1. Um ilustre professor da UCAN aproveitou uma conversa
comigo para manifestar a sua indignação pelo facto de estar em curso, no Mali, a
destruição dos monumentos mais simbólicos da história cidade de Tombuctu,
situada mais ou menos na fronteira entre o norte e a parte sul daquele país.
2. A destruição dos monumentos de Tombuctu só pode ser
classificada como um acto de autêntica barbárie. Ela começou logo após a tomada
do norte do país por rebeldes tuaregues ajudados por grupos islâmicos radicais,
ao que se diz, ligados à Al-Qaeda do Magreb Islâmico. Mas, agora, com a guerra
que estalou entre estes dois grupos outrora aliados, os islamistas radicais
decidiram impor a sua ordem e passaram pura e simplesmente a arrasar tudo
quanto, para eles, seja tido como atentatório aos seus preceitos religiosos.
3. Recordei, então, ao professor que, quando os rebeldes
se apossaram da parte norte do Mali, eu escrevi um artigo intitulado “Os Tuaregues
e o Curdistão”, com o claro e indisfarçável objectivo de chamar a atenção para a
relativa similitude que julgo existir entre a dispersão dos povos tuaregues por
vários países africanos e o modo como os curdos se disseminam, também eles,
pelo continente asiático. Coloquei, sobretudo, o acento tónico na questão das múltiplas
identidades que o processo de criação formal de muitos Estados foi gerando, nos
curdos e nos povos tuaregues.
4. Eu sou de opinião que as múltiplas identidades de
alguns povos contribuem para fragilizar as fronteiras físicas e geográficas que
o processo colonial estabeleceu com uma dose de arbitrariedade,
transformando-se, por isso, em factor de perturbação e de instabilidade
permanente. O caso do Mali é exemplar, assim como o que se passa no Leste da RDC
para a chamada Região dos Grandes Lagos.
5. Espero, ansioso, que surja uma geração de líderes
africanos com larga visão e com capacidade de entendimento dos fenómenos
geopolíticos para, assim, darem solução a essas heranças, sob pena de repetirmos
permanentemente o regresso ao ponto de partida, ou seja, à condição de países
pobres e sem esperança.
6. Recordo-me que, no texto que escrevi aquando do avanço
dos tuaregues e seus aliados islamistas, “en passant”, aproveitei para
discorrer um pouco sobre a riqueza do património histórico e cultural de Tombuctu.
7. A cidade de Tombuctu é uma cidade milenar que, de
algum modo, já representou a multiculturalidade africana, assim como a sã
convivência possível entre povos songhai, tuaregues e árabes. Tombuctu foi,
igualmente, uma expressão de tolerância religiosa envolvendo muçulmanos,
cristãos e judeus.
8. Para ilustrar melhor a histórica dimensão cultural de
Tombuctu, falei da célebre universidade corânica de Sankoré e das famosas
mesquitas de Djingareyber, Sankoré e Sidi Yahia, hoje feitas alvos
privilegiados de fanáticos islamistas que se aproveitaram da fragilidade do
poder central em Bamako, e da insipiência das estruturas e das forças de
combate dos tuaregues. São, pois, os islamistas radicais, mais fortes e mais
organizados, que agora procuram apagar para sempre todos os vestígios de uma
civilização africana que entrou, com toda a justiça, nos anais do património
material e imaterial da humanidade, reconhecido pela UNESCO, a Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.
9. Em 2001, os talibans do Afeganistão decidiram, eles também,
destruir as gigantescas estátuas de Buda, no Vale de Bamiyan, assim como outras
imagens, considerando-as ofensivas. As estátuas do Vale de Bamiyan datavam de
há mais de 1.500 anos, sendo tidas até ao século X como o ponto principal de um
dos maiores complexos budistas do mundo. Chamaram, por isso, a atenção dos
pesquisadores que procuram estudar os pormenores culturais daquela região,
antes da sua conversão ao Islão.
10.
Afinal, os
islamistas radicais malianos e os talibans do Afeganistão não passam de uma
mesma espécie gente retrógrada e com espírito medieval, situados embora em
continentes distintos.
11.
As notícias agora
chegadas do Mali são, de facto, assustadoras. Dizem, por exemplo, que a aliança
entre tuaregues e extremistas islâmicos se quebrou; que os radicais expulsaram
os tuaregues de Tombuctu; que, aproveitando o domínio absoluto que têm sobre a
histórica cidade, os islamistas partiram para a destruição pura e simples do
seu património histórico.
12.
A sanha
destruidora dos radicais recaiu já sobre tumbas centenárias dos santos sufistas
da cidade. Isto é importante. Por isso, procuro entender o porquê da destruição
de tumbas dos santos sufistas; afinal, também islâmicos como os outros…
13.
Os sufistas são
uma corrente filosófica do Islão, cuja origem se perdeu no tempo. Tida como mística
e contemplativa, procura desenvolver uma relação íntima, directa e contínua com
Deus, socorrendo-se de cânticos, da música e da dança, práticas consideradas
heréticas pelos muçulmanos adeptos da Sharia.
14.
Os sufistas tanto
podem existir dentro do ramo sunita do Islão, como no ramo xiita, até em outros
ramos do Islão, ou mesmo em nenhum deles, pois admitem que se pode alcançar Deus
fora do próprio islamismo. Daí que sejam, muitas vezes, acusados de blasfémia e
perseguidos pelos demais muçulmanos. O que prova que o problema não é o Islão
em si mesmo, mas tão-somente o modo como cada um o interpreta. E Tombuctu, a
cidade africana símbolo da multiculturalidade e da tolerância religiosa, está
hoje transformada no laboratório do ódio e da intolerância. Será que ainda se
vai a tempo de parar?
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