1. “Foi o princípio do fim da indignidade”. Com esta frase, o Arcebispo Anglicano Desmond Tutu resumiu o significado do dia em que Nelson Mandela foi, finalmente, libertado, há precisamente 20 anos. Começou aí, realmente, o fim do regime do apartheid, um momento histórico que marcou o ruir de um edifício político e social hediondo, construído ao longo de muitas décadas, e que a humanidade, quase em uníssono, reprovou.
2. Estive entre os milhões de pessoas de todo o mundo que acompanharam, pela televisão, o memorável dia 11 de Fevereiro de 1990. Vimos todos, com emoção, Nelson Mandela – de braço dado com a então sua mulher, Winnie – franquear os portões da prisão Victor Verster, seu derradeiro local de detenção. Antes, Mandela passara por outras cadeias, entre as quais a célebre prisão de Robben Island, perto da cidade do Cabo.
3. A libertação de Mandela era como um sonho a tornar-se realidade. Apenas não se emocionou, quem não seguiu a trajectória prisional de Nelson Mandela. Na verdade, a luta de Mandela quase se confundiu com a luta do povo sul-africano contra o regime do apartheid.
4. Cyril Ramaphosa, político e ex-líder sindical sul-africano – hoje mais dedicado à vida empresarial – reconheceu também que a libertação de Nelson Mandela fora o prenúncio da libertação do povo sul-africano. Embora por outras palavras, Cyril Ramaphosa disse, afinal, o mesmo que dissera o Arcebispo Desmond Tutu.
5. “União Sul-Africana” foi o nome escolhido, em 1910, para designar a África do Sul, ainda um Domínio do Império Britânico. A designação “União Sul-Africana” durou 51 anos, até quando, em referendo realizado em 1961, os brancos sul-africanos decidiram proclamar a República da África do Sul, cortando o laço que os ligava à Coroa britânica e à Commonwealth.
6. O regime de apartheid foi sendo construído progressivamente, uma construção que começou ainda na vigência da “União Sul-Africana”. Por exemplo, são contemporâneas da “União Sul-Africana” algumas das normas legais que deram corpo a esse regime. De entre essas normas, talvez a mais conhecida seja o “Regulamento do Trabalho Indígena”, de 1911. Este dispositivo legal considerava crime a quebra do contrato de trabalho por parte de um trabalhador “não-branco”.
7. Antes, em 1899, os portugueses tinham já criado em Angola um documento similar, a que chamaram “Regulamento do Trabalho”. Através de uma verdadeira “engenharia jurídica”, em 1928, o “Regulamento do Trabalho” foi, porém, substituído por um documento mais pomposo, a que deram o nome de “Código do Trabalho Indígena”.
8. O “Código do Trabalho Indígena” ficcionava uma espécie de regime de “trabalho contratual”, contra o trabalho verdadeiramente escravo inserido no “Regulamento do Trabalho” de 1899. Para além da sujeição política, foram práticas como essas que estimularam as revoltas que eclodiram, quase simultaneamente, na África do Sul e em Angola.
9. A grande crise económica mundial de 1929/1933, conhecida hoje como “Grande Depressão”, estimulou a emergência dos regimes fascistas, em Portugal, Espanha e na Itália, e do regime nazista de Adolf Hitler, na Alemanha.
10. Não é abusivo dizer que a radicalização do racismo na África do Sul pode também ser enquadrável nesse contexto político-ideológico internacional, embora, formalmente, o apartheid integral seja uma construção, a partir de 1948, do Partido Nacional. Desde essa altura, e de um modo sistemático, foram elaboradas novas normas jurídicas para suportaram legalmente o endurecimento do regime sul-africano. As pessoas passaram a ser classificadas em função da raça.
11. O Congresso Nacional Africano (ANC) foi fundado em 1912. Em 1950, ele reage contra esse conjunto de iniquidades, apelando à desobediência civil. Emerge, assim, a figura de Nelson Mandela como líder desse movimento de contestação. Nelson Mandela fundara, em 1942, a Juventude do ANC, juntamente com outros dois advogados, Oliver Tambo e Walter Sisulu. O ANC era ainda um partido político legal, na tradição britânica. Pelo contrário, em Portugal e nas suas colónias, proibia-se a criação de partidos políticos. Tinha existência legal apenas a União Nacional, de Salazar.
12. A tentação de alguns políticos africanos para a instalação nos seus países de regimes de Partido Único pode, pelo menos em parte, encontrar respaldo no seu passado de colonizados. Senão, vejamos: Alguns dos processos de descolonização conduzidos pelos britânicos (e mesmo pelos franceses) deram origem a regimes multipartidários. A eliminação dos partidos políticos alternativos decorreu posteriormente, como um fruto dos sucessivos golpes de Estado e da transferência de alguns dos conflitos da Guerra-Fria para o nosso continente. Não é, pois, verdade que todas as independências africanas tenham tido lugar num quadro monopartidário. A descolonização feita atabalhoadamente por Portugal é que unicamente deu origem a regimes de Partido Único.
13. A ilegalização do ANC, e de outros partidos da África do Sul, seguiu-se à reacção de Mandela e seus companheiros ao famoso “Massacre de Sharpeville”, de 21 de Março de 1960, quando a polícia sul-africana atirou a matar sobre manifestantes negros, desarmados, que protestavam contra as iníquas leis do Apartheid. Mandela decide, então, organizar um braço armado com o qual pretendia levar a cabo acções de sabotagem e, se possível, de guerrilha. Por isso, saiu clandestinamente da África do Sul, em busca de apoios junto de países independentes como, por exemplo, Marrocos. É aí que se relaciona com Mário Pinto de Andrade. Existe um testemunho fotográfico dessa relação no livro “Mário Pinto de Andrade – Um olhar íntimo”, de Henda Ducados Pinto de Andrade, onde aparecem, para além de um outro militante do ANC, Rabat Kesha, também Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos, Aquino de Bragança, Amália Fonseca. Mário Pinto de Andrade disse-me pessoalmente que, por essa ocasião, foi ele que apresentou Nelson Mandela aos então combatentes argelinos da FLN (Frente de Libertação Nacional).
14. Nelson Mandela foi sempre um homem exemplar e muito firme nas suas convicções. Definiu, claramente, o Regime do Apartheid como o seu alvo, não as raças, muito menos as pessoas individualmente. Foi essa sua clarividência que salvou a África do Sul da catástrofe que se seguiria se a sua subida ao poder tivesse sido acompanhada por uma feroz luta pelo domínio absoluto, tal como aconteceu entre nós. A nós, faltou alguém capaz de nos guiar por caminhos menos espinhosos, quem conseguisse integrar, e não excluir, quem tivesse visão para perceber que a independência era para todos e não apenas para aqueles que perfilhavam as suas ideias e o seu modo e ver a sociedade e o Estado. Faltou-nos um Mandela. Tivemos, e de sobra, os seus contrários.
15. Mandela soube retirar-se a tempo, e fê-lo com as mãos limpas, quer limpas de sangue, quer de dinheiro. Mandela não lutou para ser ele o rico, ou o mais rico – lutou por todo o povo da África do Sul, um país que é um verdadeiro mosaico rácico, étnico e cultural. Não quis substituir a opressão dos outros pela sua opressão. Quando morrer, todos lhe reconhecerão esse mérito. O espírito reconciliador que norteou a sua vida vai ao ponto de ter convidado um dos seus carcereiros para festejarem juntos os 20 anos da sua libertação.
16. Eu li o livro do jornalista John Carlin “O Jogo que Mudou uma Nação”, que deu origem ao filme, hoje é muito falado no mundo, sobre o modo como Nelson Mandela aproveitou o “Campeonato do Mundo de Rugby de 1995” para descomprimir a tensão que pairava sobre a África do Sul. As duas comunidades, a negra e a branca, estavam quase a enfrentar-se numa guerra civil que atiraria por terra todo o esforço de fazer da África do Sul um país para todos. Mandela contou com a colaboração e a cumplicidade do capitão da equipa de rugby da África do Sul, François Pienaar, um bóer, e ambos conseguiram o milagre: evitaram a guerra civil.
17. Mandela não tem seguidores entre os líderes africanos. Entre estes, são inúmeros os que promoveram (ou alimentaram) guerras civis, ou os que assumiram o golpe de Estado como a via expedita para atingir o poder, e os que procuraram (ou procuram) eternizar-se no poder. Quase todos eles têm a corrupção e o nepotismo como a fórmula mágica para se enriqueceram a si, às suas famílias, e o seu séquito de bajuladores.
18. É verdade que a África do Sul ainda possui vários tipos de assimetrias. É verdade que há ainda muita gente a viver na miséria. É verdade que a insegurança é uma das grandes preocupações para quem vai ou vive na África do Sul. Mas, mesmo assim, a África do Sul continua a ser a maior economia do nosso continente. Ela tem potencial para aumentar o nível de bem-estar da sua população – caso os novos governantes do “país do arco-íris” não queriam contrariar os grandes desígnios que nortearam a luta de Nelson Mandela.
2. Estive entre os milhões de pessoas de todo o mundo que acompanharam, pela televisão, o memorável dia 11 de Fevereiro de 1990. Vimos todos, com emoção, Nelson Mandela – de braço dado com a então sua mulher, Winnie – franquear os portões da prisão Victor Verster, seu derradeiro local de detenção. Antes, Mandela passara por outras cadeias, entre as quais a célebre prisão de Robben Island, perto da cidade do Cabo.
3. A libertação de Mandela era como um sonho a tornar-se realidade. Apenas não se emocionou, quem não seguiu a trajectória prisional de Nelson Mandela. Na verdade, a luta de Mandela quase se confundiu com a luta do povo sul-africano contra o regime do apartheid.
4. Cyril Ramaphosa, político e ex-líder sindical sul-africano – hoje mais dedicado à vida empresarial – reconheceu também que a libertação de Nelson Mandela fora o prenúncio da libertação do povo sul-africano. Embora por outras palavras, Cyril Ramaphosa disse, afinal, o mesmo que dissera o Arcebispo Desmond Tutu.
5. “União Sul-Africana” foi o nome escolhido, em 1910, para designar a África do Sul, ainda um Domínio do Império Britânico. A designação “União Sul-Africana” durou 51 anos, até quando, em referendo realizado em 1961, os brancos sul-africanos decidiram proclamar a República da África do Sul, cortando o laço que os ligava à Coroa britânica e à Commonwealth.
6. O regime de apartheid foi sendo construído progressivamente, uma construção que começou ainda na vigência da “União Sul-Africana”. Por exemplo, são contemporâneas da “União Sul-Africana” algumas das normas legais que deram corpo a esse regime. De entre essas normas, talvez a mais conhecida seja o “Regulamento do Trabalho Indígena”, de 1911. Este dispositivo legal considerava crime a quebra do contrato de trabalho por parte de um trabalhador “não-branco”.
7. Antes, em 1899, os portugueses tinham já criado em Angola um documento similar, a que chamaram “Regulamento do Trabalho”. Através de uma verdadeira “engenharia jurídica”, em 1928, o “Regulamento do Trabalho” foi, porém, substituído por um documento mais pomposo, a que deram o nome de “Código do Trabalho Indígena”.
8. O “Código do Trabalho Indígena” ficcionava uma espécie de regime de “trabalho contratual”, contra o trabalho verdadeiramente escravo inserido no “Regulamento do Trabalho” de 1899. Para além da sujeição política, foram práticas como essas que estimularam as revoltas que eclodiram, quase simultaneamente, na África do Sul e em Angola.
9. A grande crise económica mundial de 1929/1933, conhecida hoje como “Grande Depressão”, estimulou a emergência dos regimes fascistas, em Portugal, Espanha e na Itália, e do regime nazista de Adolf Hitler, na Alemanha.
10. Não é abusivo dizer que a radicalização do racismo na África do Sul pode também ser enquadrável nesse contexto político-ideológico internacional, embora, formalmente, o apartheid integral seja uma construção, a partir de 1948, do Partido Nacional. Desde essa altura, e de um modo sistemático, foram elaboradas novas normas jurídicas para suportaram legalmente o endurecimento do regime sul-africano. As pessoas passaram a ser classificadas em função da raça.
11. O Congresso Nacional Africano (ANC) foi fundado em 1912. Em 1950, ele reage contra esse conjunto de iniquidades, apelando à desobediência civil. Emerge, assim, a figura de Nelson Mandela como líder desse movimento de contestação. Nelson Mandela fundara, em 1942, a Juventude do ANC, juntamente com outros dois advogados, Oliver Tambo e Walter Sisulu. O ANC era ainda um partido político legal, na tradição britânica. Pelo contrário, em Portugal e nas suas colónias, proibia-se a criação de partidos políticos. Tinha existência legal apenas a União Nacional, de Salazar.
12. A tentação de alguns políticos africanos para a instalação nos seus países de regimes de Partido Único pode, pelo menos em parte, encontrar respaldo no seu passado de colonizados. Senão, vejamos: Alguns dos processos de descolonização conduzidos pelos britânicos (e mesmo pelos franceses) deram origem a regimes multipartidários. A eliminação dos partidos políticos alternativos decorreu posteriormente, como um fruto dos sucessivos golpes de Estado e da transferência de alguns dos conflitos da Guerra-Fria para o nosso continente. Não é, pois, verdade que todas as independências africanas tenham tido lugar num quadro monopartidário. A descolonização feita atabalhoadamente por Portugal é que unicamente deu origem a regimes de Partido Único.
13. A ilegalização do ANC, e de outros partidos da África do Sul, seguiu-se à reacção de Mandela e seus companheiros ao famoso “Massacre de Sharpeville”, de 21 de Março de 1960, quando a polícia sul-africana atirou a matar sobre manifestantes negros, desarmados, que protestavam contra as iníquas leis do Apartheid. Mandela decide, então, organizar um braço armado com o qual pretendia levar a cabo acções de sabotagem e, se possível, de guerrilha. Por isso, saiu clandestinamente da África do Sul, em busca de apoios junto de países independentes como, por exemplo, Marrocos. É aí que se relaciona com Mário Pinto de Andrade. Existe um testemunho fotográfico dessa relação no livro “Mário Pinto de Andrade – Um olhar íntimo”, de Henda Ducados Pinto de Andrade, onde aparecem, para além de um outro militante do ANC, Rabat Kesha, também Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos, Aquino de Bragança, Amália Fonseca. Mário Pinto de Andrade disse-me pessoalmente que, por essa ocasião, foi ele que apresentou Nelson Mandela aos então combatentes argelinos da FLN (Frente de Libertação Nacional).
14. Nelson Mandela foi sempre um homem exemplar e muito firme nas suas convicções. Definiu, claramente, o Regime do Apartheid como o seu alvo, não as raças, muito menos as pessoas individualmente. Foi essa sua clarividência que salvou a África do Sul da catástrofe que se seguiria se a sua subida ao poder tivesse sido acompanhada por uma feroz luta pelo domínio absoluto, tal como aconteceu entre nós. A nós, faltou alguém capaz de nos guiar por caminhos menos espinhosos, quem conseguisse integrar, e não excluir, quem tivesse visão para perceber que a independência era para todos e não apenas para aqueles que perfilhavam as suas ideias e o seu modo e ver a sociedade e o Estado. Faltou-nos um Mandela. Tivemos, e de sobra, os seus contrários.
15. Mandela soube retirar-se a tempo, e fê-lo com as mãos limpas, quer limpas de sangue, quer de dinheiro. Mandela não lutou para ser ele o rico, ou o mais rico – lutou por todo o povo da África do Sul, um país que é um verdadeiro mosaico rácico, étnico e cultural. Não quis substituir a opressão dos outros pela sua opressão. Quando morrer, todos lhe reconhecerão esse mérito. O espírito reconciliador que norteou a sua vida vai ao ponto de ter convidado um dos seus carcereiros para festejarem juntos os 20 anos da sua libertação.
16. Eu li o livro do jornalista John Carlin “O Jogo que Mudou uma Nação”, que deu origem ao filme, hoje é muito falado no mundo, sobre o modo como Nelson Mandela aproveitou o “Campeonato do Mundo de Rugby de 1995” para descomprimir a tensão que pairava sobre a África do Sul. As duas comunidades, a negra e a branca, estavam quase a enfrentar-se numa guerra civil que atiraria por terra todo o esforço de fazer da África do Sul um país para todos. Mandela contou com a colaboração e a cumplicidade do capitão da equipa de rugby da África do Sul, François Pienaar, um bóer, e ambos conseguiram o milagre: evitaram a guerra civil.
17. Mandela não tem seguidores entre os líderes africanos. Entre estes, são inúmeros os que promoveram (ou alimentaram) guerras civis, ou os que assumiram o golpe de Estado como a via expedita para atingir o poder, e os que procuraram (ou procuram) eternizar-se no poder. Quase todos eles têm a corrupção e o nepotismo como a fórmula mágica para se enriqueceram a si, às suas famílias, e o seu séquito de bajuladores.
18. É verdade que a África do Sul ainda possui vários tipos de assimetrias. É verdade que há ainda muita gente a viver na miséria. É verdade que a insegurança é uma das grandes preocupações para quem vai ou vive na África do Sul. Mas, mesmo assim, a África do Sul continua a ser a maior economia do nosso continente. Ela tem potencial para aumentar o nível de bem-estar da sua população – caso os novos governantes do “país do arco-íris” não queriam contrariar os grandes desígnios que nortearam a luta de Nelson Mandela.
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