Nos dias 17, 18 e 19 de Setembro, participei no V Encontro Anual da ANDHEP (Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação). Ele teve lugar no Brasil, na cidade de Belém, capital do estado do Pará, e o seu Lema foi “Direitos Humanos: Democracia e Diversidade”. Fizeram-se presentes académicos brasileiros ligados a diversas Universidades, bem como algumas individualidades angolanas e moçambicanas ligadas igualmente a Universidades. Foram debatidas questões fundamentais para o actual momento brasileiro, como: “Política Criminal, Segurança Pública e Direitos Humanos”, “Direitos Humanos e Povos Indígenas”, “Educação para os Direitos Humanos”, “Memória e Justiça de Transição”, “Educação Escolar Indígena”.
Para além da questão Indígena (que ocupou muito espaço do debates), abordou-se ainda a problemática das “Comunidades Remanescentes dos Quilombos”, um tema que, de algum modo, nos remete para a ancestralidade angolana, uma vez que muitos dos povos negros brasileiros provêm de Angola – a própria expressão “Quilombo” tem origem no kimbundo, significando “Povoação”.
No Brasil, falar em “Quilombo”, conduz imediatamente à figura de Zumbi dos Palmares, o líder negro mais consagrado dos que opuseram uma feroz resistência à escravidão nas Américas.
Para nós, angolanos, o mês de Novembro tem um enorme simbolismo: foi no seu décimo primeiro dia que ascendemos à independência. Para os negros brasileiros ou seus descendentes, e também para os activistas dos direitos humanos, o mês de Novembro tem igualmente um grande significado, dado que, no seu vigésimo dia, no ano de 1695, aos 40 anos de idade, morreu Zumbi dos Palmares, depois de mais de 20 anos de resistência às sucessivas incursões de forças militares (portugueses, e até mesmo holandeses), bandeirantes, e mercenários. Zumbi recusou a escravidão a que estavam sujeitos os negros levados para o Brasil, por isso lutou até à exaustão. Zumbi tombou após ter sido traído por um dos seus principais comandantes. Foi preso, degolado e a sua cabeça ficou exposta publicamente, no Recife, como a prova de que, finalmente, se tinha extirpado o “mal”.
Por ironia do destino, precisamente 380 anos depois do sacrifício supremo de Zumbi dos Palmares, o nosso país tornou-se independente, resgatando assim um direito que, de algum modo, se tornou a bandeira Zumbi no continente americano. Zumbi dos Palmares era descendente de angolanos.
“Quilombo” foi a designação por que passaram a ser chamados todos os núcleos habitacionais e comerciais que abrigavam os escravos fugidos das fazendas (engenhos de açúcar). Eram, pois, locais de resistência à escravidão. Muitos deles tornaram-se, porém, também locais de refúgio para índios e brancos pobres, desprovendo, pois, a ideia de um carácter eminentemente rácico desses locais de resistência. Tal é o caso do “Quilombo dos Palmares”, situado na Serra da Barriga, no estado de Pernambuco.
A visão portuguesa da época remetia para a categoria de “Quilombo” apenas os núcleos isolados compostos por “negros fugidos”, isolados dos grandes centros urbanos ou das fazendas. Porém, a antropologia moderna integra hoje nas “Comunidades Remanescentes de Quilombo” muitos agrupamentos humanos que se constituíram a partir de diversos processos, como, por exemplo, doação de terras, heranças, recebimentos de terras como pagamento por serviços prestados ao Estado, mesmo até agrupamentos populacionais que se formaram dentro de grandes propriedades agrícolas depois da abolição da escravatura, ou terras que foram compradas por escravos alforriados ou libertos.
O Grupo de Trabalho sobre Comunidades Rurais Negras, criado pela Associação Brasileira de Antropologia, na tentativa de auxiliar a aplicação do dispositivo constitucional nº 68, que define o direito à terra das “Comunidades Remanescentes dos Quilombos”, recusa a definição do”Quilombo” somente a partir da fuga e do isolamento, aderindo, sim, à ideia de resistência e autonomia. Diz, concretamente: “Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogénea. Consistem, sobretudo, em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”. Portanto, o que define os “quilombolas” “é uma identidade étnica, fruto de ancestralidade comum, práticas políticas, religiosas e sociais. É um processo de auto-identificação bastante dinâmico que não se reduz a elementos materiais ou traços biológicos distintivos como a cor da pele, por exemplo.”
A questão do reconhecimento do direito de posse das terras pelas “Comunidades Remanescentes dos Quilombos” é um sério problema de Direitos Humanos, pois muitas dessas terras estão a ser alvo da cobiça por parte do sector agro-pecuário, como recentemente reconheceu, em entrevista a um jornal brasileiro, o Ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República do Brasil, Edson Santos.
Mas, a importância de algumas dessas terras reivindicadas pelos “quilombolas” não se manifesta apenas pela cobiça que elas despertam no sector agro-pecuário, são também interesses vinculados à exploração mineral. Lá existem muitas pedras preciosas, e até mesmo urânio – reconheceu o Ministro, destacando, igualmente, um eventual conflito de interesses entre as comunidades e o próprio Estado brasileiro. Por exemplo, em determinada área habitada por “quilombolas”, no estado do Maranhão (em Alcântara), “existe o melhor lugar do mundo para o lançamento de satélites”. A Agência Espacial Brasileira instalou em terras reivindicadas pelos “quilombolas” um Centro de Lançamento. E acrescentou: “A solução do problema passa pela conjugação dos dois interesses, o do Estado e o das comunidades”.
Estes conflitos brasileiros remetem-me para os nossos actuais conflitos de terras. Estamos numa época em que se desalojam comunidades inteiras nas áreas periféricas das cidades (com destaque para Luanda) para, aparentemente, dar resposta à necessidade de modernização da nossa sociedade, construindo-se os já famosos condomínios, muitos deles de luxo. É visível, porém que, por detrás destas acções, escondem-se os fortes interesses imobiliários titulados por novos-ricos criados à custa da sua forte ligação ao aparelho de estado. Só que, em Angola, infelizmente, o Estado não manifesta a preocupação social que se descobre nas actuais autoridades brasileiras. Aqui, a tónica principal é destruir, sem o cuidado de antes realojar em condições dignas de seres humanos. Há, pois, uma clara violação de um dos mais fundamentais direitos humanos, o direito a uma habitação digna. E quando se realoja, descuidam-se outros direitos do cidadão. Alguns dos desalojados perdem os seus empregos, deixam de ter acesso à escola, ou aos cuidados primários de saúde.
É claro que não estamos ainda perante a figura dos “quilombolas” – nem coisa parecida, já porque a sua génese das nossas comunidades de desalojados é diferente. Todavia, não tenho dúvidas de que, caso se prossiga a política cega de desapropriação e de desalojamento cego das comunidades mais pobres, poderemos ter, no futuro, segmentos sociais a exercitar movimentos de resistência que nos farão então lembrar, seguramente, os Zumbis e outros mártires de épocas passadas.
Para além da questão Indígena (que ocupou muito espaço do debates), abordou-se ainda a problemática das “Comunidades Remanescentes dos Quilombos”, um tema que, de algum modo, nos remete para a ancestralidade angolana, uma vez que muitos dos povos negros brasileiros provêm de Angola – a própria expressão “Quilombo” tem origem no kimbundo, significando “Povoação”.
No Brasil, falar em “Quilombo”, conduz imediatamente à figura de Zumbi dos Palmares, o líder negro mais consagrado dos que opuseram uma feroz resistência à escravidão nas Américas.
Para nós, angolanos, o mês de Novembro tem um enorme simbolismo: foi no seu décimo primeiro dia que ascendemos à independência. Para os negros brasileiros ou seus descendentes, e também para os activistas dos direitos humanos, o mês de Novembro tem igualmente um grande significado, dado que, no seu vigésimo dia, no ano de 1695, aos 40 anos de idade, morreu Zumbi dos Palmares, depois de mais de 20 anos de resistência às sucessivas incursões de forças militares (portugueses, e até mesmo holandeses), bandeirantes, e mercenários. Zumbi recusou a escravidão a que estavam sujeitos os negros levados para o Brasil, por isso lutou até à exaustão. Zumbi tombou após ter sido traído por um dos seus principais comandantes. Foi preso, degolado e a sua cabeça ficou exposta publicamente, no Recife, como a prova de que, finalmente, se tinha extirpado o “mal”.
Por ironia do destino, precisamente 380 anos depois do sacrifício supremo de Zumbi dos Palmares, o nosso país tornou-se independente, resgatando assim um direito que, de algum modo, se tornou a bandeira Zumbi no continente americano. Zumbi dos Palmares era descendente de angolanos.
“Quilombo” foi a designação por que passaram a ser chamados todos os núcleos habitacionais e comerciais que abrigavam os escravos fugidos das fazendas (engenhos de açúcar). Eram, pois, locais de resistência à escravidão. Muitos deles tornaram-se, porém, também locais de refúgio para índios e brancos pobres, desprovendo, pois, a ideia de um carácter eminentemente rácico desses locais de resistência. Tal é o caso do “Quilombo dos Palmares”, situado na Serra da Barriga, no estado de Pernambuco.
A visão portuguesa da época remetia para a categoria de “Quilombo” apenas os núcleos isolados compostos por “negros fugidos”, isolados dos grandes centros urbanos ou das fazendas. Porém, a antropologia moderna integra hoje nas “Comunidades Remanescentes de Quilombo” muitos agrupamentos humanos que se constituíram a partir de diversos processos, como, por exemplo, doação de terras, heranças, recebimentos de terras como pagamento por serviços prestados ao Estado, mesmo até agrupamentos populacionais que se formaram dentro de grandes propriedades agrícolas depois da abolição da escravatura, ou terras que foram compradas por escravos alforriados ou libertos.
O Grupo de Trabalho sobre Comunidades Rurais Negras, criado pela Associação Brasileira de Antropologia, na tentativa de auxiliar a aplicação do dispositivo constitucional nº 68, que define o direito à terra das “Comunidades Remanescentes dos Quilombos”, recusa a definição do”Quilombo” somente a partir da fuga e do isolamento, aderindo, sim, à ideia de resistência e autonomia. Diz, concretamente: “Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogénea. Consistem, sobretudo, em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”. Portanto, o que define os “quilombolas” “é uma identidade étnica, fruto de ancestralidade comum, práticas políticas, religiosas e sociais. É um processo de auto-identificação bastante dinâmico que não se reduz a elementos materiais ou traços biológicos distintivos como a cor da pele, por exemplo.”
A questão do reconhecimento do direito de posse das terras pelas “Comunidades Remanescentes dos Quilombos” é um sério problema de Direitos Humanos, pois muitas dessas terras estão a ser alvo da cobiça por parte do sector agro-pecuário, como recentemente reconheceu, em entrevista a um jornal brasileiro, o Ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República do Brasil, Edson Santos.
Mas, a importância de algumas dessas terras reivindicadas pelos “quilombolas” não se manifesta apenas pela cobiça que elas despertam no sector agro-pecuário, são também interesses vinculados à exploração mineral. Lá existem muitas pedras preciosas, e até mesmo urânio – reconheceu o Ministro, destacando, igualmente, um eventual conflito de interesses entre as comunidades e o próprio Estado brasileiro. Por exemplo, em determinada área habitada por “quilombolas”, no estado do Maranhão (em Alcântara), “existe o melhor lugar do mundo para o lançamento de satélites”. A Agência Espacial Brasileira instalou em terras reivindicadas pelos “quilombolas” um Centro de Lançamento. E acrescentou: “A solução do problema passa pela conjugação dos dois interesses, o do Estado e o das comunidades”.
Estes conflitos brasileiros remetem-me para os nossos actuais conflitos de terras. Estamos numa época em que se desalojam comunidades inteiras nas áreas periféricas das cidades (com destaque para Luanda) para, aparentemente, dar resposta à necessidade de modernização da nossa sociedade, construindo-se os já famosos condomínios, muitos deles de luxo. É visível, porém que, por detrás destas acções, escondem-se os fortes interesses imobiliários titulados por novos-ricos criados à custa da sua forte ligação ao aparelho de estado. Só que, em Angola, infelizmente, o Estado não manifesta a preocupação social que se descobre nas actuais autoridades brasileiras. Aqui, a tónica principal é destruir, sem o cuidado de antes realojar em condições dignas de seres humanos. Há, pois, uma clara violação de um dos mais fundamentais direitos humanos, o direito a uma habitação digna. E quando se realoja, descuidam-se outros direitos do cidadão. Alguns dos desalojados perdem os seus empregos, deixam de ter acesso à escola, ou aos cuidados primários de saúde.
É claro que não estamos ainda perante a figura dos “quilombolas” – nem coisa parecida, já porque a sua génese das nossas comunidades de desalojados é diferente. Todavia, não tenho dúvidas de que, caso se prossiga a política cega de desapropriação e de desalojamento cego das comunidades mais pobres, poderemos ter, no futuro, segmentos sociais a exercitar movimentos de resistência que nos farão então lembrar, seguramente, os Zumbis e outros mártires de épocas passadas.
Sem comentários:
Enviar um comentário