e mais corpos… Via-se, também, gente a procura de nada, sem saberem para onde ir… Era o caos total…
4. Veio-me à cabeça a história do Haiti: o modo como foi povoado; o sofrimento dos homens, primeiro para se adaptarem à nova natureza, ao seu novo mundo, a todas as circunstâncias e contingências; também como os homens agiram sobre os outros homens, uns querendo subjugar os outros, em função da origem geográfica e pigmentação da pele (foi assim que se consolidou aquela estrutura social injusta, nada condizente com os proclamados desígnios divinos; depois lembrei-me da luta dos subjugados, eles a querem desprender-se das algemas e das grilhetas… E, finalmente, a conseguirem. Ao lado, e na continuidade da escravatura, emergiu uma sociedade crioula, típica do Mar do Caribe - o fruto, afinal, das múltiplas miscigenações que os homens teceram. Lembrei-me de tudo isso, de um modo sereno, mas empolgante, arrebatador, dominador, introspectivo. Procurava entender melhor a história dos homens, os homens sujeitos, fazedores da sua própria história…
5. Surgiram, depois, os apelos à comunidade internacional: era preciso socorrer o povo haitiano, que estava a conhecer o maior desastre físico da sua história moderna. Não podiam contabilizar-se diferenças políticas ou ideológicas. Somos apenas seres humanos, seres de carne e osso, somos alma de gente. É a espécie humana que está a ser agredida pela natureza. Passe-se por cima de todas as barreiras, as naturais e as artificiais.
6. Os edifícios públicos não escaparam. A Catedral de Port-au-Prince ficou em ruínas; os hospitais desabaram, sobre os doentes, sobre os feridos, sobre os incapacitados. O Palácio Presidencial ruiu. O Presidente da República, René Prèval, escapou ileso. Pelo menos isso. Estava aí um vestígio do poder de Estado. René Prèval disse em público que ele próprio deixara de ter casa – vi-o na rua, descoroçoado, como um simples cidadão.
7. O pessoal das Nações Unidas, o principal suporte institucional do Haiti, contabilizado entre os milhares de vítimas: soldados, funcionários civis, polícias. Agentes das organizações humanitárias não foram poupados. Religiosos e religiosas. O caos não perdoa nacionais nem estrangeiros, habitantes regulares ou simplesmente de passagem, gente rica ou gente pobre. O terramoto engoliu tudo, ou quase tudo. Era a fúria de um dos elementos.
8. Há poucos anos, foram ciclones que arrasaram aquele pobre país, um país castigado por todos os elementos: chuvas diluvianas, ventos em fúria, vagas marítimas ávidas de ganhar o espaço da terra, mesmo que seja apenas temporariamente… Aparecem mesmo pragas de todo o tipo. O Haiti tem sido sistematicamente castigado.
9. Estou habituado a ver imagens de catástrofes. Emociono-me sempre. Fico preso ao televisor. Elas servem para testar a minha capacidade de resistência. Irmano-me com os que sofrem. Coloco-me no seu lugar. Procuro sentir a sua dor, como se fosse um deles… É a ilusão de que, partilhando com eles a dor, a sua dor fica mais aliviada, porque repartida por mim, por mais alguém. Mas a dor não tem fim, também não tem quantidade. Não dá para repartir. A dor é absoluta… A dor dos que sofrem é mais forte, é mais carnal, é telúrica. Vem da alma e não do intelecto. A dor é um sofrimento que não é partilhável nem transmissível.
10. Mas não é somente a natureza que tem agredido o Haiti. A sua história também tem sido dramática. A história do Haiti está tingida de sangue e vestida de luto. Não lhe bastou ser um povo descendente de escravos arrancados do seu meio, da sua gente. Os descendentes dos escravos também macularam, e de que maneira, os descendem dos escravos. A origem comum nem sempre os irmanou. Esqueceram-se da sua ancestralidade.
11. O Haiti ocupa parte da Ilha Hispaniola, situada no mar do Caribe, perto de Cuba e das Bahamas. Cristóvão Colombo encontrou a ilha em 1492, e deu-lhe o nome. Depois mudaram-lhe o nome para São Domingos, em homenagem ao espanhol São Domingos de Guzman. Do outro lado da ilha fica a República Dominicana, a terra dos merengues de Luís Kalaf e Luís Quintero, Angel Viloria, dos anos 50 e 60 do séc. XX.
12. No séc. XVII, sob domínio francês, a ilha de São Domingos prosperou à custa da exportação de café, açúcar e cacau, muito por força da exploração do trabalho escravo.
13. São Domingos tornou-se célebre, por causa da revolta dos escravos capitaneados por Toussaint Louverture. Feito governador-geral, Toussaint Louverure foi deposto e morto pelos franceses. Seguiu-se-lhe Jacques Dessalines que organizou o exército, derrotando, em 1803, os franceses. Dessalines proclamou a independência e fez-se aclamar Imperador. Afinal, o descendente de escravos tinha como referência Napoleão Bonaparte.
14. Os interesses franceses e espanhóis fizeram-se sentir de um modo contraditório, provocando a divisão da ilha de São Domingos em duas partes: o Haiti, sob influência francesa, com capital em Port-au-Prince, e a República Dominicana, situada na sua parte oriental, mais dependente da Espanha, com capital em Santo Domingo.
15. A história da Ilha de São Domingos, e particularmente do Haiti, está tingida de muito sangue. Quer pela acção dos homens, quer pelos caprichos da natureza. Os golpes de Estados e assassinatos têm sido uma constante. Os Estados Unidos da América não deixaram também de exercer a sua acção, influenciando a política daqueles povos.
16. A era do ditador François Duvalier, o Papá Doc, foi, sobretudo, marcada pelo terror policial. Médico de profissão, Papá Doc assentou o seu poder nos “tontons macoutes”, a sua guarda pessoal, e no vodú, reminiscência cultural de raízes africanas, uma mistura de religião com feitiçaria. A era do Papá Doc foi devastadora. O Papá Doc fez questão de eliminar a elite pensante do país. Provocou o êxodo dos que sobraram, uns para as Américas, outros para a Europa, em especial a França. Ainda encontrei intelectuais haitianos no Congo Brazzaville, ligados aos meus camaradas. Mário Pinto de Andrade, por exemplo, teve um estreito relacionamento com intelectuais haitianos e caribenhos de um modo geral: René Depreste, Sarah Maldoror, misturados com a diáspora intelectual africana em Paris: Allioune Diop, Aimé Césaire, Cheikh Anta Diop, Senghor, Sembène Ousmane.
17. Quando o Papá Doc morreu, sucedeu-lhe o filho, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc. Ambos praticaram uma política implacável contra a oposição, que varreram do mapa, e contra a Igreja Católica.
18. Com a queda de Baby Doc – que depois se refugiou em França – sucederam-se uns governantes altamente autoritários, ou extravagantes, como o padre populista Jean-Bertrand Aristide, derrubado, em 1991, pelo general Raul Cedrás. Aristide regressou ao poder por força da pressão internacional. A passagem pelo poder de Jean-Bertrand Aristide tem matéria para uma crónica especial, tal foi a sua influência na vida política do Haiti dos nossos tempos.
19. O Haiti parece um país amaldiçoado. Sofre a demência dos homens e a inclemência da natureza. Desta vez, foi a natureza que agiu, demolindo, derrubando, queimando, ferindo, matando indiscriminadamente.
20. Uma das sobreviventes desta catástrofe, ao assistir o terramoto a partir da varanda, filmou parte da devastação, e gravou no seu pequeno aparelho esta frase que correu o mundo: “Ai, meu Deus! Será que isto é o fim do mundo?”.
21. Não era o fim do mundo... Era, sim, e mais uma vez, a natureza a castigar o povo haitiano. As imagens que nos chegaram são aterradoras… Parecia mesmo o fim do mundo…
2. Quando é a natureza age contra o Haiti, os seus impactos são amplificados pelos estragos historicamente causados pelo homem. É verdade, se a natureza encontra criadas as condições, então, o desastre ainda é maior, e os danos humanos são incalculáveis.
3. No dia 13, uma notícia aterradora tomou conta das estações de rádio e de televisão de todo o mundo. Logo pela manhã, ouviu-se dizer: “Eclodiu um forte sismo em Port-au-Prince, a capital do Haiti. As previsões são catastróficas, quer em danos físicos, quer em perda de vidas humanas”. A informação foi-se repetindo e os dados começaram a ser cada vez mais pormenorizados: gente soterrada, mortos acumulados nas estradas e nas vielas, casas derrubadas, bairros de lata em escombros, pessoas em desespero, nenhuma capacidade de atendimento aos sinistrados. Estava tudo em ruínas. Até o Estado parecia ter desaparecido por entre cacos, pedregulhos, chapas de zinco retorcidas, telhas quebradas, troncos de árvores tombados, carros encalhados em qualquer parte, corpos e mais corpos… Via-se, também, gente a procura de nada, sem saberem para onde ir… Era o caos total…
4. Veio-me à cabeça a história do Haiti: o modo como foi povoado; o sofrimento dos homens, primeiro para se adaptarem à nova natureza, ao seu novo mundo, a todas as circunstâncias e contingências; também como os homens agiram sobre os outros homens, uns querendo subjugar os outros, em função da origem geográfica e pigmentação da pele (foi assim que se consolidou aquela estrutura social injusta, nada condizente com os proclamados desígnios divinos; depois lembrei-me da luta dos subjugados, eles a querem desprender-se das algemas e das grilhetas… E, finalmente, a conseguirem. Ao lado, e na continuidade da escravatura, emergiu uma sociedade crioula, típica do Mar do Caribe - o fruto, afinal, das múltiplas miscigenações que os homens teceram. Lembrei-me de tudo isso, de um modo sereno, mas empolgante, arrebatador, dominador, introspectivo. Procurava entender melhor a história dos homens, os homens sujeitos, fazedores da sua própria história…
5. Surgiram, depois, os apelos à comunidade internacional: era preciso socorrer o povo haitiano, que estava a conhecer o maior desastre físico da sua história moderna. Não podiam contabilizar-se diferenças políticas ou ideológicas. Somos apenas seres humanos, seres de carne e osso, somos alma de gente. É a espécie humana que está a ser agredida pela natureza. Passe-se por cima de todas as barreiras, as naturais e as artificiais.
6. Os edifícios públicos não escaparam. A Catedral de Port-au-Prince ficou em ruínas; os hospitais desabaram, sobre os doentes, sobre os feridos, sobre os incapacitados. O Palácio Presidencial ruiu. O Presidente da República, René Prèval, escapou ileso. Pelo menos isso. Estava aí um vestígio do poder de Estado. René Prèval disse em público que ele próprio deixara de ter casa – vi-o na rua, descoroçoado, como um simples cidadão.
7. O pessoal das Nações Unidas, o principal suporte institucional do Haiti, contabilizado entre os milhares de vítimas: soldados, funcionários civis, polícias. Agentes das organizações humanitárias não foram poupados. Religiosos e religiosas. O caos não perdoa nacionais nem estrangeiros, habitantes regulares ou simplesmente de passagem, gente rica ou gente pobre. O terramoto engoliu tudo, ou quase tudo. Era a fúria de um dos elementos.
8. Há poucos anos, foram ciclones que arrasaram aquele pobre país, um país castigado por todos os elementos: chuvas diluvianas, ventos em fúria, vagas marítimas ávidas de ganhar o espaço da terra, mesmo que seja apenas temporariamente… Aparecem mesmo pragas de todo o tipo. O Haiti tem sido sistematicamente castigado.
9. Estou habituado a ver imagens de catástrofes. Emociono-me sempre. Fico preso ao televisor. Elas servem para testar a minha capacidade de resistência. Irmano-me com os que sofrem. Coloco-me no seu lugar. Procuro sentir a sua dor, como se fosse um deles… É a ilusão de que, partilhando com eles a dor, a sua dor fica mais aliviada, porque repartida por mim, por mais alguém. Mas a dor não tem fim, também não tem quantidade. Não dá para repartir. A dor é absoluta… A dor dos que sofrem é mais forte, é mais carnal, é telúrica. Vem da alma e não do intelecto. A dor é um sofrimento que não é partilhável nem transmissível.
10. Mas não é somente a natureza que tem agredido o Haiti. A sua história também tem sido dramática. A história do Haiti está tingida de sangue e vestida de luto. Não lhe bastou ser um povo descendente de escravos arrancados do seu meio, da sua gente. Os descendentes dos escravos também macularam, e de que maneira, os descendem dos escravos. A origem comum nem sempre os irmanou. Esqueceram-se da sua ancestralidade.
11. O Haiti ocupa parte da Ilha Hispaniola, situada no mar do Caribe, perto de Cuba e das Bahamas. Cristóvão Colombo encontrou a ilha em 1492, e deu-lhe o nome. Depois mudaram-lhe o nome para São Domingos, em homenagem ao espanhol São Domingos de Guzman. Do outro lado da ilha fica a República Dominicana, a terra dos merengues de Luís Kalaf e Luís Quintero, Angel Viloria, dos anos 50 e 60 do séc. XX.
12. No séc. XVII, sob domínio francês, a ilha de São Domingos prosperou à custa da exportação de café, açúcar e cacau, muito por força da exploração do trabalho escravo.
13. São Domingos tornou-se célebre, por causa da revolta dos escravos capitaneados por Toussaint Louverture. Feito governador-geral, Toussaint Louverure foi deposto e morto pelos franceses. Seguiu-se-lhe Jacques Dessalines que organizou o exército, derrotando, em 1803, os franceses. Dessalines proclamou a independência e fez-se aclamar Imperador. Afinal, o descendente de escravos tinha como referência Napoleão Bonaparte.
14. Os interesses franceses e espanhóis fizeram-se sentir de um modo contraditório, provocando a divisão da ilha de São Domingos em duas partes: o Haiti, sob influência francesa, com capital em Port-au-Prince, e a República Dominicana, situada na sua parte oriental, mais dependente da Espanha, com capital em Santo Domingo.
15. A história da Ilha de São Domingos, e particularmente do Haiti, está tingida de muito sangue. Quer pela acção dos homens, quer pelos caprichos da natureza. Os golpes de Estados e assassinatos têm sido uma constante. Os Estados Unidos da América não deixaram também de exercer a sua acção, influenciando a política daqueles povos.
16. A era do ditador François Duvalier, o Papá Doc, foi, sobretudo, marcada pelo terror policial. Médico de profissão, Papá Doc assentou o seu poder nos “tontons macoutes”, a sua guarda pessoal, e no vodú, reminiscência cultural de raízes africanas, uma mistura de religião com feitiçaria. A era do Papá Doc foi devastadora. O Papá Doc fez questão de eliminar a elite pensante do país. Provocou o êxodo dos que sobraram, uns para as Américas, outros para a Europa, em especial a França. Ainda encontrei intelectuais haitianos no Congo Brazzaville, ligados aos meus camaradas. Mário Pinto de Andrade, por exemplo, teve um estreito relacionamento com intelectuais haitianos e caribenhos de um modo geral: René Depreste, Sarah Maldoror, misturados com a diáspora intelectual africana em Paris: Allioune Diop, Aimé Césaire, Cheikh Anta Diop, Senghor, Sembène Ousmane.
17. Quando o Papá Doc morreu, sucedeu-lhe o filho, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc. Ambos praticaram uma política implacável contra a oposição, que varreram do mapa, e contra a Igreja Católica.
18. Com a queda de Baby Doc – que depois se refugiou em França – sucederam-se uns governantes altamente autoritários, ou extravagantes, como o padre populista Jean-Bertrand Aristide, derrubado, em 1991, pelo general Raul Cedrás. Aristide regressou ao poder por força da pressão internacional. A passagem pelo poder de Jean-Bertrand Aristide tem matéria para uma crónica especial, tal foi a sua influência na vida política do Haiti dos nossos tempos.
19. O Haiti parece um país amaldiçoado. Sofre a demência dos homens e a inclemência da natureza. Desta vez, foi a natureza que agiu, demolindo, derrubando, queimando, ferindo, matando indiscriminadamente.
20. Uma das sobreviventes desta catástrofe, ao assistir o terramoto a partir da varanda, filmou parte da devastação, e gravou no seu pequeno aparelho esta frase que correu o mundo: “Ai, meu Deus! Será que isto é o fim do mundo?”.
21. Não era o fim do mundo... Era, sim, e mais uma vez, a natureza a castigar o povo haitiano. As imagens que nos chegaram são aterradoras… Parecia mesmo o fim do mundo…
Senhor Pinto de Andrade! tengo 3 perguntas para ti: Angola, que manda explorar o petroleo de Cabinda e Zaire e os diamantes das Luandas, se difere do Haiti como, quanto a pobreza e sofrimento humano? As imagens do Haiti que te chegam se diferem das imagens de Angola que te chegavam antes do ano 2002 como? Numa das tuas frases disseste que os haitianos ja se esqueceram da tua ancestralidade, e eu queria saber se o senhor Andadrade pertence a que tribo/etnia em Angola e que lingua angolana falas?
ResponderEliminar