1. Para mim, Agosto é talvez dos meses mais simbólicos. Logo no seu segundo dia, vêm-me à lembrança duas pessoas que me foram muito queridas: o meu colega de Faculdade, José António de Sousa Matos, o Zeca Matos, e um jovem, ainda quase criança, o Kuriva Jorge. Eles morreram nesse dia, num estúpido acidente de viação ocorrido no Brasil.
2. O Zeca Matos era brilhante, era cerebral. Na Faculdade de Economia dos nossos tempos, o Zeca era praticamente imbatível, quer em Matemática, quer em outras áreas que se socorressem do cálculo numérico. Rapaz simples, dedicado aos amigos. Guardo do Zeca Matos memórias inesquecíveis, como aquela em que ele me disse que chegaria o dia em que, para determinados níveis de responsabilidade, seriam nomeados indivíduos de tal forma incompetentes que escolheríamos entre “um mau” e “um pior ainda”… Não teríamos outra escolha, face ao nível de exigência de quem decidia. O Zeca pensava assim. E teve razão, já lá vão mais de 20 anos…
3. O Kuriva Jorge, filho do Felito e da Dadi, morreu juntamente com o Zeca. O Felito, o Félix Matias Neto, é meu companheiro de velha data, das cumplicidades da luta anti-colonial. A Dadi é uma amiga por quem nutro estima. Os dois puseram no mundo o Kuriva Jorge, um miúdo alegre e com grande sentido de humor. No sítio em que estivesse, o Kuriva tomava conta do espaço. Nós, os mais velhos, ouvíamo-lo com prazer, como se fôssemos contemporâneos. Sem preconceito de idade, o Kuriva Jorge tratava-me por “Primo Justo”. Parecia um adulto precoce... Quis o destino que ele partisse com o Zeca, naquele fatídico dia 2 de Agosto de 1985. Quando vou ao cemitério do Alto das Cruzes, não deixo de os visitar, na sua última morada.
4. O dia 11 de Agosto é também muito especial para mim. Foi a 11 de Agosto que nasceu o meu filho Nelito. O Nelito é muito chegado a mim, e revejo-me nalguns pormenores da sua personalidade. Nesse meu filho, aprecio, sobretudo, a vontade de vencer, a sua viva inteligência, a elegância no trato. Também gosto da sua ligeira vaidade, encoberta por detrás de uma elegante modéstia. Ele sabe estar. Ele sabe ser. Aliás, todos os meus filhos preenchem o espaço do meu orgulho.
5. A 13 de Agosto de 1943 nasceu a minha irmã que mais sofreu, enquanto viva, a minha irmã Elsa. Considero-a a cabeça mais valiosa que a minha mãe e o meu pai puseram no mundo. Sempre brilhante em matemática. Porém, desde criança, começou a sofrer de epilepsia, doença que arrastou aos ombros durante toda a vida, até que sucumbiu, enfraquecida por tanto sofrimento.
6. Quando a minha querida irmã Elsa morreu, senti uma profunda dor. Mas tive que me conformar: chegara ao término uma vida muito marcada pela dor. A Elsa era bondosa e sublime. Lembrei-me, então, dos cuidados que ela sempre requereu. A Néné (era este o seu nome familiar) desmaiava, não importava em que sítio. Por vezes, era acometida por desequilíbrios psicológicos que quase raiavam a loucura. Essa minha irmã que nasceu no mês de Agosto possuía uma espécie de loucura de génio. E eu controlava-a pondo-a a fazer complexos exercícios de matemática. Foi assim na nossa infância. Foi assim na nossa adolescência. Devo a ela também o simbolismo e a magia que para mim tem o mês de Agosto.
7. O mês de Agosto é igualmente o mês do Mário Pinto de Andrade, esse andarilho do mundo, o homem de quase todas as lutas de libertação de África, o intelectual que se emprestou à política e que da política nada recebeu – O Mário só deu…, independentemente de que país africano se tratasse. Quis o destino que o Mário tivesse nascido em Agosto e morrido também em Agosto. Ele partiu de Angola ainda jovem, para estudar em Portugal, precisamente no ano em que eu nasci. Depois, fez o seu percurso de vida. Levou uma vida de engajamento total pela libertação do nosso continente. Encontrámo-nos também em Agosto, na Zâmbia, no falhado Congresso do MPLA. Vínhamos de um longa caminhada: ele das suas lutas, eu, da cadeia, do Tarrafal. Abraçáramos a mesma causa: a libertação de Angola. Senti viva emoção quando o encontrei. Ele estava sentado numa mesinha colocada no exterior de uma tenda – Tinha caído o dia e começava a noite… àÀ luz de uma vela, o Mário a ler… O mês de Agosto é um mês de tantas emoções…
8. O meu amigo Mendes de Carvalho também é de Agosto, de 29. O Mendes de Carvalho é um velho amigo, é um Mais-Velho por quem nutro elevada estima e carinho. Conhecemo-nos no Tarrafal, tinha eu 22 anos e ele 46. Nos seus bilhetinhos, o Mendes assinava “Welema”, seu nome de guerra. Mais-Velho vivido, ele conhecia todas as nossas famílias. Por isso, recebeu-nos com um sentimento quase paternal. Ainda hoje temos uma amizade sem mácula. Devo-lhe uma atenção especial: já na Independência, quando voltei a ser preso, o velho companheiro do Tarrafal foi visitar-nos. Levou-nos o seu conforto. Manifestou-nos a sua estima e consideração. Ainda hoje, continuamos a ter causas em comum. O velho Leão que está dentre dele não morre. Nem o tempo conseguiu aparar-lhe a juba. O mês de Agosto também é dele.
9. Este Agosto que já passou quero dedicar especialmente a dois amigos antigos e muito queridos, eles que foram devorados no turbilhão, na orgia do pós-Independência: o Zé Van Dunem e a Sita Valles.
10. O texto que a Francisca Van Dunem, irmã do Zé, escreveu no Expresso, causou-me emoção. O Zé teria feito 60 anos de idade, se estivesse vivo, tal como a Sita. A Francisca bordejou um lindo e muito simbólico texto, intitulado “Parabéns Zé, Parabéns Sita”. Um hino de amor fraternal. O Zé Van Dunem nasceu a 29 de Agosto e a Sita a 23. Fomos colegas de escola – o Zé, no Liceu, e a Sita Valles, no Liceu e depois na Faculdade de Medicina, para onde entrámos no mesmo ano, já lá vão mais de 40 anos. Quando entrámos para a Faculdade, a Sita Valles foi considerada a “Miss Caloira”. Ela era de uma elegância e finura estonteantes…
11. O meu amigo Zé Van Dunem foi meu camarada de luta. A sua irmã, a Francisca, retrata-o com o carinho merecido: “Bom, justo, leal, compassivo e solidário, com uma dimensão única de coragem física num corpo franzino”. Simbolicamente, a irmã atribui-lhe ainda a beleza singular e distinta do melhor filho da sua mãe. Esse é também o Zé que eu guardo na minha memória.
12. E a Francisca Van Dunem, cunhada da Sita, descreveu-lhe a imagem com os seguintes traços: “Bela, altiva e indomável, herdeira da perturbadora beleza da filha da deusa Terra, a inteligência de Atena e a força determinada de Isis”. E prosseguiu, dizendo: “Agradecerei sempre a coragem sublime e a firmeza da mão que entrou pela última vez com o Zé na Fortaleza de S. Miguel”.
13. Entendem vocês melhor agora o porquê que eu digo que o mês de Agosto é um mês cheio de simbolismo? É que Agosto é, para mim, um mês de múltiplos sinais...
2. O Zeca Matos era brilhante, era cerebral. Na Faculdade de Economia dos nossos tempos, o Zeca era praticamente imbatível, quer em Matemática, quer em outras áreas que se socorressem do cálculo numérico. Rapaz simples, dedicado aos amigos. Guardo do Zeca Matos memórias inesquecíveis, como aquela em que ele me disse que chegaria o dia em que, para determinados níveis de responsabilidade, seriam nomeados indivíduos de tal forma incompetentes que escolheríamos entre “um mau” e “um pior ainda”… Não teríamos outra escolha, face ao nível de exigência de quem decidia. O Zeca pensava assim. E teve razão, já lá vão mais de 20 anos…
3. O Kuriva Jorge, filho do Felito e da Dadi, morreu juntamente com o Zeca. O Felito, o Félix Matias Neto, é meu companheiro de velha data, das cumplicidades da luta anti-colonial. A Dadi é uma amiga por quem nutro estima. Os dois puseram no mundo o Kuriva Jorge, um miúdo alegre e com grande sentido de humor. No sítio em que estivesse, o Kuriva tomava conta do espaço. Nós, os mais velhos, ouvíamo-lo com prazer, como se fôssemos contemporâneos. Sem preconceito de idade, o Kuriva Jorge tratava-me por “Primo Justo”. Parecia um adulto precoce... Quis o destino que ele partisse com o Zeca, naquele fatídico dia 2 de Agosto de 1985. Quando vou ao cemitério do Alto das Cruzes, não deixo de os visitar, na sua última morada.
4. O dia 11 de Agosto é também muito especial para mim. Foi a 11 de Agosto que nasceu o meu filho Nelito. O Nelito é muito chegado a mim, e revejo-me nalguns pormenores da sua personalidade. Nesse meu filho, aprecio, sobretudo, a vontade de vencer, a sua viva inteligência, a elegância no trato. Também gosto da sua ligeira vaidade, encoberta por detrás de uma elegante modéstia. Ele sabe estar. Ele sabe ser. Aliás, todos os meus filhos preenchem o espaço do meu orgulho.
5. A 13 de Agosto de 1943 nasceu a minha irmã que mais sofreu, enquanto viva, a minha irmã Elsa. Considero-a a cabeça mais valiosa que a minha mãe e o meu pai puseram no mundo. Sempre brilhante em matemática. Porém, desde criança, começou a sofrer de epilepsia, doença que arrastou aos ombros durante toda a vida, até que sucumbiu, enfraquecida por tanto sofrimento.
6. Quando a minha querida irmã Elsa morreu, senti uma profunda dor. Mas tive que me conformar: chegara ao término uma vida muito marcada pela dor. A Elsa era bondosa e sublime. Lembrei-me, então, dos cuidados que ela sempre requereu. A Néné (era este o seu nome familiar) desmaiava, não importava em que sítio. Por vezes, era acometida por desequilíbrios psicológicos que quase raiavam a loucura. Essa minha irmã que nasceu no mês de Agosto possuía uma espécie de loucura de génio. E eu controlava-a pondo-a a fazer complexos exercícios de matemática. Foi assim na nossa infância. Foi assim na nossa adolescência. Devo a ela também o simbolismo e a magia que para mim tem o mês de Agosto.
7. O mês de Agosto é igualmente o mês do Mário Pinto de Andrade, esse andarilho do mundo, o homem de quase todas as lutas de libertação de África, o intelectual que se emprestou à política e que da política nada recebeu – O Mário só deu…, independentemente de que país africano se tratasse. Quis o destino que o Mário tivesse nascido em Agosto e morrido também em Agosto. Ele partiu de Angola ainda jovem, para estudar em Portugal, precisamente no ano em que eu nasci. Depois, fez o seu percurso de vida. Levou uma vida de engajamento total pela libertação do nosso continente. Encontrámo-nos também em Agosto, na Zâmbia, no falhado Congresso do MPLA. Vínhamos de um longa caminhada: ele das suas lutas, eu, da cadeia, do Tarrafal. Abraçáramos a mesma causa: a libertação de Angola. Senti viva emoção quando o encontrei. Ele estava sentado numa mesinha colocada no exterior de uma tenda – Tinha caído o dia e começava a noite… àÀ luz de uma vela, o Mário a ler… O mês de Agosto é um mês de tantas emoções…
8. O meu amigo Mendes de Carvalho também é de Agosto, de 29. O Mendes de Carvalho é um velho amigo, é um Mais-Velho por quem nutro elevada estima e carinho. Conhecemo-nos no Tarrafal, tinha eu 22 anos e ele 46. Nos seus bilhetinhos, o Mendes assinava “Welema”, seu nome de guerra. Mais-Velho vivido, ele conhecia todas as nossas famílias. Por isso, recebeu-nos com um sentimento quase paternal. Ainda hoje temos uma amizade sem mácula. Devo-lhe uma atenção especial: já na Independência, quando voltei a ser preso, o velho companheiro do Tarrafal foi visitar-nos. Levou-nos o seu conforto. Manifestou-nos a sua estima e consideração. Ainda hoje, continuamos a ter causas em comum. O velho Leão que está dentre dele não morre. Nem o tempo conseguiu aparar-lhe a juba. O mês de Agosto também é dele.
9. Este Agosto que já passou quero dedicar especialmente a dois amigos antigos e muito queridos, eles que foram devorados no turbilhão, na orgia do pós-Independência: o Zé Van Dunem e a Sita Valles.
10. O texto que a Francisca Van Dunem, irmã do Zé, escreveu no Expresso, causou-me emoção. O Zé teria feito 60 anos de idade, se estivesse vivo, tal como a Sita. A Francisca bordejou um lindo e muito simbólico texto, intitulado “Parabéns Zé, Parabéns Sita”. Um hino de amor fraternal. O Zé Van Dunem nasceu a 29 de Agosto e a Sita a 23. Fomos colegas de escola – o Zé, no Liceu, e a Sita Valles, no Liceu e depois na Faculdade de Medicina, para onde entrámos no mesmo ano, já lá vão mais de 40 anos. Quando entrámos para a Faculdade, a Sita Valles foi considerada a “Miss Caloira”. Ela era de uma elegância e finura estonteantes…
11. O meu amigo Zé Van Dunem foi meu camarada de luta. A sua irmã, a Francisca, retrata-o com o carinho merecido: “Bom, justo, leal, compassivo e solidário, com uma dimensão única de coragem física num corpo franzino”. Simbolicamente, a irmã atribui-lhe ainda a beleza singular e distinta do melhor filho da sua mãe. Esse é também o Zé que eu guardo na minha memória.
12. E a Francisca Van Dunem, cunhada da Sita, descreveu-lhe a imagem com os seguintes traços: “Bela, altiva e indomável, herdeira da perturbadora beleza da filha da deusa Terra, a inteligência de Atena e a força determinada de Isis”. E prosseguiu, dizendo: “Agradecerei sempre a coragem sublime e a firmeza da mão que entrou pela última vez com o Zé na Fortaleza de S. Miguel”.
13. Entendem vocês melhor agora o porquê que eu digo que o mês de Agosto é um mês cheio de simbolismo? É que Agosto é, para mim, um mês de múltiplos sinais...
Recordá-los é mantê-los vivos. A memória é um dos nossos alicerces mais maltratados. É uma bonita homenagem aos teus, aos dos outros, e a alguns de "todos nós".
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