O JOÃO SÁ – MEU AMIGO
- Pelo modo como
conduzi a minha vida, a sociedade conhece-me mais pela intervenção social
que faço, ou como político. Por essa razão, serão poucos os que conseguirão
ver-me como o cidadão simples que eu também sou.
- Por detrás do
activista social e do homem político, está ainda a minha outra face, a
outra dimensão da vida que eu muito prezo: o homem de carne e osso como os
outros.
- Eu tenho a perfeita
dimensão da dor, emociono-me e deleito-me com a singeleza e a beleza da
vida, sei rir e sei observar, aprecio a boa música e sigo apaixonado o
ritmo da dança. Gosto de acompanhar um bom jogo ou outra qualquer
competição desportiva, e não consigo conter as lágrimas quando o
sofrimento da minha alma se sobrepõe à força da minha razão. Sobretudo, eu
não tenho vergonha de chorar quando perco um Bom Amigo.
- Aprecio muito a
minha condição de ser humano normal, tal como a maioria de vocês que me
ouvem ou que me lêem. Para mim, a política e o activismo social têm um forte
sentido ético, mas não são tudo na vida. A política e o activismo social
são apenas e tão-somente uma simples consequência do firme compromisso que
assumi com a história. Sou fiel aos meus afectos, e procuro diariamente
apurar todos os meus sentidos.
- Ausentei-me do país
por poucos dias e recebi, como uma autêntica pedrada, a notícia da morte
de um Amigo de uma vida, numa amizade que começámos a construir ainda na
nossa infância. Morreu o meu Amigo João Baptista Cirilo de Sá – sim, o
João Sá do Bairro Indígena!
- Pelo que consegui
apreender ao longo da vida, são poucas as amizades que se constroem na
infância e que não perduram. Na maioria das vezes, essas amizades são
perenes.
- A minha amizade com
o João Sá venceu as turbulências da vida, sobrepôs-se às intempéries de
todo o tipo que foram ocorrendo, transformou numa simples migalha a
grandeza do tempo – venceu o tempo e a distância. A nossa amizade foi se
edificando a partir da estaca zero, quando ainda éramos simples cidadãos
sem bens nem títulos, sem cargos nem funções, quando a amizade assentava
na pureza do sentimento. Estudámos juntos, durante um ano lectivo, no
Colégio 28 de Maio, o Colégio da Dona Berta.
- O João Sá fez toda a
instrução primária no Colégio 28 de Maio. Eu frequentei-o durante a preparação
para o Exame de Admissão ao ensino secundário, e apenas no período da
tarde porque, no período da manha, estudava na escola pública – na Escola
83.
- O João Sá entrou
precoce para o Liceu Salvador Correia, com cerca de 9 ou 10 anos de idade.
Eu era um pouco mais velho que ele e, por isso, assumi instintivamente a
missão de o proteger.
- Recordo sempre o
episódio da nossa primeira aula no Liceu: o João Sá a sair a correr e a
chorar da aula de Matemática. Ficou com medo do aspecto duro, do ar carrancudo,
e da voz sonora do professor de Matemática, o Glú-Glú.
- Ao vê-lo sair da
sala e a chorar no corredor, eu também saí, para o acalmar... Disse-lhe que
o professor não fazia mal, que agora já não era como no Colégio 28 de Maio,
onde o tratamento era personalizado. Ali éramos tratados familiarmente,
como se fôssemos filhos dos professores e, sobretudo, filhos da Dona Berta
que era como se fosse a mãe de todos nós.
- E lá fomos nós
estudando e fazendo o que todos os jovens fazem: fomos, em conjunto, descobrindo
os segredos e os prazeres da vida. Crescemos unidos. Lá fomos alargando o
nosso círculo de amizades: o Gigi e o Tilú Mendonça, o Manuel Jorge, o
Juca Romero (amigo de infância e vizinho no Bairro Indígena), o Jaime
Faria, o Nandito Pacheco, o Zé Van-Dúnem, o Fernando Graça (o “Capim”), o
Raul Neto Fernandes, o Elisiário Vieira Lopes, o Carlitos Alonso Bastos, o
Toni Filipe, o Sérgio Azevedo Braz. Tantos amigos e tantas amizades… Pelo
meu lado, fui também fazendo outras coisas como, por exemplo, política, com
alguns desses e com outros… Não me arrependo nada do que fiz. Talvez até
pudesse ter feito mais e melhor.
- Estudávamos nos
bares, tomando cafés e cariocas, para não dormir. Nos períodos que exigiam
maior concentração, estudávamos em casa, ou na minha ou na do João Sá. A
casa do João Sá tinha um caramanchão onde estudávamos mais à vontade.
- Tal como eu, o João
perdeu o pai muito cedo. Recordo-me de ter acompanhado os seus derradeiros
dias de vida. Quando o Velho Sá adoeceu, revezámo-nos para que ele tivesse
sempre alguma companhia ao seu lado.
- Eu, em casa da
família Sá, era tratado como um filho. Era o melhor amigo do João Sá. Era
o seu companheiro do dia-a-dia e de todos os dias – éramos como se
fôssemos irmãos. Talvez por isso, instintivamente, a sua filha mais nova,
que foi minha aluna na Universidade, me trata hoje por Tio – o que eu
aprecio bastante.
- No último ano do
Liceu, o João deixou por fazer algumas disciplinas e, por isso, não entrou
comigo para a Universidade. Nesse ano, entrei eu, o Manuel Jorge (que foi
para Direito, em Coimbra), o Nandito Pacheco (que foi para Agronomia, no
Huambo), o Sérgio Braz (para Medicina). O Gigi já lá estava, mais
adiantado, assim como o Elisiário e o Raul Neto. O João Sá e o Juca Romero
entraram no ano seguinte – foram também para Medicina, por isso, foram meus
caloiros. O Toni Filipe, nosso amigo e colega de Liceu, natural de
Ndalatando, morreu nesse ano, electrocutado. Sentimos muito a sua morte,
pois nem teve tempo de viver a juventude.
- Quando regressei do
Tarrafal, o João Sá já ia adiantado no Curso e eu mudei de rumo. O João
tornou-se médico, militar e fez carreira nessa dupla condição. Atingiu a
patente de General. Serviu a Pátria com dedicação e com inteligência – o
que não lhe faltava.
- Uma das maiores
satisfações que tive foi ser, por diversas vezes, visto, medicado e curado
pelo meu Amigo João Sá. Graças a ele deixei de ter constantes crises de
paludismo.
- Quando a sua filha
caçula entrou para a Universidade, o meu Amigo João Sá telefonou-me para
me pedir conselho sobre o rumo a dar aos estudos da filha. Senti, então,
muito profundamente o prazer da nossa longa e sincera amizade. Percebi a mensagem
que ele queria passar à filha: Aqui está o Tio Tininho, com quem podes
contar para a vida!... O João já estava, então, debilitado pela doença que
o acometera e que já o impedia de trabalhar. Era a passagem de um
testemunho – o testemunho da Amizade.
- Sinto dificuldade em
prosseguir o meu relato, pela forte emoção de ter perdido um dos meus mais
queridos Amigos. Agradeço a vossa indulgência por terem acompanhado este
meu relato, que é pessoal, que a vocês poderá não dizer nada mas que, para
mim, diz muito.
- Foi esta a forma
mais simples, a mais singela que encontrei para homenagear o João Sá, um
irmão de uma vida. O Dr. Cirilo, como era, seguramente, mais conhecido.
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