- Hoje, terça-feira, dia 28 de Maio, ouvi, com a devida atenção, a entrevista concedida ao jornalista da LAC, José Rodrigues, pelo meu antigo companheiro de luta anti-colonial, Rui Ramos. Antes de prosseguir, devo dizer que sou um ouvinte assíduo do programa Café-LAC, e já por diversas vezes disse ao José Rodrigues que o seu programa constitui, de facto, um interessante espaço de memória.
- No programa Café-LAC, rememoram-se factos e acontecimentos a que, por vezes, os próprios protagonistas nem sempre deram a devida importância. Mas, quando ouço os seus relatos vejo, afinal, que se tratam de verdadeiros marcos da nossa história colectiva. Daí que eu não me canse de estimular o José Rodrigues a prosseguir nesse caminho, dando, assim, o seu valioso contributo para a recuperação da nossa memória histórica. Digo-lhe, também, que deve fazer o máximo de esforço para diversificar as fontes, pois a história recente do nosso país foi construída com a participação de vários protagonistas, muitos dos quais estão agora remetidos para a penumbra. Estão sem qualquer visibilidade pública quando, na realidade, foram actores e protagonistas de primeira linha.
- Na entrevista dada pelo Rui Ramos, tive a possibilidade de rever, pela sua boca, um pouco também daquele que foi o meu próprio percurso político no combate anti-colonial. Foi, sobretudo, nesse combate que mais me cruzei com o Rui Ramos, na articulação de esforços e na comunhão de energias para levarmos a bom porto o desígnio da independência nacional.
- Afinal, éramos todos muito jovens e tínhamos um ideal, uma juventude e um ideal que nos ajudaram a minorar a dor e o sofrimento. Queríamos, em primeiro lugar, ser independentes. Mas, sonhávamos também com uma sociedade de maior justiça social. O Rui Ramos falou disso, não relegando para plano secundário essa componente da nossa luta. Queríamos uma sociedade de oportunidades para a grande maioria dos nossos compatriotas.
- Posso não estar de acordo com algumas das reflexões que o Rui Ramos fez sobre a sociedade do passado, sobretudo, quando a comparo com a sociedade do presente. Tais reflexões podem até vir a fazer parte de um outro escrito. Mas, o que é essencial, neste momento, é que ele se reportou ao nosso sonho de um mundo mais justo e mais equilibrado.
- Foi bom ouvir o Rui recordar os nomes de muitos dos nossos companheiros, em especial, daqueles que sonharam o mesmo sonho e que já não estão entre nós: o Juca Valentim, o Nado, o Gilberto Saraiva de Carvalho, o Diogo de Jesus, o Zé Vandúnem, o Nelito Soares, o António Garcia Neto, desaparecidos todos eles de forma violenta.
- Soou-me bem aos ouvidos, também, a recordação de pessoas que, felizmente, ainda estão vivas e que foram nossos companheiros de luta: o Loló Kiambata, o Vicente Pinto de Andrade, o Aldemiro da Conceição, o Jaime Cohen, o Carlos Octávio (Caíto), o Nini Monteiro “Ngongo”.
- Com imensa saudade me recordei do “Mais-Velho” Joaquim Pinto de Andrade, nosso parceiro de gesta. Só que ele já estava num outro patamar, num patamar superior… Mesmo assim, ele entroncou connosco na luta, por forte convicção política e por teimosia revolucionária – O Joaquim não era do nosso campeonato, vinha de outras epopeias… Que saudade deixaste, “Mais-Velho”…
- O Rui Ramos teve o cuidado de dizer que se pronunciaria apenas sobre factos e pessoas com quem tinha partilhado os caminhos da luta. Por isso, ficou por referir muitos outros companheiros que foram demasiado relevantes e que se mostraram disponíveis para a luta, tanto como os que o Rui conseguiu referir. Nesta fase da vida e numa entrevista com tempo limitado, é claro que fica sempre alguém ou alguma coisa de fora. É inevitável.
- O Rui Ramos mostrou, com clareza e precisão, a dinâmica do espaço revolucionário em que se inseriu mais directamente: o Kimangua. Um Kimangua que era, afinal, uma parte do espaço mais amplo constituído pelo CRL – o Comité Regional de Luanda do MPLA.
- O CRL foi um aglutinador de várias células revolucionárias desmanteladas pela PIDE. Mas, com o decorrer do tempo e fruto da experiência adquirida, o CRL sempre se foi renovando e re-alimentando o tecido revolucionário, até praticamente ao fim da luta de libertação.
- É evidente que a nossa geração política cumpriu parte do sonho de alguns de nós. Atingimos a independência, com o consentimento de grandes sacrifícios. Não poucas vezes, desprezando as nossas próprias vidas ou a nossa liberdade. Prisões, mortes em combate, assassinatos durante a fuga, até mesmo vítimas de fogo amigo…
- Não deixa, porém, de ser verdade que algo de essencial ficou por fazer. Não fomos capazes de criar uma pátria livre da opressão e da exploração. O nosso espaço da liberdade foi cerceado. Fomos assolados pela corrupção, pelo tráfico de influências, pelo açambarcamento do que é alheio ou é de todos.
- Tudo isso motiva hoje muitos jovens (que podiam ser nossos filhos) a irem para a rua manifestar-se, reclamando a liberdade que lhes é sistematicamente confiscada. São violentamente agredidos, torturados, aprisionados, tratados quase como se fossem a escória da sociedade.
- É justo que o meu antigo companheiro de luta, o Rui Ramos, se orgulhe das nossas acções revolucionárias na luta anti-colonial. Mas, é também verdade que eu tenho vergonha do modo como agora se tratam os nossos próprios filhos: algemados e torturados no “Largo 1º de Maio”, agredidos nos seus próprios bairros por esbirros e por “caenches” com instintos ou passados marginais. Esses jovens são, na verdade, uma consequência da nossa incapacidade para resolvermos a segunda motivação da nossa luta: a criação de uma sociedade mais justa e mais equilibrada.
- Fazemos leis e não as cumprimos. Aprofundamos todos os dias as assimetrias na distribuição da riqueza e do rendimento nacional. Cerceamos as liberdades fundamentais dos cidadãos. Damos privilégios e criamos condições de sucesso para aqueles que menos se esforçam – para aqueles que só têm sucesso porque estão devidamente protegidos.
17.
Quando ouvi o meu antigo companheiro de luta
anti-colonial, Rui Ramos, recordar a nossa gesta, a gesta da nossa geração
revolucionária, senti saudades desse tempo, desse período de grande dedicação à
nossa causa. Mas senti, igualmente, algum desconforto por termos produzido,
afinal, tal como a nossa, uma nova geração que está a sentir um forte impulso
para a transformação revolucionária. E, como sabemos, a transformação
revolucionária é, por definição, causadora de dor e é traumática.
18.
Os jovens que hoje se auto-denominam
“revolucionários” são, pois, o resultado dos nossos erros – Temos que reconhecer. Negar esse facto, é trair a
nossa própria memória e é desvalorizar as nossas
razões. Mas, a solução para os jovens não é suborná-los,
muito menos batendo-lhes. Por isso, Rui, temos que ser capazes de realizar, na
prática, aquilo que, com uma certa dose de leviandade, vamos plasmando na Lei.
19. Quando hoje ouvi o Rui Ramos falar da nossa geração,
senti que estou quase só – pelo menos em relação aos da minha geração. A grande
maioria dos meus antigos companheiros já desapareceu, e muitos dos que sobrevivem,
ou estão debilitados ou estão acomodados, esquecendo-se,
deliberadamente, dos novos desafios. Passaram,
também, uma esponja sobre as nossas causas profundas. Talvez seja até de alguns deles mesmo que partem as
ordens de fazer cair o bastão e a vergasta sobre esses jovens que até podiam
ser os seus filhos. Ao fazerem isso, desmerecem o seu passado.
A história desses mandantes deveria começar sempre em cada dia que passa – Não
merecem ter memória, pois a memória deve ficar reservada somente a quem faz por
a merecer.
- Foi bom ouvir-te,
Rui Ramos!
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