domingo, 19 de junho de 2011

Iémen - um emaranhado de conflitos

JUSTINO PINTO DE ANDRADE (14/06/2011)

IÉMEN – UM EMARANHADO DE CONFLITOS

1.
Embora a NATO esteja a intensificar os bombardeamentos aéreosna Líbia, a atenção mundial concentra-se agora no Iémen e na Síria, países onde a contestação assume proporções tidas como dramáticas. Pelas suas conexões, qualquer um dos dois conflitospode repercutir-se nos países vizinhos e mesmo até incendiar uma boa parte do mundo árabe.

2.
É, sobretudo, por isso que decidi abordar esta questão, na tentativa de ajudar a um melhor entendimento, o que somente se consegue se lhe dermos uma perspectiva histórica e, também, no quadro da geopolítica actual. Estamos, pois, a falar de uma área geográfica que é, seguramente, das mais complicadas do mundo: o Médio Oriente.

3.
Hoje a tentação para se assumir todos os movimentos de contestação aos regimes ditatoriais instalados na região arábicacomo simples erupções populares visando a consagração de regimes políticos mais democráticos. Acredito que assim o seja em alguns países, como foram os casos do Egipto e da Tunísia, mesmo até da Líbia.

4.
Pelo modo das manifestações, ficou visível que os protestos naqueles países visavam o derrube de ditaduras e a sua substituição por regimes democráticos mesmo que, a certa altura, se tenham juntado aos protagonistas iniciais um outro tipo de contestatários, muitos dos quais com outras motivações, algumas delas de carácter religioso.

5.
No caso do Egipto, não está posta fora de hipótese a existência damão invisível da Irmandade Muçulmana, mesmo que tal facto não retire o mérito democrático aos jovens que desencadearam o processo. Compete agora aos protagonistas bem intencionados agirem no sentido de evitar que outros protagonistas se aproveitem do seu trabalho e, em especial, da sua boa-fé para desviarem o rumo dos acontecimentos, fazendo abortar os projectos que os primeiros idealizaram. Compete-lhes também fazer prevalecer os interesses nacionais, não deixando, pois, que eles sejam superados pelas ambições hegemónicas de potências estrangeiras, geralmente mais interessadas em fazer vingar os seus ganhos eventuais. Esse éum risco a ter sempre em conta em contextos de mudança.

6.
Visto na aparência como uma luta contra uma ditadura renitente, o caso do Iémen tem ingredientes que não se podem perder e vista.Pelo seu passado, pelo modo como se constituiu, e também pelo seu presente vive hoje, trata-se de um país onde, afinal, coexistemvários conflitos muitos dos quais imbricados, e outros até ligados por ténues lianas.

7.
A actual República do Iémen resultou da unificação, em 1990, doque antes foram dois países soberanos e com processos de gestação distintos: o Iémen do Norte e o Iémen do Sul.

8.
A parte norte do Iémen esteve durante muitos anos sob domínio do Império Otomano, um domínio que deixou como herança uma forte cultura islâmica. Sofre ainda grande influência da Arábia Saudita, com quem confina. Tornou-se um estado independente,fruto da derrota do Império Otomano no final da I Guerra Mundial, adoptando a designação República Árabe do Iémen.

9.
O Iémen do Sul foi primeiro um protectorado e, depois, passou acolónia britânica, na altura em que estes estavam profundamenteengajados naquelas paragens, por causa do intenso fluxo comercial com a Índia. Tornou-se independente do Reino Unido em 1967,optando pela instalação de um regime filo-comunista. Mesmo assim, e fruto do contacto político e cultural com a potência colonial, o Iémen do Sul tornou-se culturalmente mais ocidentalizado do que o seu vizinho do norte.

10.
A queda do Império Soviético debilitou o governo do Iémen do Sul, e facilitou a unificação dos dois territórios. Estabeleceu-se, então, o compromisso de a nova República ser dirigida por um Presidente originário do norte e um Primeiro-Ministro originário do sul do território.

11.
Embora possua algumas reservas de petróleo e gás, o Iémen é o estado mais pobre do mundo árabe. Está, também, repartido por diversas tribos, muitas das quais mantêm milícias, o que dificulta o controlo efectivo de todo o território pelo governo central. São essas tribos que dominam as áreas rurais e se tornam campo fértil para a disseminação de movimentos insurgentes até de cariz religioso.

12.
Um dado importante a juntar a este complexo problema é o facto de a família de Osama Bin Laden ser originária do Iémen, o que,de algum modo, explica a forte implantação da Al Qaeda no país.Não é, pois, por um mero acaso que essa organização terrorista realizou algumas das suas acções mais espectaculares precisamente no Iémen, onde , também, unidades especiais norte-americanasque lhes dão combate. Já se compreende melhor a razão por que oPresidente Ali Abdullah Saleh tem alegado que a sua saída do poder daria campo livre aos extremistas dessa organização. É que ele quer apresentar-se ao mundo como o político iemenita mais capaz de travar a Al Qaeda.

13.
Em resumo, o Iémen corre, pois, o risco de mergulhar numa profunda guerra civil, envolvendo, por exemplo, os houthis (tribos xiitas do norte), os grupos separatistas que se espalham pelo sul do país, além, claro, dos seguidores de Bin Laden.

14.
Porém, a importância estratégica do Iémen não se limita a este complicado caldo de forças extremistas. Ela aumenta ainda mais se tivermos em conta que é uma peça-chave na região do Mar Vermelho, uma vez que controla a parte norte do Golfo de Aden. O Mar Vermelho e o Golfo de Aden são uma região bastante sensível para o comércio mundial, que vive em permanentesituação instabilidade, desde que a soberania da Somália se esboroou e emergiu com crescente actividade a acçãodesestabilizadora dos piratas do mar.

15.
Percebo agora com mais clareza o porquê dos autênticos “pezinhos de lã com que o mundo, e, em especial, o Ocidente tratam o conflito no Iémen, onde qualquer acto precipitado pode desencadear vários tipos de conflitos que, depois, se alastrarão aospaíses vizinhos, eles igualmente muito vulneráveis.

16.
É mesmo caso para dizer: O Iémen não é a Tunísia, nem o Egipto, muito menos a Líbia Caso queiramos, podemos mesmo equipará-lo à Síria, um outro esquema bastante complicado.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

A ÁFRICA NA ALTURA DAS INDEPENDÊNCIAS

  1. A OMUNGA, uma associação cívica com sede no Lobito, voltou a convidar-me para palestrar no seu espaço habitual, o “Quintas de Debate”, onde, por norma, se reflecte sobre questões pertinentes da actualidade.

  1. O “Quintas de Debate” realiza-se, com alguma regularidade, na Província de Benguela, fazendo por lá passar diversos fazedores de opinião, em princípio, especialistas em matérias de áreas da nossa vida social, económica, cultural e política. Esse espaço de reflexão tornou-se, assim, um contribuinte muito activo e um dos responsáveis pela dinâmica democrática de que Benguela se tornou, nos dias que correm, uma referência obrigatória.

  1. A OMUNGA pediu-me, pois, que falasse sobre os processos de transformação democrática no nosso continente, enquadrando-os, se possível, com o papel da União Europeia. Trata-se de uma articulação que requer alguma percepção da história, daí que ela exija uma certa análise retrospectiva. Caso contrário, podemos cometer falhas de apreciação. É, por isso, compreensível que a OMUNGA quisesse aproveitar a passagem de mais um aniversário da constituição da OUA para nos debruçarmos sobre problemas que afligem África.

  1. Nos últimos dias, eu e também outros fazedores de opinião desdobramo-nos realizando palestras em muitos locais. Conseguirmos, assim, responder aos diversos pedidos que nos foram formulados. Muitas delas por solicitação de instituições de ensino superior, facto que demonstra a vontade que as universidades têm de se envolver na análise dos problemas mais candentes das nossas terras, do nosso mundo e da nossa época.

  1. A razão por que agora tanto se fala de África, felizmente, não é pelo surgimento de uma grave epidemia, também não é porque houve um desastre natural de grande impacto, muito menos pela eclosão de um motim num quartel, ou um massacre étnico, ou mesmo por qualquer golpe de estado. É porque a África de hoje gera expectativa face aos processos de mudança que estão em curso, que tiveram início no norte de África e que, a prazo, poderão repercutisse noutros espaços do nosso continente.

  1. Há 17 anos, os noticiários internacionais abriam com imagens horríveis do que se passava na Ruanda. Um pouco antes, era o drama da Somália que prendia a atenção do mundo. Ou, então, a guerra civil de Angola, ou o conflito civil no Congo Democrático, ou a guerra entre o Congo e o pequeno Ruanda, etc. Tudo isso estimulava apreciações, geralmente negativas, sobre a nossa capacidade de manter a paz social e a soberania sobre os nossos territórios.

  1. Achei, por isso, muito interessante o pedido que me foi dirigido para que eu abordasse a questão da União Europeia nos processos de transformação democrática em África, um assunto com muitos possíveis ângulos de abordagem. Foi essa perspectiva que me motivou, e, sobretudo, porque soube que a palestra contaria com a presença do Embaixador da União Europeia em Angola. Mas, infelizmente, o diplomata europeu não pôde chegar a tempo de participar no evento, o que, de certo modo, retirou algum brilho e também ansiedade ao acontecimento.

  1. A presença do Embaixador da União Europeia no debate de Quinta-feira, em Benguela, seria a oportunidade soberana para ouvir, de viva voz, os contributos de quem, certamente, estará melhor abalizado para dar pormenores sobre uma matéria que é importante para os nossos dois continentes. Mas, tenho a certeza que, no futuro, surgirão outras ocasiões para o ouvirmos falar sobre esse assunto, e até mesmo sobre outros que, afinal, nos interessa todos.

  1. É evidente que um tema como esse contempla algum melindre, dada a natureza específica da diplomacia. De qualquer modo, mesmo que, por vezes, os diplomatas recorram à linguagem codificada, sempre é possível decifrar, nas suas entrelinhas, a essência da mensagem e então entender melhor os fenómenos.

  1. No curto espaço de um artigo como este é impossível eu reproduzir tudo quanto abordei na palestra de Benguela. Mas, posso dizer-vos que comecei por clarificar um assunto que permite, depois, entrar propriamente no cerne do problema, ou seja, na interligação dos processos em curso em África com o espaço europeu onde o processo democrático conhece maiores desenvolvimentos.

  1. Porém, não deixei de fora a questão das dificuldades que a União Africana tem para se adaptar ao novo mundo que agora se desenha, um mundo em que os velhos esquemas de governação, e também os velhos protagonistas estão a ser seriamente postos em causa. Por isso, não hesito em dizer que, hoje, faz todo sentido inquietarmo-nos e, também, questionarmo-nos.

  1. Na minha dissertação, comecei por esclarecer um facto que pode ser desconhecido por muita gente. É que, de início, nem todas as independências africanas culminaram na instalação de sistemas políticos mono partidários, tal como sucedeu, por exemplo, em Angola. Salvaguardadas algumas excepções, as independências dos países africanos anglófonos e francófonos produziram sistemas políticos multipartidários, à semelhança das suas próprias potências coloniais. É que a Inglaterra e a França eram democracias. Registo, porém, e como exemplo, as excepções da Argélia e da Guiné-Conacry (ex-colónias francesas).

  1. O Congo-Kinshasa (que é o actual Zaire) ascendeu à independência num quadro multipartidário, na sequência da Mesa Redonda em que se negociou a sua descolonização. O reino da Bélgica era, igualmente, uma democracia e, por isso, permitiu que, na sua colónia, se gozassem alguns direitos e liberdades que apenas as democracias consentem. Inclusive, havia no Congo-Kinshasa partidos políticos legais e outras formas de associação política.

  1. De modo algum quero confundir multipartidarismo com democracia, mas é verdade que, na maior parte dos países africanos que se tornaram independentes no início da década de 1960, se deu uma verdadeira regressão democrática. Ou seja, passaram do multipartidarismo para o mono partidarismo, sobretudo fruto do ciclo infernal de golpes de estado que viraram uma espécie de “moda” no nosso continente.

  1. Olhando com algum cuidado os processos africanos, reparamos que, lá onde se instalaram os sistemas mono partidários, foi precisamente onde as independências foram precedidas por lutas armadas de libertação, seja porque houve um único protagonista da luta (caso da Argélia e da grande maioria das antigas colónias portuguesas), seja porque um dos movimentos de libertação conseguiu controlar o país, excluindo do poder os restantes actores (como foi o caso de Angola).

  1. O destino dos países africanos de expressão portuguesa foi muito condicionado pela luta armada, mas, igualmente, pelas características políticas da potência colonial, ela própria sujeita a um regime fascista, logo, adversa a todo o tipo de pluralismos. A potência que nos colonizou estava numa encruzilhada: descolonizar e lutar também para vencer os apetites totalitários que se manifestavam internamente.

  1. Quero, então, dizer que nós, uma vez desvinculados de Portugal, fizemos precisamente o percurso inverso ao dos que foram colonizados por democracias: partimos do mono partidarismo para o pluripartidarismo.

  1. Não temos, pois, qualquer memória histórica de uma vida democrática, o que poderá constituir, nos dias de hoje, em maior dificuldade para nos adaptarmos ao jogo das liberdades democráticas. Acresça-se a isso o facto de muitas das nossas lideranças terem sido “culturadas” em sociedades adversas à democracia. Daí, portanto, a sua enorme dificuldade em conviverem com a diferença, seja ela de que tipo for.

  1. Julgo que esse é o ponto de partida para uma abordagem sobre os processos de democratização e o seu melhor entendimento. Depois poderemos caminhar para outros desenvolvimentos, incluindo a análise da envolvente externa. É para aí, possivelmente, que caminharemos numa próxima crónica.

UNIÃO EUROPEIA, UNIÃO AFRICANA E A DEMOCRATIZAÇÃO EM ÁFRICA

  1. Ao contrário do que se possa hoje pensar, alguns dos actuais países africanos ascenderam à independência num quadro multipartidário, um pouco à semelhança das suas antigas potências coloniais. Foi assim nas colónias inglesas, nas francesas e nas belgas. O caso português constituiu a grande diferença.

  1. A explicação para tais comportamentos reside no facto de as primeiras independências (ex-colónias inglesas, francesas e belgas), ocorridas em finais dos anos da década de 1950, e, sobretudo, na década de 1960, terem sido o fruto de processos negociais, mais ou menos pacíficos, entre os governos coloniais e representantes de formações políticas com existência legal nas colónias.

  1. Mas, também houve excepções. Refiro, por exemplo, a Argélia, tornada independente em 1962, após a assinatura do Armistício de Evien, no rescaldo de uma dura guerra de libertação que custou inúmeras vidas. Instalou-se, pois, então, na Argélia, um sistema político mono partidário, com a FLN a apresentar-se sozinha às eleições. Ahmed Ben Bella eleva-se, assim, à condição de Presidente. Naquele país, o multipartidarismo só é instalado em 1988, após a eclosão de motins, e fica condicionado em 1992, quando tem lugar a ilegalização da FIS (Frente Islâmica de Salvação, vencedora das eleições legislativas), e o consequente estabelecimento do estado de emergência.

  1. O Quénia é uma excepção no processo de descolonização africana realizado pelos ingleses, pois é precedido de uma sangrenta luta de libertação, liderada por elementos da tribo Kikuyu que, revoltados pela perda das suas terras, constituíram uma sociedade secreta que ficou conhecida como a Rebelião Mau-Mau. Mesmo assim, prevaleceu o princípio do multipartidarismo que, em 1982, regride para mono partidarismo quando se entra no período mais duro do governo de Daniel Arap Moi.

  1. A República Democrática do Congo é também um exemplo de regressão de um sistema multipartidário para o mono partidarismo. Este país ascende à independência, após uma mesa redonda que envolveu nacionalistas e a Bélgica, a potência colonial. Decidiu-se, então, pela criação de 6 governos provinciais e um forte governo central. Pela via eleitoral, Joseph Kasavubu (chefe do Partido Abako), tornou-se Presidente da República e Patrice Lumumba (líder do Movimento Nacional Congolês), ficou Primeiro-ministro.

  1. Instalou-se o caos no Congo. Lumumba é preso e morto. Moisés Tshombé, governador da província mais rica, sobretudo em minerais, o Katanga, proclama a sua secessão. Outras províncias ameaçam seguir a mesma via, e o Exército assume verdadeiramente as rédeas do poder até que, finalmente, em 1965, Joseph Mobutu se faz proclamar Presidente da República. Segue-se um longo período de regime de um único partido.

  1. Podemos, pois, dizer que muitos dos poderes que se instalaram em África foram legitimados pelo papel que jogaram no processo de ascensão à independência, quer tenham sido processos pacíficos, quer tenham implicado o recurso às armas. Mas, nem todos começaram pela via da governação solitária, sem oposição.

  1. O caso português é diferente, sobretudo porque o processo de ascensão às independências teve lugar num contexto em que a própria potência colonial estava numa verdadeira encruzilhada: ou se implantava a democracia em Portugal, ou o país cedia às tentações totalitárias de algumas das suas forças políticas internas.

  1. No caso das colónias portuguesas, prevaleceu o princípio da legitimação política pela via da participação na luta de libertação nacional, independentemente dos ideários dos movimentos de libertação. Mas, ao contrário do que sucedeu com a maioria das colónias francesas e inglesas (ou mesmo no Congo-Belga), todos os países africanos de expressão portuguesa iniciaram o seu percurso como nações independentes com sistemas mono partidários.

  1. Os anos que se seguiram às independências da maioria das ex-colónias, foram marcados por golpes de estado militares que puseram fim às poucas liberdades democráticas que então existiam. Foram dezenas os golpes de estado que ocorreram no nosso continente desde 1960, fazendo sobrevir regimes políticos ditatoriais com diversas características, até mesmo as mais funestas.

  1. Com ligeiras excepções, a tónica dos processos de descolonização em África assentou na manutenção dos interesses económicos e/ou geo-estratégicos das potências coloniais, os quais julgava-se serem melhor assegurados pelos chamados regimes fortes (autoritários ou ditatoriais). Alegadamente, tais regimes fortes evitariam a desagregação dos novos estados, permanentemente ameaçados por eventuais convulsões. É essa perspectiva (a salvaguarda dos interesses das potências coloniais e o medo da desagregação dos estados) que torna simpáticos aos olhos das antigas potências os golpes que se vão sucedendo.

  1. A rivalidade decorrente da Guerra Fria entre o Ocidente e os países do chamado Bloco do Leste foi um estímulo à manutenção de muitos regimes autoritários em África, ora suportados por países ocidentais, ora respaldados sobretudo pela União Soviética; mas, também, pela China, mesmo que em menor número. Poucos países africanos escaparam a esse determinismo.

  1. Com o final da Guerra Fria e a consequente alteração da geoestratégia, com a própria consolidação do mercado europeu sobrevieram, então, novos interesses e emergiram outros conceitos: os países ocidentais decidiram promover reformas políticas em África que passariam pela realização de eleições, por práticas de boa-governação e transparência na gestão da coisa pública, combate à corrupção, etc.

  1. Depois de 1990, e num curto período de tempo, assiste-se a uma verdadeira onda multipartidária em África, inclusive, com alterações de poder por via dos processos eleitorais. Cabo Verde terá sido um dos países onde se verificou uma tão rápida e profunda alteração.

  1. Parecia que acabáramos de entrar numa nova fase da vida dos povos africanos, com os direitos dos povos e dos cidadãos a serem tidos em conta pelos governantes. Mas, afinal, foi sol de pouca dura: os poderes instalados reganharam o fôlego perdido e as eleições que se seguiram quase que, invariavelmente, culminam nos mesmos resultados. Vitórias estrondosas dos poderes instituídos. Deixou de haver alternância. Ficou-se apenas pelas eleições, quase sempre contestadas como fraudulentas.

  1. Hoje, vamos já assistindo a factos curiosos e bastante contraditórios: os poderes instituídos fazem-se reeleger com “scores” eleitorais demolidores. Mas, depois, esses mesmos poderes são contestados nas ruas por multidões imensas que os fazem derrubar. Sucedeu assim na Tunísia, no Egipto, com o povo na rua, em fúria. Agora é o ditador líbio que está encurralado: de um lado, está uma parte do seu povo a querer linchá-lo, do outro, está grande parte da comunidade internacional a querer ajustar velhas contas. Muhmmar Gaddafi conhece os dias mais angustiantes do seu longo mandato.

  1. Também há casos em que os ditadores “reciclados” se recusam a aceitar as derrotas nas urnas, forçando soluções de compromisso. Compromissos que visam tão-somente manter o poder real nas suas mãos. Lembro-me, por exemplo, dos casos do Quénia e do Zimbabwe. Ou do caso mais recente que acabou por degenerar em convulsão civil e militar de enorme gravidade: a Costa do Marfim. E mesmo até as últimas eleições presidenciais na Nigéria que esteve à beira de uma guerra civil. A União Africana tem-se mostrado incapaz de ajudar a dar solução a todas estas situações.

  1. Mesmo que tenha inserido nos seus princípios reitores a defesa da democracia e do estado de direito, a União Africana vive o dilema de ter no seu seio líderes que açambarcaram o poder por meio de golpes de estado militares (em alguns casos, manchados por vastas poças de sangue). Sentam-se também nos cadeirões da União Africana líderes quase eternos e que ainda reclamam a legitimidade da luta de libertação, ou quem se tenha feito eleger com o recurso a métodos fraudulentos, ou os que são herdeiros do poder dos progenitores.

  1. A União africana não possui instrumentos de política eficazes para promover a democracia no nosso continente, porque a maioria dos seus líderes não possuem tal cultura, e muito dificilmente se adaptarão a mudanças reais. A partir daí já é mais fácil compreender o modo titubeante como a União Africana actua, quando surgem situações de violação das mais elementares regras democráticas. Por isso, passeiam-se, altaneiros, pelos seus corredores Mwai Kibaki, do Quénia, e Robert Mugabe, do Zimbabwe, perdedores de eleições presidenciais nos seus países e que depois fizeram chantagem com o temor de guerras civis. E a UA protege-os, se lhes são impostas sanções internacionais. Cobre igualmente o Presidente do Sudão, responsável máximo (e confesso) de um conflito que já custou ao país muitos milhares de vidas humanas no Darfur.

  1. É esta a solidariedade africana de que necessitamos? Eu penso que devemos ser apenas solidários para com aqueles que respeitam regras civilizadas de convivência social, para com os que dão garantias de materialização nos seus países das liberdades democráticas.

  1. A União Africana não tem uma matriz distintiva. Afinal, ela funciona como um centro de apoio aos políticos que se eternizam no poder, independentemente dos sacrifícios que tenham que ser consentidos.

  1. No recente caso da Costa do Marfim, assistiu-se a tentativa de legitimação do usurpador do poder. Acenou-se com o espantalho do regresso da velha potência colonial e da violação da soberania de um estado membro. Desvalorizou-se, porém, a outra componente do problema: a atitude antidemocrática daquele que perdeu, e cuja derrota foi reconhecido por quase todos, com excepção dele próprio e de poucos mais que estão perfeitamente identificados. Isso em nada contribui para a democratização da vida no nosso continente.

  1. A União Europeia e outros países ocidentais utilizaram, até a pouco tempo, os recursos da cooperação internacional com meio de pressão política para a promoção de reformas políticas nos países africanos. Mas centraram-se, sobretudo, na realização de eleições.

  1. Os países ocidentais e, particularmente, a União Europeia, pouco têm feito para a real democratização do nosso continente, uma vez que quase se limitam à exigência de realização de eleições. De modo algum tocam na própria essência da democracia. A realização de eleições, mesmo que amplamente contestadas, permite a legitimação política pelas potências ocidentais e pelos organismos financeiros internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, de regimes corruptos instalados.

  1. A certificação da justeza dos processos eleitorais em África quase se tem resumido a uma observação visual da extensão das filas no momento do voto. São sistematicamente descurados todos os outros procedimentos, especialmente aqueles que antecedem o momento do voto, e mesmo até os mecanismos de apuramento dos resultados.

  1. Em África, as fraudes eleitorais têm antecedentes. Vou enumerar alguns: i) Há um domínio absoluto por parte dos poderes instalados sobre os instrumentos de comunicação de massa; ii) Há o controlo total dos instrumentos financeiros por parte de quem está no poder; iii) Controlo, perseguição e repressão das oposições; iv) Manutenção de polícias políticas ao serviço de quem manda; v) Controlo absoluto partidário sobre o aparato administrativo do estado, etc.

  1. Em nome do princípio da não ingerência nos processos internos, os países ocidentais – de que a União Europeia é uma peça essencial – fazem por ignorar toda a mecânica que desvirtua e retira seriedade aos processos democráticos. Passa-se por cima do que é essencial e sobrevaloriza-se o acessório.

  1. A prioridade ocidental é, pois, a manutenção e o aprofundamento das relações com os governos instalados, um comportamento que é estimulado pela crescente competição em África com a China e outras potências emergentes, como a Índia, ou mesmo até o Brasil.

  1. Será também do interesse das potências ocidentais a manutenção de muitos dos actuais regimes autoritários, sob o pretexto de que eles garantem uma maior eficácia na utilização dos recursos que são disponibilizados. Mesmo que, publicamente, digam estar preocupados com a questão da corrupção e da falta de transparência. Parece que temem qualquer eventual incerteza decorrente da instalação de soberanias internas democráticas, que podem ser acompanhadas por períodos de instabilidade.

  1. Temos casos de países carentes de democracia e que possuem importantes recursos naturais, muito em especial, recursos energéticos. Muitos destes países estão já a exportar capitais e domiciliá-los nas antigas metrópoles, acasalando aí os seus interesses com interesses locais. Por isso, os estados democráticos nessa situação estão muito sujeitos aos lobbies internos.

  1. Os países com muitos recursos, mas carentes de democracia, estão igualmente a servir de receptador de força de trabalho proveniente da Europa, um continente em crise de crescimento económico e, por isso mesmo, pouco capaz de gerar suficientes postos de trabalho.

  1. Não nos podemos esquecer de um outro pormenor importante: a luta contra o terrorismo e o temor ao islamismo radical condicionam muito a acção dos governos ocidentais, levando-os a apoiar regimes antidemocráticos em África que, aparentemente, lhes dão garantias de solidariedade.

  1. Os actuais desenvolvimentos no Norte de África, onde se multiplicam e tornam vitoriosos movimentos democráticos, podem ter chamado a atenção do mundo para uma nova abordagem sobre África. A Europa e os EUA prometem apoio multifacetado a esses movimentos. Finalmente, pode ser uma luz no fundo do túnel e um sinal de que o sofrimento dos africanos causado pelos velhos ditadores está a chegar ao fim.