O “CAMARADA VOSTOK”
- Vista do
espaço, a Terra assume uma muito bonita cor azul, como constatou, há 51
anos, o cosmonauta soviético Yuri Gagarin, o primeiro ser humano a orbitar
no espaço. Ele tripulava a nave espacial Vostok I, dando, pois, início à
corrida espacial entre a União Soviética e os Estados Unidos da América. Era
a época da Guerra-Fria e cada um destes dois países não poupava esforços
para se superiorizar ao outro. O Vostok tem, pois, um enorme significado para
o mundo inteiro, que o associa sempre, e de um modo indelével, ao nome de
Yuri Gagarin.
- Para mim,
Vostok também tem um outro significado, faz-me regressar a uma etapa do
meu percurso de vida, quando o destino me colocou no ponto de cruzamento
com um homem, aparentemente simples, mas que, afinal, se revelou como um
dos mais eficazes agentes da PIDE, a polícia política portuguesa. Chamava-se
Sidónio mas, para mim e para outros elementos da luta clandestina, era o
Vostok que, traduzido do russo, significa Planeta. Morava na Vila Alice e
mantinha um negócio na vila de Catete. Fazia com certa regularidade o
percurso Luanda – Catete, o que lhe permita conhecer gente ligada à
clandestinidade articulada com a guerrilha instalada na Primeira Região Político-Militar
do MPLA.
- Aparentemente,
o Vostok (Sidónio) cumpria correctamente o mandato que recebia dos
revolucionários, quer dos que estavam nas matas, quer dos que estavam na
cidade. Levava de um lado para o outro os “materiais” que lhe eram
entregues. Conseguiu, assim, transformar-se no nosso principal
“pombo-correio”.
- O Juca
Valentim, meu companheiro de luta (prematuramente desaparecido), líder do
CRL (Comité Regional de Luanda do MPLA), acreditava piamente no estafeta,
vendo nele um fiel servidor da nossa causa revolucionária. O Planeta (Vostok)
fazia tudo para manter essa aparência. Chegava mesmo a pedir que
arranjássemos mais “material” para ele levar em socorro dos combatentes
que mantinham a chama da luta armada nas matas na Primeira Região. Para o
Juca Valentim ele era homem de inteira confiança do lendário Comandante
Ingo, o meu querido amigo Benigno Vieira Lopes. Pôr em causa esse homem
que ligava directamente ao Ingo era duvidar da própria causa – o era
imperdoável, para o Juca.
- O Planeta
gravitou durante muito tempo em torno de alguns de nós. Também funcionava
como “pombo-correio” do meu primo Mário Guerra, outro activista da luta clandestina
com múltiplas articulações. O Mário Guerra morreu há pouco mais de um ano.
Felizmente, ainda tivemos a possibilidade de conversar e recordar, com
alguma angústia, as peripécias do famoso “pombo-correio”, o Vostok.
- Estafeta
“seguro”, o Vostok tinha um estatuto especial: apenas se relacionava com
os chefes, e mesmo aqui, com um número muito restrito, para garantir a
confidencialidade que a luta clandestina exigia.
- Ao nível do
CRL, éramos em número bastante reduzido os que sabíamos da existência do “pombo-correio”.
Os membros da células, certamente que desconfiavam que possuíamos um elo
de contacto bastante eficaz, dado que o “material” saía e, aparentemente,
chegava inteiro e completo ao seu destino: às matas, aos nossos heróicos
guerrilheiros. Foi assim durante anos. Eu acredito que o Vostok cumpria,
pelo menos em parte, as missões de que era incumbido, quer num sentido,
quer no outro. No seu vai-e-vem entre a cidade e o campo.
- O Vostok
trazia mensagens supostamente provenientes dos nossos camaradas, relatando
as dificuldades e os feitos da luta, a precariedade dos meios em posse dos
guerrilheiros, as difíceis condições de vida destes e das populações em
seu redor. Falava dos quartéis “Brno” e “Europa”, símbolos da resistência
na Primeira Região. Os seus relatos emocionavam-nos e alimentavam a nossa
determinação de prosseguirmos nessa senda, até à vitória final! Dizia que
o Comandante Ingo já fazia algumas incursões próximo da Luanda. Que,
disfarçadamente, outros combatentes penetravam no perímetro urbano, pondo
em cheque a malha de segurança das forças armadas portuguesas e da PIDE.
Enfim, no meio das notícias sobre dificuldades e sofrimentos, as aventuras
relatadas pelo Vostok enchiam de orgulho e de esperança qualquer
revolucionário.
- A luta clandestina
e a luta armada alimentaram-se de sonhos, de esperanças, mas, também, de
dor e sofrimento. Sobretudo, daquele sofrimento que não se traduz em
desânimo e, sim, na convicção de a nossa causa ser justa. Se alguém caísse
pela causa, a saía causa ainda mais fortalecida. Era assim a nossa alma.
- O Vostok
trazia e levava “coisas”. Um dia o meu saudoso companheiro Juca Valentim
apareceu, naquele seu estilo revolucionário, com “material” vindo da mata…
Entre outras coisas, trazia a Acta do julgamento e da execução do Miro,
nas matas da Primeira Região.
- O Miro, o
Casimiro de Almeida, responsável pelo sector da educação fora julgado por
traição à causa revolucionária. Já não me recordo dos pormenores, mas,
entre outras razões, “por falta de respeito para com o povo”.
Supostamente, também, “por querer manter contacto com os portugueses”.
Creio que era disto que o acusavam. O Miro tinha sido estudante
universitário na Europa (era estudante de Economia) e respondera ao apelo
do Presidente Neto de abandonar “o comodismo da Europa” para vir lutar ao
lado do povo. Veio, abandonou tudo.
- Dizia-se que
o Miro era culto e com boa formação política. Tinha tido cargos de
responsabilidade na Juventude do Movimento. Era, por isso, elemento de
referência, mesmo para nós, jovens do “Interior” (Era assim que se
designavam os militantes da luta clandestina).
- Desconfiei
da qualidade das acusações feitas ao Miro. Fiquei também bastante chocado
com o seu fim, com o modo como foi fuzilado. Estava tudo relatado na Acta
que o Vostok trouxe para nós.
- Interroguei-me
sobre o porquê de os nossos camaradas nos terem mandado aquela Acta. E para
quê? Para nos informarem apenas, estreitando desse modo a nossa relação?
- Coloquei a
questão ao Juca e ao Vicente. Não seria a PIDE a ter entregue a Acta ao
Vostok, para ele ficar junto de nós a imagem de um estafeta de confiança,
ao ponto de lhe entregarem a prova desse acto? O quê que o “Interior”
ganhava ao tomar conhecimento do seu fuzilamento e das razões que o
determinaram?
- Disse ao meu
companheiro Juca Valentim: “Lamento dizer-te, Juca, mas desconfio que o
Vostok também trabalha para a PIDE! Ele está a fazer o papel de agente
duplo! Não sei apenas para qual dos lados ele é mais sincero…”. O Juca e o
Vicente ouviram-me, atentos. O Juca abalou, vi no seu olhar, mas portou-se
como um chefe: não respondeu.
- A partir
daquele momento, tomei consciência de que a PIDE já nos tinha tomado por
dentro. A PIDE tinha entrado profundamente nas nossas hostes. Estávamos
“fritos”. Era só uma questão de tempo... E foi assim, de facto.
- Passados
tempos, o Juca disse-me que tínhamos uma missão de alto risco a cumprir: que
nos íamos encontrar com guerrilheiros, entre os quais o Comandante Ingo, numa
localidade depois de Catete, em local secreto. De quem viera a instrução?
O Juca respondeu-me que o Vostok trouxera a missão do próprio Comandante.
Que iríamos os três, Juca, eu e Vicente. A minha resposta foi: “Nem
penses! É a PIDE que se quer desenvencilhar de nós. Querem decapitar o CRL,
e apanhar o Comandante, que nem um pato…” O Juca disse-me para pensar bem,
pois desobedecer a uma ordem revolucionário do Comandante, a uma chamada
sua, era grave indisciplina revolucionária. E, por isso, pagava-se caro…”
- Passaram-se
poucos anos e fomos realmente presos pela PIDE. Primeiro o Juca, depois o
Vicente, o Vasco de Jesus, Chico Caetano, o Gilberto. Eu. E mais outros:
Calhandro, Aldemiro, Jaime Cohen, Alberto Neto, Alcino Borges, Nado, André
Mateus Neto, Augusto Bengue, Paiva Domingos da Silva, e muitos mais aqui
em Angola. Para além de Lisboa: Garcia Neto, Rui Ramos, Joaquim Pinto de
Andrade, Sabrosa, Diana Andringa, Raul Feio, Zefos. E mais. E mais. Caiu
boa parte do CRL e a sua conexão de Portugal.
- E o Vostok?
Será que o Vostok também estaria preso? Por que não, se ele era um dos
principais “pombos-correio”? Ele que conhecia alguns dos contactos da
organização…
- Poucos dias
antes da minha prisão, o meu primo Mário Guerra abordou-me secretamente
(num sítio ermo junto ao actual Hospital Américo Boavida), perguntando-me
se eu tinha um estafeta, pois queria dar fuga a um companheiro nosso (operário
da tipografia onde se fazia a revista Notícia) que entrara na
clandestinidade. Ele precisava de ser posto “ao fresco” imediatamente.
Disse-lhe que já não confiava há muito tempo no estafeta principal, no
Vostok, e que, de imediato, não tinha outro em mão. Que talvez o Vicente
tivesse algum outro, mas que nunca me tinha posto ao corrente. E o Vicente
estava preso.
- Vou encurtar
caminho. O Vostok continuou em liberdade… Fomos todos, ou quase todos para
a “pildra”, para a cadeia, e depois deportados, uns para São Nicolau,
outros para o Tarrafal. No Tarrafal constatei que muitos dos presos que lá
encontrei e que tinham estado ligados à Primeira Região, tinham também
eles conhecido e utilizado o Vostok como elo de contacto… Mais grave: além
de terem sido presos em vagas sucessivas, todos conectados com o Planeta,
ainda assim acreditavam que “O Camarada Vostok”, como eles diziam, era um
grande revolucionário. Depois, vim a saber que o Vostok ainda continuou a
fazer os seus estragos…
- O último
estrago do Planeta – talvez o maior e mais cobarde – foi ter entregue às
mãos da PIDE o Comandante Ingo, grande glória da nossa luta. O Heróico
Comandante foi atraído a uma emboscada e entregue, praticamente de bandeja,
à polícia política portuguesa. A notícia da sua prisão tocou no nosso
cérebro como um terramoto – mesmo à distância.
- Escrevo este
texto porque os americanos acabam de mandar uma nave altamente sofisticada
ao Planeta Marte. A nave chama-se “Curiosity”. O que espicaçou a minha
curiosidade.
- Mais de 40
anos depois, lembrei-me do “Camarada Vostok”, o gajo que nos entregou a
todos. E se não tivesse chegado o 25 de Abril, que ele teria feito ainda
mais? Talvez continuasse por mais tempo “a fazer das suas”, a entregar
mais nacionalistas á PIDE. Esta é a minha “curiosity”.
E quem era o Vostok? O que é feito dele?
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