1. No dia 27 de Janeiro, passaram-se 65 anos sobre a tomada pelo Exército Soviético do campo de extermínio de Auschwitz. Tratou-se de um acontecimento que pouco (ou mesmo nada) diz às novas gerações.
2. Cada geração tem as suas próprias referências, e esta não é, seguramente, um marco histórico para os jovens de hoje. Os jovens de hoje têm outros cuidados e outras inquietações, são assolados por outros factos, uns de tons mais positivos, outros nem tanto assim. Não é possível comparar épocas, muito menos dizer que houve gerações que apenas colheram louros, que viveram uma vida sem preocupações. A minha geração também conheceu alguns dos horrores dos campos de concentração.
3. Campos de concentração e campos de extermínio, se bem que próximos, não são precisamente uma e a mesma coisa. Qualquer um deles consubstancia flagrantes violações aos direitos do homem, só que, nos últimos, retira-se a vida a um ser humano como se ela não tivesse qualquer valor. Nos campos de extermínio, a vida do homem vale menos que a bala que o executa, ou o gás que o intoxica – está-se abaixo de cão. E que me desculpem os cães, que eu muito prezo.
4. Os campos de concentração e os campos de extermínio sinalizaram – para o mal – o período histórico em que foi estrela o demoníaco Adolf Hitler. Hitler mandou construir os campos de Auschwitz, Dachau, Treblinka, Buchenwald e outros. Criou tais campos não apenas para reprimir, mas também para eliminar todos aqueles que se lhe opunham, ou os de que não gostava.
5. Também Joseph Staline mandou construir campos de concentração na antiga União Soviética, os tristemente famosos Gulags. Staline remeteu para os Gulags prisioneiros de todo o tipo, muitos deles apenas por serem opositores políticos. Os Gulags tornaram-se um dos símbolos do estalinismo.
6. Mas, não foram apenas os regimes nazista e o estalinista que criaram campos de concentração. Por exemplo, o Brasil, depois que declarou guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), criou campos de concentração com o objectivo de lá confinar alemães, italianos e japoneses suspeitos de actividades anti-brasileiras. No mesmo período, e por determinação do presidente Franklim Delano Roosevelt, os Estados Unidos da América abriram igualmente campos de concentração. Um exemplo muito referido é o Crystal City, no estado do Texas, para onde foram enviados prisioneiros alemães e japoneses. No último caso, como consequência do tristemente célebre ataque japonês a Pearl Harbor.
7. No início do século XX, durante a Segunda Guerra dos Bóeres, na África do Sul, os britânicos já haviam erigido campos de concentração, no quadro da sua estratégia de combate à guerrilha bóer. Para tais campos, foram deportados os fazendeiros e seus empregados que apoiavam e abasteciam os guerrilheiros bóeres.
8. O regime colonial e fascista de Salazar não deixou os seus créditos por mãos alheias, e também fez questão de criar os seus campos de concentração, quer em Angola, quer em Cabo Verde. Ficaram célebres os campos de concentração do Missombo e de São Nicolau, em Angola, e o famigerado Campo do Tarrafal, em Cabo Verde, onde estive preso durante vários anos. Eufemísticamente puseram-lhe depois o nome de “Campo de Trabalho de Chão Bom”, alegadamente com o objectivo de “recuperar pelo trabalho” aqueles que se haviam rebelado contra o regime colonial.
9. Infelizmente, alguns dos meus companheiros do Tarrafal só perceberam a “vertente colonial” do regime de Salazar, não tendo entendido bem a sua “vertente fascista”. Por isso, ajudaram a pôr em prática tal vertente injusta, repressiva e desumana na Angola independente. Essa é uma nódoa que caiu sobre a sua vestimenta de combatentes anti-coloniais…
10. Para além da educação cívica e política que tive na infância e adolescência, a minha experiência num campo de concentração como o Tarrafal tornou-me muito sensível à problemática dos direitos humanos, e muito em especial ao direito a todo o tipo de liberdades. Faço, pois, questão de me manter fiel a essa memória.
11. O Campo do Tarrafal não foi verdadeiramente um campo de extermínio, como foram os campos de Auschwitz-Birkenau. Os campos de extermínio são a expressão mais acabada da demência política humana. Foi lá que se assassinaram milhões de seres humanos. Diz-se mesmo que só em Auschwitz pereceram para cima de 1 milhão de homens e mulheres, velhos e crianças, das mais diversas condições e das mais díspares origens. Os nazistas não tinham limites, muito menos consciência. Corporizaram a subida ao poder do pior que a humanidade pode ter produzido.
12. Em verdadeiro delírio vingativo, Adolf Hitler, secundado pelo chefe das SS, Heinrich Himmler, ou por Rudolf Hoess, e por outros iguais, mandou para os campos de morte judeus, ciganos, prisioneiros de guerra soviéticos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, testemunhas de Jeová. Fez ainda questão de decapitar o essencial da intelectualidade polaca. Os que escaparam às câmaras de gás (com o famoso Ziklon B) e aos fornos crematórios, foram transformados em escravos, trabalhando nas construções do campo, ou então em fábricas que alimentaram a máquina de guerra nazi. Cinicamente, o portão principal de entrada de Auschwitz ostentava a seguinte frase “Arbeit macht frei”, ou seja “O trabalho liberta”.
13. Cresci muito marcado por tudo quanto aconteceu durante a instalação do nazismo e, sobretudo, pelo seu resultado imediato: a Segunda Guerra Mundial.
14. Durante a minha adolescência e no processo de formação da minha consciência cívica e política, houve factos que dominaram a literatura que fui lendo e os filmes que fui vendo: a Segunda Grande Guerra, a Resistência Francesa, a luta pela emancipação dos negros norte-americanos, a emergência do movimento de libertação dos povos africanos, as guerras que se travaram na Ásia pelas independências, e outras profundas transformações sociais. Acompanhei também, e com muita atenção, os movimentos sociais na América Latina. Foi todo esse cenário de mudança que povoou o meu imaginário de jovem e me tornou hoje um homem atento e participativo.
15. Não podia, pois, ficar indiferente ao acontecimento singular que são os 65 anos da tomada de Auschwitz–Birkenau, talvez o maior símbolo da paranóia nazi. Auschwitz–Birkenau é uma chaga que ficará para sempre na memória dos homens. É a prova de que há homens e mulheres que, por vezes, perdem quase toda a racionalidade, tornando-se, assim, tão ferozes como os animais que vagueiam na selva.
16. São já poucos os sobreviventes do Holocausto. São cada vez em um menor número os companheiros com quem vivi os anos de reclusão no Campo do Tarrafal. São também cada vez menos aqueles que restaram do Campo de São Nicolau (depois tornado Campo de Bentiaba) e do Campo de Extermínio da Kalunda, no Moxico. Estes, em especial, também foram vítimas de um quase Holocausto. Só que, desta vez, com a participação de carrascos angolanos… Afinal, a cegueira política dos homens não escolhe raças nem continentes e, muito menos, países…
2. Cada geração tem as suas próprias referências, e esta não é, seguramente, um marco histórico para os jovens de hoje. Os jovens de hoje têm outros cuidados e outras inquietações, são assolados por outros factos, uns de tons mais positivos, outros nem tanto assim. Não é possível comparar épocas, muito menos dizer que houve gerações que apenas colheram louros, que viveram uma vida sem preocupações. A minha geração também conheceu alguns dos horrores dos campos de concentração.
3. Campos de concentração e campos de extermínio, se bem que próximos, não são precisamente uma e a mesma coisa. Qualquer um deles consubstancia flagrantes violações aos direitos do homem, só que, nos últimos, retira-se a vida a um ser humano como se ela não tivesse qualquer valor. Nos campos de extermínio, a vida do homem vale menos que a bala que o executa, ou o gás que o intoxica – está-se abaixo de cão. E que me desculpem os cães, que eu muito prezo.
4. Os campos de concentração e os campos de extermínio sinalizaram – para o mal – o período histórico em que foi estrela o demoníaco Adolf Hitler. Hitler mandou construir os campos de Auschwitz, Dachau, Treblinka, Buchenwald e outros. Criou tais campos não apenas para reprimir, mas também para eliminar todos aqueles que se lhe opunham, ou os de que não gostava.
5. Também Joseph Staline mandou construir campos de concentração na antiga União Soviética, os tristemente famosos Gulags. Staline remeteu para os Gulags prisioneiros de todo o tipo, muitos deles apenas por serem opositores políticos. Os Gulags tornaram-se um dos símbolos do estalinismo.
6. Mas, não foram apenas os regimes nazista e o estalinista que criaram campos de concentração. Por exemplo, o Brasil, depois que declarou guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), criou campos de concentração com o objectivo de lá confinar alemães, italianos e japoneses suspeitos de actividades anti-brasileiras. No mesmo período, e por determinação do presidente Franklim Delano Roosevelt, os Estados Unidos da América abriram igualmente campos de concentração. Um exemplo muito referido é o Crystal City, no estado do Texas, para onde foram enviados prisioneiros alemães e japoneses. No último caso, como consequência do tristemente célebre ataque japonês a Pearl Harbor.
7. No início do século XX, durante a Segunda Guerra dos Bóeres, na África do Sul, os britânicos já haviam erigido campos de concentração, no quadro da sua estratégia de combate à guerrilha bóer. Para tais campos, foram deportados os fazendeiros e seus empregados que apoiavam e abasteciam os guerrilheiros bóeres.
8. O regime colonial e fascista de Salazar não deixou os seus créditos por mãos alheias, e também fez questão de criar os seus campos de concentração, quer em Angola, quer em Cabo Verde. Ficaram célebres os campos de concentração do Missombo e de São Nicolau, em Angola, e o famigerado Campo do Tarrafal, em Cabo Verde, onde estive preso durante vários anos. Eufemísticamente puseram-lhe depois o nome de “Campo de Trabalho de Chão Bom”, alegadamente com o objectivo de “recuperar pelo trabalho” aqueles que se haviam rebelado contra o regime colonial.
9. Infelizmente, alguns dos meus companheiros do Tarrafal só perceberam a “vertente colonial” do regime de Salazar, não tendo entendido bem a sua “vertente fascista”. Por isso, ajudaram a pôr em prática tal vertente injusta, repressiva e desumana na Angola independente. Essa é uma nódoa que caiu sobre a sua vestimenta de combatentes anti-coloniais…
10. Para além da educação cívica e política que tive na infância e adolescência, a minha experiência num campo de concentração como o Tarrafal tornou-me muito sensível à problemática dos direitos humanos, e muito em especial ao direito a todo o tipo de liberdades. Faço, pois, questão de me manter fiel a essa memória.
11. O Campo do Tarrafal não foi verdadeiramente um campo de extermínio, como foram os campos de Auschwitz-Birkenau. Os campos de extermínio são a expressão mais acabada da demência política humana. Foi lá que se assassinaram milhões de seres humanos. Diz-se mesmo que só em Auschwitz pereceram para cima de 1 milhão de homens e mulheres, velhos e crianças, das mais diversas condições e das mais díspares origens. Os nazistas não tinham limites, muito menos consciência. Corporizaram a subida ao poder do pior que a humanidade pode ter produzido.
12. Em verdadeiro delírio vingativo, Adolf Hitler, secundado pelo chefe das SS, Heinrich Himmler, ou por Rudolf Hoess, e por outros iguais, mandou para os campos de morte judeus, ciganos, prisioneiros de guerra soviéticos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, testemunhas de Jeová. Fez ainda questão de decapitar o essencial da intelectualidade polaca. Os que escaparam às câmaras de gás (com o famoso Ziklon B) e aos fornos crematórios, foram transformados em escravos, trabalhando nas construções do campo, ou então em fábricas que alimentaram a máquina de guerra nazi. Cinicamente, o portão principal de entrada de Auschwitz ostentava a seguinte frase “Arbeit macht frei”, ou seja “O trabalho liberta”.
13. Cresci muito marcado por tudo quanto aconteceu durante a instalação do nazismo e, sobretudo, pelo seu resultado imediato: a Segunda Guerra Mundial.
14. Durante a minha adolescência e no processo de formação da minha consciência cívica e política, houve factos que dominaram a literatura que fui lendo e os filmes que fui vendo: a Segunda Grande Guerra, a Resistência Francesa, a luta pela emancipação dos negros norte-americanos, a emergência do movimento de libertação dos povos africanos, as guerras que se travaram na Ásia pelas independências, e outras profundas transformações sociais. Acompanhei também, e com muita atenção, os movimentos sociais na América Latina. Foi todo esse cenário de mudança que povoou o meu imaginário de jovem e me tornou hoje um homem atento e participativo.
15. Não podia, pois, ficar indiferente ao acontecimento singular que são os 65 anos da tomada de Auschwitz–Birkenau, talvez o maior símbolo da paranóia nazi. Auschwitz–Birkenau é uma chaga que ficará para sempre na memória dos homens. É a prova de que há homens e mulheres que, por vezes, perdem quase toda a racionalidade, tornando-se, assim, tão ferozes como os animais que vagueiam na selva.
16. São já poucos os sobreviventes do Holocausto. São cada vez em um menor número os companheiros com quem vivi os anos de reclusão no Campo do Tarrafal. São também cada vez menos aqueles que restaram do Campo de São Nicolau (depois tornado Campo de Bentiaba) e do Campo de Extermínio da Kalunda, no Moxico. Estes, em especial, também foram vítimas de um quase Holocausto. Só que, desta vez, com a participação de carrascos angolanos… Afinal, a cegueira política dos homens não escolhe raças nem continentes e, muito menos, países…
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