1. Um tema noticiado na semana que findou gerou algum sururú em Luanda, e não só. Ele veio a propósito de um artigo escrito em Portugal pelo jornalista português, José Pedro Castanheira, a propósito de passagens do último livro escrito pelo também jornalista e investigador cabo-verdiano, José Vicente Lopes.
2. Não li o livro, já porque ainda não o possuo, mas li, sim, o artigo de jornal saído em Portugal. Tão logo ele me chegue às mãos, lê-lo-ei, seguramente, e com toda a atenção, já porque ele trata de um espaço onde passei alguns dos anos mais significativos e mais marcantes da minha vida.
3. O artigo do José Pedro Castanheira é muito mais vasto e completo do que a frase isolada que gerou a polémica. Pelos vistos, tal frase mostrou ter uma enorme carga explosiva, ao ponto de ter produzido grande revolta entre muitos dos que passaram pelo Tarrafal e ainda estão vivos. Sendo embora um dos poucos “tarrafalistas” vivos, não reagi de modo intempestivo, preferi manter-me calmo, a espera de um melhor esclarecimento.
4. Sei, pois, que o livro começa por descrever o período histórico em que o Campo de Trabalho de Chão Bom foi aberto para receber presos políticos idos de Portugal, numa primeira fase que decorreu entre 1936 e 1954, quando o fascismo e o nazismo se impuseram na Europa e se quiseram alastrar pelo Mundo. Depois de um interregno de 8 anos, e com o início das nossas lutas de libertação, em 1962 o Campo do Chão Bom foi reaberto para acolher prisioneiros políticos idos de Angola, Guiné-Bissau, e também de Cabo Verde.
5. Contam-se por mais de 500 todos quantos lá estiveram encarcerados, entre europeus e africanos, sendo o contingente mais volumoso o dos europeus (digo, intencionalmente, europeus, pois, com os portugueses também estiveram outros europeus, mesmo que poucos).
6. Ao todo, e contando todo o tempo em que o Campo existiu, morreram 38 prisioneiros, a esmagadora maioria (34) portugueses. Morreram de biliosa, de paludismo, de outras maleitas. Morreram também 2 prisioneiros da Guiné-Bissau, e 2 angolanos, sendo que o angolano António Pedro Benge veio a falecer verdadeiramente em Lisboa, no Hospital do Ultramar, para onde fora transferido de urgência. Não resistiu à doença, daí que a sua tumba não esteja entre as existentes no Cemitério de Chão Bom.
7. O outro morto angolano, Chipoia Magita, morreu, sim, no Tarrafal, poucos dias antes de eu ter chegado. Por isso, não o conheci. Tive, porém, ocasião de perceber que Chipoia Magita tinha grande significado para os seus companheiros de processo e de etnia: era um Príncipe quioco, dos primeiros prisioneiros políticos vinculados à UNITA que foram deportados para o Tarrafal.
8. No início, o Tarrafal foi conhecido como o “Campo da Morte Lenta”, tão horríveis eram as condições que lá se conheciam, quer do meio, quer pelo tratamento dispensado aos presos. O Campo do Tarrafal parecia, pois, uma versão reduzida dos Campos de Concentração nazis, não só pelo aspecto, mas também pelo espírito que inspirou a sua criação.
9. Derrotado o nazismo, e sob pressão, Salazar decidiu encerrar o Campo do Tarrafal, em 1954. Reabriu-o, 8 anos depois, para recolher presos políticos idos das então colónias. Foi assim que para lá partiram alguns dos presos políticos angolanos integrantes do famoso “Processo dos 50”, de que hoje sobrevivem muito poucos. Simultaneamente, abriram-se também outros Campos de Concentração em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau, com o mesmo objectivo.
10. De modo algum convivi com os presos portugueses, nem com os guineenses, que já lá não estavam quando cheguei. Soube, porém, das condições demasiado difíceis que os guineenses viveram no Campo, ao ponto de despertarem um enorme sentimento de pesar junto dos presos angolanos. Um sentimento de pesar que fez com que, a certa altura, o Director do Campo tivesse decidido misturar os dois orçamentos – o enviado pelo governo-geral de Angola, mais substancial, e o enviado pelo governo-geral da Guiné, mais reduzido – para equilibrar a balança. Poderia, assim, propiciar uma melhor alimentação aos guineenses.
11. Quando entrei no Campo do Tarrafal ainda havia muitos presos de outros processos anteriores ao meu. Lá encontrei figuras políticas de que apenas sabia o nome e seus feitos. Estavam o António Jacinto, o Luandino Vieira, o António Cardoso, o Mendes de Carvalho, o Noé Saúde, o Armando Ferreira, o Armindo Fortes, o Pacavira, o Olim, mas, igualmente, presos ligados à UPA e à UNITA. Criei por todos eles um enorme carinho e uma incontida estima, sentimentos que ultrapassam e fazem desvanecer as diferenças artificiais que a política geralmente engendra. Sofremos juntos as agruras do isolamento, da falta de conforto, da ansiedade e da incerteza.
12. Por tudo isso, acho muito injusto retirar-se do contexto a frase inserida no livro do José Vicente Lopes, quando fala do pronunciamento de um pide sobre o Tarrafal, ou mesmo de um observador do Comité Internacional da Cruz Vermelha. Tendo os presos refeições regulares, e podendo ler livros, e, a partir de certa altura, terem sido autorizados a ir, em certos Sábados, por alguns momentos, até à praia (sempre em fila indiana e sempre marcados de perto por guardas armados), ou mesmo, tendo alguns feito exames escolares na cidade da Praia, estariam não numa cadeia, mas, sim, num Paraíso…
13. Recordo que da cadeia da PIDE em Luanda também saíam alguns presos para irem realizar exames escolares nos liceus. Alguém está, por isso, em condições de dizer que as prisões da PIDE em Luanda eram “suites de luxo”, como as que há em alguns hotéis?
14. Só pode, pois, ficar confundido quem esteve desatento, ou quem visitou o Tarrafal movido de má-fé. O pide, ou observador da Cruz Vermelha que disse que o Tarrafal era um Paraíso confundiu a árvore com a floresta. Ele não quis perceber que o Campo do Tarrafal era um Campo para os presos cumprirem pena de prisão, e não uma cadeia para se ouvir os presos em auto de declarações, ou para se torturar sistematicamente quem já estava condenado a muitos anos de cadeia.
15. É errado compararem-se situações incomparáveis: por exemplo, o Tarrafal com São Nicolau ou Missombo, ou com os Campos da Machava e Madalane, em Moçambique, ou com a Ilha das Galinhas, na Guiné-Bissau. Em alguns desses campos, houve quem tivesse recebido, com alguma regularidade, visitas de familiares, ou mesmo feito trabalhos que lhes aliviaram a solidão e o isolamento. Houve também quem tenha morrido nesses campos, como sucedeu com os 38 presos do Tarrafal que não voltaram vivos aos seus lares.
16. Eu saí do “Paraíso” que o pide (ou o observador da Cruz Vermelha) imaginou com um mal de saúde que até hoje me apoquenta, quase quarenta anos depois. Outros meus companheiros contraíram úlceras. Também tivemos entre nós tuberculosos e leprosos, com quem convivíamos quase sem restrições.
17. Uma cela ou uma caserna de prisão não podem ser confundidas com um espaço de lazer… O Campo de Trabalho do Tarrafal nunca funcionou como um campo de férias…
18. Seria até contraditório os portugueses, fascistas e colonialistas, contemplarem os seus odiados adversários políticos com férias não pagas numa espécie de jardim celestial… Isso é o que quis fazer parecer o pide (ou o observador da Cruz Vermelha) que o meu amigo José Vicente Lopes referiu no seu livro. Um livro que vou ter que ler, já porque fui dos lhe prestou depoimento. E fi-lo, como me é habitual, com toda a honestidade e isenção.