quarta-feira, 23 de junho de 2010

DIAS SANGRENTOS QUE FIZERAM HISTÓRIA

1. O dia 22 de Janeiro de 1905 calhou num Domingo. Nesse dia, um grupo de manifestantes (estima-se que atingiria os 200 mil, na sua maioria operários), chefiados por um padre ortodoxo, dirigiu-se para o Palácio de Inverno do Czar da Rússia, Nicolau II, em São Petersburgo, cidade capital do Império. O objectivo da marcha era a entrega de uma petição dirigida ao Czar da Rússia e subscrita por 135 mil pessoas. No documento os subscritores reivindicavam uma maior representatividade para o povo, também a reforma agrária, o fim da censura, mais liberdade religiosa, etc.

2. Com tais reivindicações, eles pretendiam limitar o absolutismo do Imperador, ampliando assim o espaço das liberdades democráticas. Porém, foram violentamente reprimidos pela guarda imperial, com disparos de armas de fogo. No terreno, ficaram várias centenas de mortos. Há quem mesmo refira que foram na ordem dos milhares. A repressão do dia 22 de Janeiro em São Petersburgo transitou para a história com a designação “O Domingo Sangrento de 1905”. Para alguns ela é tida até por “A Revolução Russa de 1905”. A opinião unânime é de que “O Domingo Sangrento de 1905” constituiu o rastilho para a “Revolução de Outubro de 1917”.

3. Esse histórico “Domingo Sangrento de 1905” teve consequências enormes, algumas das quais resumimos aqui: i) Para tentar aplacar a ira da população, o Czar Nicolau II criou a Duma, o Parlamento Russo; ii) Fez aumentar a aceitação das ideias socialistas dos alemães Karl Marx e Friedrich Engels no seio dos movimentos sociais russos; iii) Impulsionou o surgimento dos “sovietes de trabalhadores”, os conselhos de operários que passaram a coordenar o movimento operário nas fábricas. Foram precisamente os “sovietes de trabalhadores” quem jogou um papel crucial na “Revolução Russa de 1917” dirigida por Lenine.

4. A entrada da Rússia na I Guerra Mundial, contra a Alemanha e o Império Austro-Húngaro, depois fez o resto: i) Aumentou o descontentamento da população; ii) Agravou ainda mais a crise económica e social; iii) Provocou a perda de milhares de soldados no campo de batalha, mal armados e mal alimentados; iv) Colocou polícias e soldados do lado dos populares que se sublevaram.

5. O dia 30 de Janeiro de 1972 também foi um Domingo. Nesse dia, na Irlanda do Norte, mais concretamente em Londonderry, uma marcha de irlandeses católicos foi selvaticamente reprimida por pára-quedistas ingleses, com um saldo de mais de uma dezena de mortos.

6. Eis o histórico que permite enquadrar “O Domingo Sangrento da Irlanda do Norte”: i) Em 1923, a Irlanda fora dividida em duas partes: a parte norte do território, maioritariamente protestante, ficou integrada no Reino Unido, enquanto que a parcela sul, católica, se tornou independente, sob a designação de República da Irlanda; ii) Embora maioritariamente protestante, a Irlanda do Norte possui também na sua população gente que professa a religião católica. É precisamente essa parte da população que reivindica a sua desvinculação do Reino Unido e a união à República da Irlanda.

7. A repressão de Londonderry, do dia 30 de Janeiro de 1972, reforçou o papel do clandestino IRA, o Exército Republicano Irlandês. Com isso, o IRA recebeu um enorme afluxo de voluntários, aumentando, assim, a sua capacidade para afrontar as autoridades inglesas, por meio de actos de sabotagem e da colocação de bombas.

8. Na altura do incidente de Londonderry, foi instaurado um inquérito que ilibou os soldados e as autoridades britânicas. Tal inquérito concluiu mesmo que a iniciativa dos tiros partira dos manifestantes. Logo, as culpas da tragédia não deviam ser assacadas nem aos soldados, nem às autoridades britânicas.

9. Porém, em 1998, o então Primeiro-Ministro, Tony Blair, mandou reabrir o processo e instruir um novo inquérito. O inquérito foi agora concluído (12 anos depois), tendo chegado à conclusão que, afinal, os manifestantes estavam desarmados, e que o fogo partira dos militares, a quem imputa todas as responsabilidades.

10. Foi a recente divulgação deste resultado que inspirou este meu texto, pelo enorme significado que ele possui, sobretudo se visto à luz da nossa própria realidade. Por vezes, nós esquecemo-nos que temos também uma história recente com marcas indeléveis.

11. No dia 15 de Junho, o actual Primeiro-Ministro, David Cameron, apresentou no Parlamento britânico o resultado desse inquérito que durou 12 anos a produzir resultados definitivos. De seguida, David Cameron pediu desculpas públicas pelo acto praticado pelos militares, um pedido de desculpas públicas que o enobrece e, de certo modo, suaviza a ira dos católicos irlandeses, que registam o “Domingo Sangrento de 1972” como um momento negro na sua história. As desculpas pedidas por David Cameron de modo algum restituirão as vidas perdidas, mas elas têm o condão de repor a verdade histórica, abrindo o caminho para a concessão de eventuais indemnizações pecuniárias, ou outras.

12. O dia 22 de Janeiro de 1993 não coincidiu com um Domingo. O dia 22 de Janeiro de 1993 foi uma Sexta-Feira. Nesse dia, Luanda viveu uma acção repressiva sem precedentes, saldando-se por muitas vítimas entre homens, mulheres e crianças originários das províncias angolanas do Uíge e Zaire. A repressão prosseguiu nos dias 23 e 24. Fala-se mesmo em centenas de mortos, mas, é muito difícil confirmar a veracidade dessa estimativa. O estopim da acção foi a informação posta a circular, no dia 21, por um órgão oficial de comunicação social, segundo o qual estava em preparação uma tentativa de assassinato do Presidente Eduardo dos Santos. A comunidade bakongo de Angola lembra o dia 22 de Janeiro de 1993 como “A Sexta-Feira Sangrenta”.

13. O massacre da “Sexta-Feira Sangrenta” não foi objecto de um rigoroso inquérito, creio até que ele caiu no esquecimento. Assim, não há, pois, como imputar culpas directas, muito menos a quem atribuir a responsabilidade política do acto. É por isso que os autores materiais e morais da “Sexta-Feira Sangrenta” se passeiam livremente pelas nossas ruas, como se nada de mal tivessem feito… Eles dormem, descansados, o sono que é devido apenas aos justos…

14. Felizmente que “A Sexta-Feira Sangrenta” de Luanda não desencadeou revoluções nem estimulou separatismos – apenas lançou sinais de intolerância e de desconfiança étnica. Mas, a sua impunidade inquieta… Até que um dia surja, entre nós, um Tony Blair que ordene um rigoroso inquérito. Ou, então, que sobreviva um David Cameron, com coragem de assumir publicamente que houve, realmente, quem tenha violado os direitos mais elementares da pessoa humana – e por motivações meramente étnicas. Isso torna mais grave esse crime – ele já por si hediondo.

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