domingo, 29 de agosto de 2010

UMA PRISÃO CELESTIAL…

1. Um tema noticiado na semana que findou gerou algum sururú em Luanda, e não só. Ele veio a propósito de um artigo escrito em Portugal pelo jornalista português, José Pedro Castanheira, a propósito de passagens do último livro escrito pelo também jornalista e investigador cabo-verdiano, José Vicente Lopes.

2. Não li o livro, já porque ainda não o possuo, mas li, sim, o artigo de jornal saído em Portugal. Tão logo ele me chegue às mãos, lê-lo-ei, seguramente, e com toda a atenção, já porque ele trata de um espaço onde passei alguns dos anos mais significativos e mais marcantes da minha vida.

3. O artigo do José Pedro Castanheira é muito mais vasto e completo do que a frase isolada que gerou a polémica. Pelos vistos, tal frase mostrou ter uma enorme carga explosiva, ao ponto de ter produzido grande revolta entre muitos dos que passaram pelo Tarrafal e ainda estão vivos. Sendo embora um dos poucos “tarrafalistas” vivos, não reagi de modo intempestivo, preferi manter-me calmo, a espera de um melhor esclarecimento.

4. Sei, pois, que o livro começa por descrever o período histórico em que o Campo de Trabalho de Chão Bom foi aberto para receber presos políticos idos de Portugal, numa primeira fase que decorreu entre 1936 e 1954, quando o fascismo e o nazismo se impuseram na Europa e se quiseram alastrar pelo Mundo. Depois de um interregno de 8 anos, e com o início das nossas lutas de libertação, em 1962 o Campo do Chão Bom foi reaberto para acolher prisioneiros políticos idos de Angola, Guiné-Bissau, e também de Cabo Verde.

5. Contam-se por mais de 500 todos quantos lá estiveram encarcerados, entre europeus e africanos, sendo o contingente mais volumoso o dos europeus (digo, intencionalmente, europeus, pois, com os portugueses também estiveram outros europeus, mesmo que poucos).

6. Ao todo, e contando todo o tempo em que o Campo existiu, morreram 38 prisioneiros, a esmagadora maioria (34) portugueses. Morreram de biliosa, de paludismo, de outras maleitas. Morreram também 2 prisioneiros da Guiné-Bissau, e 2 angolanos, sendo que o angolano António Pedro Benge veio a falecer verdadeiramente em Lisboa, no Hospital do Ultramar, para onde fora transferido de urgência. Não resistiu à doença, daí que a sua tumba não esteja entre as existentes no Cemitério de Chão Bom.

7. O outro morto angolano, Chipoia Magita, morreu, sim, no Tarrafal, poucos dias antes de eu ter chegado. Por isso, não o conheci. Tive, porém, ocasião de perceber que Chipoia Magita tinha grande significado para os seus companheiros de processo e de etnia: era um Príncipe quioco, dos primeiros prisioneiros políticos vinculados à UNITA que foram deportados para o Tarrafal.

8. No início, o Tarrafal foi conhecido como o “Campo da Morte Lenta”, tão horríveis eram as condições que lá se conheciam, quer do meio, quer pelo tratamento dispensado aos presos. O Campo do Tarrafal parecia, pois, uma versão reduzida dos Campos de Concentração nazis, não só pelo aspecto, mas também pelo espírito que inspirou a sua criação.

9. Derrotado o nazismo, e sob pressão, Salazar decidiu encerrar o Campo do Tarrafal, em 1954. Reabriu-o, 8 anos depois, para recolher presos políticos idos das então colónias. Foi assim que para lá partiram alguns dos presos políticos angolanos integrantes do famoso “Processo dos 50”, de que hoje sobrevivem muito poucos. Simultaneamente, abriram-se também outros Campos de Concentração em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau, com o mesmo objectivo.

10. De modo algum convivi com os presos portugueses, nem com os guineenses, que já lá não estavam quando cheguei. Soube, porém, das condições demasiado difíceis que os guineenses viveram no Campo, ao ponto de despertarem um enorme sentimento de pesar junto dos presos angolanos. Um sentimento de pesar que fez com que, a certa altura, o Director do Campo tivesse decidido misturar os dois orçamentos – o enviado pelo governo-geral de Angola, mais substancial, e o enviado pelo governo-geral da Guiné, mais reduzido – para equilibrar a balança. Poderia, assim, propiciar uma melhor alimentação aos guineenses.

11. Quando entrei no Campo do Tarrafal ainda havia muitos presos de outros processos anteriores ao meu. Lá encontrei figuras políticas de que apenas sabia o nome e seus feitos. Estavam o António Jacinto, o Luandino Vieira, o António Cardoso, o Mendes de Carvalho, o Noé Saúde, o Armando Ferreira, o Armindo Fortes, o Pacavira, o Olim, mas, igualmente, presos ligados à UPA e à UNITA. Criei por todos eles um enorme carinho e uma incontida estima, sentimentos que ultrapassam e fazem desvanecer as diferenças artificiais que a política geralmente engendra. Sofremos juntos as agruras do isolamento, da falta de conforto, da ansiedade e da incerteza.

12. Por tudo isso, acho muito injusto retirar-se do contexto a frase inserida no livro do José Vicente Lopes, quando fala do pronunciamento de um pide sobre o Tarrafal, ou mesmo de um observador do Comité Internacional da Cruz Vermelha. Tendo os presos refeições regulares, e podendo ler livros, e, a partir de certa altura, terem sido autorizados a ir, em certos Sábados, por alguns momentos, até à praia (sempre em fila indiana e sempre marcados de perto por guardas armados), ou mesmo, tendo alguns feito exames escolares na cidade da Praia, estariam não numa cadeia, mas, sim, num Paraíso…

13. Recordo que da cadeia da PIDE em Luanda também saíam alguns presos para irem realizar exames escolares nos liceus. Alguém está, por isso, em condições de dizer que as prisões da PIDE em Luanda eram “suites de luxo”, como as que há em alguns hotéis?

14. Só pode, pois, ficar confundido quem esteve desatento, ou quem visitou o Tarrafal movido de má-fé. O pide, ou observador da Cruz Vermelha que disse que o Tarrafal era um Paraíso confundiu a árvore com a floresta. Ele não quis perceber que o Campo do Tarrafal era um Campo para os presos cumprirem pena de prisão, e não uma cadeia para se ouvir os presos em auto de declarações, ou para se torturar sistematicamente quem já estava condenado a muitos anos de cadeia.

15. É errado compararem-se situações incomparáveis: por exemplo, o Tarrafal com São Nicolau ou Missombo, ou com os Campos da Machava e Madalane, em Moçambique, ou com a Ilha das Galinhas, na Guiné-Bissau. Em alguns desses campos, houve quem tivesse recebido, com alguma regularidade, visitas de familiares, ou mesmo feito trabalhos que lhes aliviaram a solidão e o isolamento. Houve também quem tenha morrido nesses campos, como sucedeu com os 38 presos do Tarrafal que não voltaram vivos aos seus lares.

16. Eu saí do “Paraíso” que o pide (ou o observador da Cruz Vermelha) imaginou com um mal de saúde que até hoje me apoquenta, quase quarenta anos depois. Outros meus companheiros contraíram úlceras. Também tivemos entre nós tuberculosos e leprosos, com quem convivíamos quase sem restrições.

17. Uma cela ou uma caserna de prisão não podem ser confundidas com um espaço de lazer… O Campo de Trabalho do Tarrafal nunca funcionou como um campo de férias…

18. Seria até contraditório os portugueses, fascistas e colonialistas, contemplarem os seus odiados adversários políticos com férias não pagas numa espécie de jardim celestial… Isso é o que quis fazer parecer o pide (ou o observador da Cruz Vermelha) que o meu amigo José Vicente Lopes referiu no seu livro. Um livro que vou ter que ler, já porque fui dos lhe prestou depoimento. E fi-lo, como me é habitual, com toda a honestidade e isenção.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O FORTE RUGIDO DO DRAGÃO

1. Nos últimos dias, tenho sido insistentemente abordado por alunos que se mostram espantados com as recentes notícias sobre o desempenho da economia chinesa. Muitos desses estudantes vêm mesmo de outras universidades, na esperança de receberem de mim uma explicação que satisfaça a sua curiosidade.

2. Sempre que tenho disponibilidade, e na medida do possível, eu procuro ajudar os jovens. Por norma, utilizo o princípio de que tudo, afinal, possui um fio condutor, muito em especial, os fenómenos sociais, quer eles sejam económicos, quer políticos, quer outros. Esta minha visão é o fruto de uma longa observação que, depois, se constituiu em experiência de vida.

3. O último estudante que me abordou, por sinal, vindo da universidade pública, pediu-me que alargasse o leque dos que me podem ouvir a justificar tal fenómeno. Pediu-me que transformasse aquilo que eu lhe disse em privado numa das minhas crónicas. Faço-o agora, com prazer, mas com o prévio cuidado de avisar que a minha visão é, seguramente e apenas a minha visão pessoal sobre o assunto. Estou, pois, aberto a ouvir outras explicações que a possam contrariar ou, então, reforçar.

4. Os meus jovens amigos perguntam-me sobre o porquê de um tão vertiginoso crescimento da economia chinesa, mesmo até quando outras economias mais consolidadas vivem momentos de apoquento que, depois, se traduz em desconforto para as vidas dos seus cidadãos.

5. Por exemplo, na última semana, fomos confrontados com a bombástica notícia de que a economia chinesa é já a segunda classificada no ranking internacional, tendo desalojado a do Japão. O anúncio foi feito pelas autoridades chinesas e antecipou em seis meses a previsão antes feita pelo Fundo Monetário Internacional. As principais agências internacionais falam agora na perspectiva de a economia chinesa vir até a ultrapassar a americana, dentro de 15 anos.

6. É que os sinais dessa caminhada galopante dos chineses foram dados nos últimos anos através das persistentes taxas de crescimento anual do seu PIB, sempre muito próximas dos 10% ao ano.

7. A situação tornou-se ainda mais evidente quando, em Março de 2009, a ONUDI (Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial) declarou que a China havia ultrapassado o Japão como produtor industrial, colocando-se apenas atrás dos Estados Unidos da América. Antes, a China já relegara para posições mais recuadas países altamente industrializados como a França, Reino Unido e Alemanha.

8. No ano passado, a participação do produto industrial chinês no produto industrial mundial foi de 15,6%, contra os 15,4% do Japão e os 19% dos EUA. Em conjunto, o produto industrial dos três países correspondeu a metade da produção industrial mundial.

9. Não obstante o actual desempenho industrial da China, o Japão continua a ser o país mais industrializado do planeta, “em termos de valor agregado industrial per capita”. É bom não perder de vista esta perspectiva. Uma coisa é a produção industrial global do país, outra é a repartição média dessa produção por cada habitante. Esta repartição média por habitante serve de indicador para avaliar o bem-estar da população.

10. A dinâmica da produção industrial da China face ao seu rival asiático acentuou-se ainda mais após a crise financeira internacional que afectou o mundo, uma crise que teve um impacto mais evidente sobre os países mais ricos. Por isso mesmo, houve economias emergentes, como o Brasil e a Índia, que ganharam posições de mais destaque na pauta industrial mundial. No auge da crise, a Índia tornou-se a quinta classificada em termos de produção industrial e o Brasil colocou-se no décimo posto. Refeito o mundo do abalo, diz-se que o Brasil já ocupa a nona posição.

11. Na competição económica internacional, o produto industrial joga um papel de enorme destaque, porque ele potencia os restantes ramos da economia. Senão, vejamos. Ainda corria o ano de 2007, e já a China se posicionava como o primeiro parceiro comercial do Japão, desalojando os EUA. Esse era mais um sinal, que depois veio a ser confirmado nos sucessivos ganhos de posição em outras dimensões.

12. É evidente que não basta olharmos apenas para o valor dos indicadores globais. Devemos ter também o cuidado de observar outros indicadores, sobretudo rácios, como, por exemplo, o que toma em conta o valor do produto por cada habitante. O PIB por cada chinês é ainda de cerca de usd 3.600, um valor extremamente baixo, se comparado com o do Japão e, claro, com o dos americanos. O PIB per capita chinês é 3 vezes inferior ao do Brasil, 10 vezes inferior ao do Japão, e 13 vezes menor que o dos EUA.

13. Quer então dizer que o padrão de vida dos chineses é ainda extremamente muito baixo, mesmo com todos os avanços realizados. Mas, se recuarmos no tempo e nos lembrarmos do que era China há 30 ou 40 anos, ficamos impressionados com o verdadeiro salto de gigante que ela deu. Num relativamente período curto de tempo, os chineses conseguiram transportar para a modernidade cerca de 500 milhões dos seus habitantes. Em qualquer parte do mundo, é um esforço descomunal…

14. Há cerca de 4 anos, eu fiz uma palestra na qual referi que o investimento em capital humano, e, sobretudo, o esforço em investigação e desenvolvimento são cruciais para um país crescer de modo sustentado. Na altura, apontei dados relativos ao investimento em investigação e desenvolvimento (I&D) em alguns países. Referir ainda o panorama sombrio que vivem os países africanos, com uma honrosa excepção: a África do Sul, dos poucos países africanos que dispensa uma parte do seu pacote orçamental para acções de investigação e desenvolvimento.

15. De então a essa parte, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) vai afirmando que a China já se transformou no segundo maior investidor mundial em Inovação e Desenvolvimento, desalojando novamente o Japão. Mas o estudo de 2006 da OCDE também dizia que a China ainda se preocupava muito em alterar os produtos estrangeiros para os adequar ao seu mercado.

16. Um novo fenómeno está agora a suceder no gigante asiático. Fruto da corrida acelerada das principais empresas multinacionais para o território chinês, começa-se a assistir a uma transferência para aí de muitas das actividades de investigação e desenvolvimento. Isto só é possível, porque as universidades chinesas estão a lançar para o mercado um número crescente de cientistas, muitos dos quais se dedicam à inovação de base e não apenas à cópia ou transformação dos produtos criados no estrangeiro.

17. Para não ser cansativo. O futuro prepara-se com muita antecedência, e as acções têm que ser bem direccionadas. O gigante asiático emergiu agora, mas o seu rugido já se faz ouvir na floresta há muito tempo. Só não percebeu quem esteve desatento – não lhe detectou os sinais…

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

FREI JOÃO DOMINGOS (UM FILHO ADOPTIVO DE ANGOLA)

1. Foi das vozes que mais alto e mais vezes se elevou apelando à paz e harmonia entre os angolanos. Esteve sempre do lado dos que mais sofrem. Levou conforto aos pobres, bálsamo aos doentes, esperança aos injustiçados. Foi verdadeiramente um santo. O Frei João Domingos foi como uma pai colectivo – por isso, nos deixou órfãos.

2. O Frei João Domingos não pregou a resignação perante os abusos. Ele dizia-nos que tínhamos direitos e que nos devíamos bater por esses direitos, utilizando sempre, porém, métodos pacíficos, sem causar maior sofrimento nos outros.

3. Nas suas homilias, o Frei João Domingos denunciava os maus-tratos que muitas vezes se exerce contra os fracos, sobre os desamparados. Dizia, por exemplo, que não é justo desalojar, sem previamente se ter criado as condições para se realojar, e em melhores condições. Dizia, também, que a perseguição aos vendedores de rua não resolvia o problema do desemprego em Angola. Que ao Estado e aos restantes agentes económicos cabe a obrigação de investir mais, e investir bem, para gerar novos empregos. Assim se retiraria da rua, com justiça e com dignidade, esses trabalhadores forçosamente informais.

4. Ouvi-o inúmeras vezes pronunciar-se em defesa da vida, como um direito sagrado. Dizia, pois, que o homem não tem o direito de a cercear. Não poucas vezes escutei os seus sermões sobre a obrigação de a sociedade cuidar melhor das crianças, e de proteger os velhos e os incapacitados.

5. O Frei João Domingos, meu amigo, questionava os governantes sobre o modo pouco transparente como, entre nós, se gere a res pública. Questionava, também, o enriquecimento sem justa causa, igualmente a arrogância dos poderosos, o uso desmesurado e desproporcional com que muitas vezes as autoridades utilizam a força sobre pequenos infractores. Ele também advertia esses prevaricadores, chamando-os à razão. Várias vezes repudiou os assaltos, os assassinatos que se repetem nos nossos bairros, em especial, nos periféricos.

6. O meu amigo Frei João Domingos pregava a necessidade de haver unidade familiar, para termos uma sociedade mais sã. Ele apregoava o amor de pais para com os filhos e de filhos para com os pais. Só assim poderíamos também amor os outros – começando por amar os que nos são mais próximos.

7. O Frei João Domingos participava com as suas opiniões em conferências, em fóruns, em debates. Era das vozes mais autorizadas e mais respeitadas da nossa sociedade civil. Interagia com as organizações, levando-lhes conselhos e experiências. O meu amigo Frei João Domingos ajudou a edificar o Observatório Político e Social de Angola (OPSA) para emitir opiniões sobre a actividade pública.

8. Ensinou, mas também aprendeu com aqueles a quem ensinava – numa interacção dialéctica que só os sábios conseguem. Mas, mesmo assim, vi sempre nele a modéstia, embora com o background da sua ampla sabedoria.


9. Eu não quis acreditar numa notícia tão chocante, tão dilacerante. Era mentira – ou melhor, a ser verdade, era uma injustiça... O Frei João Domingos deixara-nos. Passara para fora do nosso convívio. E fizera-o longe de nós – já na sua terra natal, em Portugal. Angola acabara de perder um dos seus mais amorosos filhos.

10. Habituei-me a ouvi-lo e a respeitá-lo, pela autoridade da sua palavra, pela sabedoria do seu conselho. Deixamos de ter as suas homilias que tantas lições de vida nos deixaram. As suas homilias eram luzes colocadas nos pontos certos para iluminar os caminhos tortuosos da vida.

11. Pena que o Frei João Domingos não tenha ficado enterrado entre nós, para então pudermos colocar sobre a sua campa, e em torno dela, o mais lindo tapete de flores que esse filho adoptivo da nossa terra tanto merecia… Que Quem o levou de nós o guarde bem.

SERÁ QUE AINDA SEREMOS COMO OS ESQUIMÓS?

1. Em 2006, o ex-Vice Presidente norte-americano, Al Gore, confrontou o mundo com um documentário que simulava a emergência de profundas alterações climáticas, caso a humanidade prossiga no modo de vida que leva actualmente. O documentário, denominado “Uma Verdade Inconveniente”, provocou várias reacções: uns assumiram-no como um muito sério aviso à navegação, aceitando, portanto, os seus alertas; outros viram-no como um grande exagero, como apenas um álibi, ou uma manipulação engendrada pelo lobby ambientalista. Todavia, e mesmo com o descrédito dos cépticos, no ano seguinte, Al Gore foi contemplado com o Prémio Nobel da Paz, que recebeu conjuntamente com o Painel Intergovernamental das Nações Unidas para as Alterações Climáticas.

2. A mensagem que Al Gore pretendeu passar era simples: já sobra pouco tempo para se evitar uma catástrofe planetária de dimensões incalculáveis, uma catástrofe que porá em causa a sobrevivência da própria humanidade. Mas, Al Gore disse ainda que pequenas alterações na nossa rotina diária poderão reduzir em muito a emissão de gases poluentes causadores do efeito estufa, sem, porém, afectar a nossa qualidade de vida.

3. Quem viu o vídeo, certamente se lembrará de algumas das suas imagens mais aterradoras: regiões que antes eram húmidas a tornarem-se secas; zonas frias virando quentes; o degelo dos glaciares; ventos ciclónicos varrendo vastas áreas; o desaparecimento de grandes concentrações humanas. No vídeo, a Europa Ocidental tornar-se-ia mais quente; fortes precipitações fariam da Europa do Norte, Central e do Leste zonas pantanosas, com deslocações massivas das suas populações; o Sul da Europa caminharia para uma progressiva desertificação.

4. Depois do alerta de Al Gore, temos assistido, em alguns países, a uma corrida para a descoberta e utilização de tecnologias mais amigas do ambiente. Fala-se já, mais insistentemente, na ampliação do uso de recursos energéticos sem ou com menos teor de dióxido de carbono e de outros gases causadores do efeito estufa.

5. Para Al Gore, o cuidado com o ambiente tem sido tão grande que, ainda em 2007, juntamente com Richard Branson, presidente da empresa Virgin, instituiu um valioso prémio de 25 milhões de dólares a ser atribuído ao cientista que apresente a melhor proposta para se limpar o ar do dióxido de carbono que o empesta.

6. É, sim, verdade: o ar que hoje respiramos está empestado por gases mortíferos que podem mesmo aniquilar o nosso planeta. Por isso, Al Gore terá dito em 2009: “Os grandes poluidores do mundo têm feito da atmosfera um autêntico esgoto a céu aberto…”.

7. As agressões feitas à natureza vão produzindo os seus resultados, de tal modo que, por exemplo, nos últimos tempos, a Rússia está a conhecer as suas mais elevadas temperaturas, desde há centenas de anos. As altíssimas temperaturas originaram a deflagração de incêndios florestais em vários pontos da sua parte europeia, seguidos de uma devastação sem precedentes. Tais incêndios florestais ameaçam cidades inteiras. Houve mesmo vilas que desapareceram.

8. A onda de calor que se faz sentir na Rússia, um país geralmente frio, atingiu níveis impensáveis. Contraditoriamente, também perto de Moscovo caem chuvas de granizo, e a fumaça resultante dos incêndios florestais escurece tudo artificialmente, reduzindo os níveis de visibilidade, inclusive, nos túneis do Metro.

9. Na Ásia a situação não é melhor. O Paquistão ocupa um grande espaço nos noticiários internacionais, não já por causa da perda de controlo sobre o terrorismo dos fundamentalistas, mas, sim, porque conhece inundações sem precedentes. A cada momento se vão actualizando as estatísticas dessa catástrofe humanitária, saldando-se por milhares os mortos e por milhões o número dos afectados. Diz-se que o país está perante as piores inundações dos últimos 80 anos. Na China está na ordem do dia o deslizamento de terras, por causa das fortes chuvas, o mesmo estando a suceder na Índia.

10. Mas temos também manifestações da natureza de sinal contrário ao da Rússia. No sul do Brasil, as temperaturas estão extremamente baixas, caindo, por exemplo, neve em Santa Catarina, um dos Estados do sul, ao ponto de congelar uma cachoeira. Também no Rio Grande do Sul. Tratou-se do maior nevão da última década.

11. Há igualmente notícias sobre o descongelamento de montanhas antes geladas, o desprendimento de icebergs, por causa da elevação da temperatura em regiões tradicionalmente frias, com sérios riscos para a sobrevivência de algumas espécies, como os ursos polares, pondo em perigo a biodiversidade.

12. Alguém está em condições de dizer, por exemplo, que um dia não teremos uma Angola regelada como a Sibéria, ou a Sibéria com temperaturas altas como aquelas que acontecem em algumas partes de África? Eu não duvido, mesmo que pense que transformações climáticas radicais necessitam, pelo menos teoricamente, de muitíssimos anos para suceder.

13. Aprendi, em criança, que as actuais zonas desérticas foram, há milhares (ou milhões) de anos, imensas florestas. Daí serem enormes depósitos privilegiados de um dos combustíveis fósseis que mais contribui para a criação do chamado efeito estufa: o petróleo.

14. Gostaria, pois, de viver talvez mais 600 anos, para puder ver os angolanos desse tempo a resguardarem-se contra o frio, como hoje se vê nas imagens dos esquimós.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

UM CONFLITO QUE NADA LHES DIRÁ

1. Na Cimeira da União Africana que decorreu recentemente em Kampala, a capital do Uganda, Angola foi convidada a reforçar os efectivos militares que a organização continental possui na Somália. Falou-se mesmo numa subida dos actuais 6 mil para 8 mil soldados, correndo notícias de que tal reforço contará ainda com contributos do Djibuti, Guiné-Conacry, Moçambique e África do Sul.

2. Um especialista português em Relações Internacionais e Segurança é de opinião que o envio de tropas angolanas e moçambicanas para a Somália faria aumentar o prestígio internacional dos dois países, muito em especial, o de Angola, país com pretensões de se tornar potência regional.

3. O conflito da Somália é dos mais complexos que o nosso continente vive, pois lá estão em disputa múltiplos interesses e se acumulam inúmeras contradições. Algumas de tais contradições são do foro religioso, outras são decorrentes do passado colonial, outras ainda têm mais a ver com as ambições expansionistas de alguns dos países vizinhos. Por exemplo, no passado, três potências europeias ocuparam partes do território somali: França, Grã-Bretanha e Itália. Para além, claro, do contacto mais remoto que aqueles povos tiveram com o antigo Egipto.

4. A Somália é, pois, um país complexo que resultou da união, em 1960, dos protectorados italiano e britânico. Em 1977, a Somália Francesa deu origem ao Djibuti.

5. O conflito que a Somália hoje conhece é, de algum modo, ainda uma consequência do fim do regime ditatorial do antigo Presidente Siad Barre, derrubado, em 1991, pelo esforço conjugado de diversos clãs.

6. Siad Barre governou o seu país com punho de ferro, pretendendo supostamente instaurar um regime comunista num país marcado pelo subdesenvolvimento e disseminado por múltiplas etnias. Com a queda de Siad Barre, a Somália jamais conheceu a paz, tendo praticamente ficado nas mãos dos chamados “senhores da guerra”.

7. Até agora, houve diversas tentativas de solução do problema somali, inclusive, uma intervenção militar por soldados norte-americanos, no quadro de uma acção de ajuda humanitária, sob os auspícios das Nações Unidas. Tal acção militar saldou-se num redondo fiasco, de que resultaram 18 soldados norte-americanos mortos. O modo como foram mortos, e depois arrastados pelas ruas os corpos dos 18 militares norte-americanos, chocou o mundo.

8. O conflito interno da Somália manifesta-se pelas fidelidades aos diversos clãs, assim como pela competição interna para o controlo dos recursos do país. Luta-se pelo controlo da água, das pastagens, do gado, etc. Os protagonistas dessas lutas fazem-no já com armas modernas de todo o tipo. A Somália é uma verdadeira “manta de retalhos”.

9. Fruto dos esforços da comunidade internacional, constituiu-se, em 2004, um Governo Nacional de Transição que se instalou no Quénia, já porque a capital do país, Mogadíscio, se encontrava controlada por chefes tribais.

10. Deixou de haver serviços públicos e forças de segurança do Estado. O Governo de Transição transferiu-se para o interior do país, pois nunca conseguiu controlar Mogadíscio. Instalou-se em Baidoa, localidade situada a 200 quilómetros de Mogadíscio.

11. O governo interino somali, reconhecido internacionalmente, tem merecido o apoio da Etiópia. Diz-se que as forças islâmicas são armadas pela Eritreia. Já se assume também, e sem reservas, que o conflito interno da Somália se internacionalizou, tornando-se um campo privilegiado para a acção de grupos radicais estrangeiros ligados à Al-Qaeda, constituídos por militantes islâmicos originários do Afeganistão, Paquistão, do Iémen, e de outras paragens.

12. Depois que eclodiu a guerra civil, a pirataria marítima tornou-se mais intensa na região do Corno de África, onde se situa a Somália. São sistematicamente sequestrados navios de todo o tipo, até mesmo petroleiros, pois aquela rota é das mais importantes para o comércio mundial. Os resgates pagos aos piratas aumentaram a sua capacidade de abastecimento e armamento.

13. A pirataria provocou um acréscimo acentuado nos fretes, fruto da subida em espiral do risco. Presentemente, vêem-se naqueles mares navios de guerra de diversas proveniências, alguns escoltando embarcações que se dirigem para os portos somalis com mantimentos para as populações famintas. O Golfo de Aden está agora transformado numa verdadeira base marítima. São navios da França, Grã-Bretanha, EUA, Alemanha, Portugal, Índia, Turquia, Rússia, etc.

14. Os piratas que hoje fazem manchete nos noticiários de quase todo o mundo, muitos deles são ex-pescadores que se viraram para uma actividade de muito maior riso, mas igualmente mais lucrativa. Fazem também pirataria, militares ligados aos clãs dos senhores da guerra. Os piratas estão dotados de meios técnicos sofisticados, como GPS, e vão circulando em embarcações rápidas com as quais interceptam e abordam os navios.

15. É este o território para onde podem ser enviados alguns dos nossos soldados. Trata-se de um território longínquo, no outro extremo do nosso continente, vivendo um conflito que, acredito, nada dirá aos nossos soldados.