sábado, 19 de fevereiro de 2011

EM MEMÓRIA DA MINHA MÃE MARIA LUZIA

1. Escrevo esta crónica precisamente no dia em que a minha mãe, Maria Luzia, faria 100 anos de idade. Faço-o com o carinho de um filho que lhe ficará eternamente grato, por tudo quanto aprendeu com ela ao longo da vida. Aqui, neste espaço, resumirei somente uma das suas belas facetas, das muitas que poderei narrar um dia, talvez, em memórias. Se tiver tempo para as escrever…

2. A minha mãe nasceu no Golungo Alto, no dia 13 de Fevereiro de 1911, quando o Golungo Alto era uma área do nosso país que se afirmava como das mais prometedoras para a produção agrícola.

3. Foi no Golungo Alto que despontou também, ainda na primeira metade do século XX, uma vasta plêiade de individualidades que marcou, de um modo indelével, o nosso percurso político. De certa forma, alguns desses homens deram-se o rumo e marcaram-lhe o compasso. Competirá, pois, aos historiadores, em conjunto com os sociólogos, pesquisarem ate que descubram o porquê de uma terra tão pequena e tão distante da capital ter gerado gente tão ilustre para o processo da nossa libertação.

4. Há cerca de uma semana, em Lisboa, eu dei uma longa entrevista de uma hora a uma emissora de rádio, num programa especialmente destinado a recuperar diversos caminhos da memória.

5. Comecei, então, por falar sobre a terra onde nasci, Calulo. Pelo que o jornalista me questionou, decididamente: “Porquê Calulo? Porque não Golungo Alto, a terra da sua mãe? Porque não Luanda, a terra do seu pai?”. Socorri-me da dinâmica da sociedade colonial da época, para explicar o porquê de ter nascido em Calulo: “O filho do funcionário público nascia lá para onde o pai fosse transferido.”

6. O entrevistador entrou em outros meandros muito interessantes da minha memória histórica: os múltiplos cruzamentos produzidos pelos meus antepassados mais remotos, criando uma complicada geografia de sangues e de culturas de que sou, afinal, um fruto.

7. O Paulo Salvador – o meu entrevistador – quis também mergulhar na geografia do meu percurso académico, desde quando entrei pela primeira vez numa escola. Foi em Cabinda. Desse marco, caminhámos para lembrança de algumas pessoas: os colegas, os professores.

8. O desporto também fez parte do recheado menu da entrevista. Foi aí que então entrou o meu inevitável Sporting Clube de Luanda, cuja camisola enverguei em infantil. Guardo ainda uma fotografia dessa época, como uma espécie de talismã. Falámos dos meus gostos musicais, dos sabores que mais aprecio. E, finalmente, entrámos, ligeiramente, no meu percurso cívico e político.

9. O meu percurso cívico e político não se pode esgotar em poucos minutos de rádio, por mais que eu o queira concentrar e resumir, já porque é bastante multifacetado. Ele manifesta a forma intensa como me tenho inserido na sociedade: sempre presente e activo.

10. Estando a ser entrevistado em Lisboa – mesmo que num programa específico de memória – era inevitável que se quisesse saber a minha visão sobre questões importantes do momento político nacional e, em especial, as minhas previsões para o futuro mais próximo. É que estamos num período de grande aceleração da história, com desenvolvimentos demasiado dinâmicos e, muitas vezes, até mesmo inesperados.

11. Era dia 4 de Fevereiro e o Paulo Salvador não quis perder aquela oportunidade para ouvir a minha opinião, recolher o meu testemunho e, sobretudo, a avaliação que eu faço sobre a importância desse grande momento da nossa história. Respondi desabridamente, destacando, inclusive, memórias da minha intimidade que, não sendo parte da história do país são, contudo, uma parte importante da minha história familiar.

12. Contei-lhe, pois, pormenores íntimos desse período glorioso, com a minha mãe a portar-se como um verdadeira heroína. A minha mãe, que faria hoje, dia 13 de Fevereiro, 100 anos de idade, acolheu corajosamente em nossa casa um dos valiosos combatentes que atacou um dos objectivos visados pelo 4 de Fevereiro.

13. Esclareço, pois, muito resumidamente, esse pormenor da nossa vida familiar, ele que ilustra a valia, a coragem e a determinação dessa mulher que foi a minha mãe, Maria Luzia da Costa Pinto de Andrade.

14. Ao lado da nossa casa, no Marçal, viviam algumas famílias saídas do Icolo e Bengo. Recordo, em especial, as famílias do senhor Francisco da Costa e do senhor Sebastião. Penso que este último se chamaria Sebastião Adão.

15. Um dado importante: os filhos dessas duas famílias foram praticamente dados a baptizar aos elementos mais crescidos da minha casa: à minha mãe e às minhas irmãs e irmãos mais velhos – julgo que devido ao respeito e consideração que os pais nutriam por nós, muito em especial, pela minha mãe, sempre cordial, solidária e atenciosa. Os pais desses meninos e dessas meninas passaram a ser tratados por nós por Compadres e Comadres.

16. Referimo-nos sempre ao “Compadre Francisco” e ao “Compadre Sebastião” com intimidade que ultrapassava a diferença das idades. Quis, pois, o tempo e, sobretudo, as circunstâncias da vida que nos tivéssemos tornado cúmplices desses homens de origem modesta, mas determinados nacionalistas.

17. Nas suas casas, ao lado da nossa, eles faziam reuniões políticas encapotadas sob o véu de reuniões religiosas… A minha mãe percebia, ajudava a disfarçar e a encobrir, para passarem desapercebidas aos olhos das autoridades coloniais e dos colonos que também eram nossos vizinhos. Até que um dia se dá o ataque do 4 de Fevereiro de 1961… E, posteriormente, o do 11 de Fevereiro. Portanto, uma semana depois…

18. Na madrugada do dia 11 de Fevereiro bateu-nos a porta o “Compadre Sebastião”. Ele vinha ferido, com uma bala encravada no ombro, pedindo ajuda e protecção à Comadre Maria Luzia.

19. A minha mãe não só o acolheu como, também, lhe retirou a bala, desinfectou e suturou a ferida. Fez-lhe o penso. Administrou-lhe antibióticos. Tratou o Compadre como se de um filho ou de um irmão se tratasse. A minha mãe ia fazer 50 anos e ele tinha 30 anos, a idade da minha irmã mais velha.

20. A minha mãe, Maria Luzia, era potente, corajosa e solidária. Cedeu o seu quarto pessoal ao “Compadre Sebastião”. Passou a dormir no quarto das minhas irmãs. Atendia pessoalmente aos cuidados do “Compadre Sebastião”, curando-o e alimentando-o. Nenhum de nós estava autorizado a entrar naquele quarto que albergava um dos atacantes daqueles dias de grande glória e simbolismo. Apenas ela podia lá entrar.

21. Refeito, numa manhã, o “Compadre Sebastião” pediu autorização à minha mãe para sair do quarto, indo não sabemos aonde… Poucas horas depois, voltou dizendo que tinha que sair de nossa casa ainda naquele dia… A minha mãe quis dissuadi-lo da ideia, alegando que só deveria abandonar a nossa casa depois de estar completamente curado, pois corria o risco de apanhar uma infecção. Então, as consequências seriam graves.

22. Cortês, mas muito emocionado, o “Compadre Sebastião” agradeceu à minha mãe o bem que lhe tinha feito. E a nós também, os seus “compadres” miúdos... Porque todos, afinal, éramos seus cúmplices.

23. Nessa noite, a nossa casa foi assaltada pelas autoridades coloniais. Passaram a casa a pente fino, sem dizerem ao que vinham nem o que procuravam… Encontraram lá apenas uma família angolana, dirigida por uma viúva zelosa na sua missão de criar os filhos, menores e órfãos. Mesmo que tenham mostrado saber o nosso sobrenome, os militares ficaram, talvez, convencidos que se haviam enganado…

24. Se o “Compadre Sebastião” tivesse ficado mais esse dia escondido em nossa casa, creio que hoje eu não estaria aqui a escrever esta crónica de memória. A minha mãe teria seguramente sido fuzilada ali mesmo, diante de todos nós. E, de seguida, alguns de nós seríamos também encomendados, …

25. Porém, ainda nesse mês de Fevereiro, foi morto à pancada pelos portugueses o meu tio Carlos Costa, o irmão mais novo da minha mãe, que era secretário do Cónego Manuel das Neves, na Igreja dos Remédios.

26. Oito anos depois, eu e o meu irmão Vicente éramos já companheiros de processo político, de cadeia e de degredo de dois dos actores desse “4 de Fevereiro”: o Augusto Kiala Bengue, o “Makiala”, e o Paiva Domingos da Silva, o “Kassissa”. Nessa época, a história tão aumentou muito de velocidade…

27. Foi em Cabo Verde, e pelo “Kassissa” que soubemos, mais tarde, que o nosso “Compadre Sebastião” se tinha entrincheirado na mata, que fora continuar a lutar… E mais: que ele era conhecido por Sebastião “Badiaba”.

28. Os filhos do “Compadre Sebastião”, e também os do “Compadre Francisco da Costa”, continuaram durante muito tempo a ser acarinhados no seio da minha família. Por isso, até hoje nos tratamos como irmãos… E os seus filhos chamam-me “Tio Justino”. Não temos qualquer sangue que nos una, mas na dor, na luta, na solidariedade, nós forjámos uma família...

29. Na entrevista que o jornalista Paulo Salvador me fez em Lisboa – como disse de início, uma entrevista virada, sobretudo, para a memória – no final, ele perguntou: “Da sua memória, o que é que lhe deixou mais saudade?”. A resposta saiu-me rápida, limpa, sem ruído, sem qualquer hesitação: “Tenho muita saudade da minha mãe, Maria Luzia!”.

30. Se ela estivesse viva, e se eu lhe recordasse esse episódio, ou outros de que foi protagonista, seguramente que a sua resposta sairia também rápida, limpa, sem ruído, sem hesitação: “Filho, eu apenas cumpri o meu dever!...”

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O PRIMEIRO DIA DO RESTO DA MINHA VIDA

1. Passaram já 50 anos desde o 4 de Fevereiro de 1961, o dia em que um punhado de homens simples, hoje justamente glorificados como heróis, utilizou meios rudimentares de ataque para questionar pelas armas a presença colonial portuguesa em Angola. Eu era, então, um jovem, mas já me preocupava com o que se passava no mundo, no nosso continente e, em particular, no nosso país. Por um conjunto de razões, posso dizer que amadureci precocemente.

2. A razão da minha especial sensibilidade e da curiosidade com que olhava o mundo à minha volta é fácil de explicar. Por um lado, eu acompanhava muito de perto os passos dos “mais velhos” da minha família, em especial os seus cuidados e as suas inquietações. Por outro lado, porque o “Processo dos 50” – que iniciou em 1959 e se estendeu ao ano de 1960, envolvendo inúmeras prisões políticas e posteriores julgamentos – mobilizou a atenção da nossa sociedade.

3. No “Processo dos 50” estiveram envolvidas pessoas muito próximas do meu meio ambiente. Era, sobretudo, gente ligada aos movimentos culturais, cívicos e políticos de que sou originário e de que me considero também, de certa forma, um produto social: o Mário Guerra, André Franco de Sousa, Gabriel Leitão, Liceu Vieira Dias, Ilídio Machado, Amadeu Amorim, Higino Aires, Mendes de Carvalho, Noé Saúde, André Mingas e outros mais que não cito aqui por economia de espaço, mas que se tornaram, igualmente, relevantes para a formação da minha consciência cívica e patriótica.

4. A designação “Processo dos 50” é um fruto da decisão de Joaquim Pinto de Andrade de enviar para o irmão, Mário Pinto de Andrade – que já estava no exterior, em Paris – um documento denunciando a prisão de cerca de 50 nacionalistas. Mário Pinto de Andrade deu, então, projecção internacional a essa repressão pidesca, desmascarando o regime colonial e fascista dirigido por Salazar.

5. Mas a minha precocidade política tem ainda raízes mais antigas, muito fruto da mãe que tive e cuja personalidade me marcou para sempre. Aos 10 anos de idade, seguia a minha mãe na campanha eleitoral para a Presidência da República, em que os representantes da Oposição ao regime eram o General Humberto Delgado e o Dr. Arlindo Vicente, o advogado que deu rosto pelos desígnios do Partido Comunista Português, nessa altura já ilegalizado. O regime de Salazar tinha como candidato o Almirante Américo Tomaz, o homem de mão de António de Oliveira Salazar, o poderoso Presidente do Conselho. A minha mãe começou por me levar às sessões de esclarecimento dos apoiantes do Dr. Arlindo Vicente, por quem tinha simpatias. Face à desistência deste, a certa altura, a minha mãe passou a apoiar o candidato Humberto Delgado, em nome da Oposição. Indirectamente, e por interposta pessoa, claro (no caso, a minha mãe), foi esse o meu baptismo de fogo político e democrático, ainda em tenra idade.

6. A verdadeira epopeia e o drama que acompanhou o assalto ao paquete português “Santa Maria”, seguido do seu desvio pelos homens comandados pelo destemido Capitão Henrique Galvão transformou-se, também, em mais um estímulo para aguçar a curiosidade de um jovem como eu, na altura, estudante do Liceu Salvador Correia. No meu Liceu, o ambiente fervilhava, fruto do contínuo surgimento de novos países africanos independentes.

7. O ano de 1960 e os seguintes trouxeram muitos países africanos para o mapa político do mundo. Vi tudo isso a passar-me diante dos olhos, espicaçando-me a mente e estimulando-me os neurónios. Era a história a acelerar. A história ganhava contornos inesperados, numa verdadeira velocidade supersónica.

8. A África despontava. Eram exibidos nomes emblemáticos, fazendo cartaz. Estes homens passaram, então, a simbolizar a nossa vontade de romper as grilhetas: Kwame Nkruman, Ahmed Sekou Touré, Leopold Sèdar Senghor, Patrice Lumumba. Do outro lado do mundo, travavam-se também duras batalhas pelos Direitos Cívicos dos negros norte-americanos. Na Ásia combatia-se e surgiam novos países. Não era possível ser-se indiferente, mesmo até para um imberbe, como eu. E, de repente, dá-se o levantamento do dia 4 de Fevereiro…

9. O levantamento do dia 4 de Fevereiro traduziu-se no ataque simultâneo a três objectivos estratégicos da presença colonial: a Cadeia de São Paulo, a Casa da Reclusão e a Esquadra da PSP na estrada de Catete.

10. De modo algum poderia causar grande surpresa. Sentia que isso iria ter que acontecer, mais cedo ou mais tarde. Estava escrito nas estrelas… Havia todos os ingredientes para que tal sucedesse. E aconteceu, felizmente… O “4 de Fevereiro” simboliza, de facto, o início de uma longa e dolorosa caminhada até ao alcance da nossa independência. Foi, propriamente, o primeiro dia do resto das nossas vidas…

11. Mesmo que antes – e também depois – tenha havido outros momentos de grande simbolismo no processo da nossa luta de libertação nacional, o “4 de Fevereiro” marca o início de “uma coisa” que os angolanos mais conscientes e patriotas esperavam. Foi o quebrar das algemas. Depois, com o “15 de Março”, rompemos as grilhetas e tornámo-nos aptos para esgrimir os melhores argumentos face ao opressor colonial.

12. Por enquanto, esqueçamos os excessos que se cometeram de parte a parte. Lembremos apenas o simbolismo desses actos, que exprimiram de uma forma magistral a revolta de um povo face a séculos e séculos de opressão e humilhação. Nesses dias, homens simples, muitos deles iletrados, tornaram-se heróis, passando para a história como os precursores da nossa luta armada de libertação nacional. Depois, passados alguns anos, tornei-me companheiro de alguns deles, conhecendo-os na dor, no sofrimento, na intimidade.

13. A corrente que eles iniciaram arrastou outras gerações, entre as quais a minha. Devemos-lhes muito, porque nos serviram de farol na longa caminhada que culminou com a nossa vitória. Recordo-os sempre com saudade e, sobretudo, com carinho: o Paiva, o Imperial, o Neves Bandinha, o Virgílio Sotto Mayor, o Makiala, o Velho André, o compadre Sebastião Badiaba, o compadre Francisco da Costa, e outros mais.

14. Eleger o dia 4 de Fevereiro como “o primeiro dia do resto das nossas vidas” não é retrair o valor simbólico dos outros momentos de valor e de glória também protagonizados pelo povo angolano. Nessa ocasião, através de um punhado de heróis, os angolanos sinalizaram para o mundo a sua determinação e vontade de conquistarem a independência, custasse o que custasse.

15. Por isso, para mim – sem dúvidas! – o dia 4 de Fevereiro de 1961 passou a ser “o primeiro dia do resto da minha vida”.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O MUNDO ÁRABE EM CHAMAS

1. Dois acontecimentos internacionais marcaram a agenda política da última semana: o internamento hospitalar do primeiro Presidente negro da África do Sul, Nelson Mandela, acometido de uma infecção respiratória aguda, e o alastramento da contestação política e social, iniciada na Tunísia, para outros países do Magrebe, com destaque para o Egipto e, também, para países do Médio Oriente, como o Iémen e a Jordânia.

2. O débil estado de saúde de Nelson Mandela, hoje com 92 anos de idade, causou consternação em todo o mundo, tal o carinho e a admiração com que toda a gente o rodeia. O mundo ficou de novo em suspenso, com o anúncio de que algo preocupante se passava com o grande ícone da luta anti-apartheid, ele que é ainda o símbolo maior do desprendimento pelo poder e o grande exemplo da capacidade de se perdoar os adversários e de harmonizar os povos, quando estava em causa o futuro do seu país.

3. Ligar os dois factos referidos de início, o estado de saúde de um homem e a contestação política que sacode alguns países do chamado mundo árabe, parece um exercício raro, porém, não impossível. E vou mostrar-vos porquê. É que, ao contrário de Mandela, os líderes daqueles países hoje em crise não souberam corresponder às expectativas neles depositadas, tendo sido protagonistas de regimes que nada têm que os assemelhe à herança política que Mandela irá deixar para toda a humanidade. Têm sido homens com um grande apego ao poder e agentes destacados de processos de corrupção e de falta de transparência na gestão da coisa pública, além de que pisotearam os direitos mais elementares dos seus povos. Daí as dificuldades políticas que hoje conhecem, espelhadas em manifestações populares de desafio e de contestação aos seus longevos e intermináveis mandatos.

4. Ben Ali, ex-ditador da Tunísia, atravessa agora um dos piores momentos da sua vida, tendo-se exilado (fugindo ao ódio do seu povo) e ser já objecto de um mandato internacional emitido pela Interpol, para a sua captura, da sua mulher, e dos familiares mais próximos, todos acusados de apropriação ilícita de recursos públicos e do cometimento de outros crimes durante o regime que instalaram.

5. No passado recente, Ben Ali era ainda visto pelo Ocidente como um aliado natural no processo de travagem à expansão do fundamentalismo islâmico. Hoje é um pária internacional que quase ninguém quer acolher ou fazer-se acompanhar. Ditador por um longo período de 23 anos, Ben Ali está a ter o fim que merecem todos os ditadores: andarem por aí em busca de quem os acolha, até que os dias das suas vidas terminem – tal como sucedeu com Mobutu Sesse Seko, do Zaire, enterrado, sem pompa nem honra, num cemitério de judeus, em Marrocos.

6. O Presidente Hosni Mubarak, do Egipto, com 30 anos de poder ditatorial, tem também, agora, um osso muito duro para roer: tem o povo nas ruas a enfrentar o seu regime. Socorrendo-se das novas tecnologias de informação e comunicação, os jovens convocam sucessivas e cada vez mais concorridas manifestações de protesto. Está, assim, condicionado o desejo de Mubarak transformar a sucessão presidencial numa sucessão monárquica, com o filho a ocupar o espaço que irá deixar.

7. A problemática do Egipto é, de facto, mais complicada que a da Tunísia, uma vez que Mubarak e o Egipto foram peças essenciais na estratégia ocidental (em especial, norte-americana) para o encontro de uma solução política para a questão palestiniana. Essa disponibilidade do Egipto constituiu-se num mecanismo de protecção para Mubarak, tornando-o o aliado de conveniência mais protegido pelo Ocidente contra todas as adversidades. E ele soube, até agora, tirar as devidas vantagens.

8. O fantasma da Irmandade Muçulmana – o maior e mais organizado grupo de oposição no Egipto – ensombra a perspectiva de mudança, lançando dúvidas sobre um eventual novo poder no Egipto. Porém, a recente entrada em cena de Mohamed El Baradei, ex-presidente da Agência Internacional de Energia Atómica e Prémio Nobel da Paz, confere uma maior confiança ao processo de mudança. Caso Mubarak perca esta batalha política crucial que se trava no Egipto, creio que os norte-americanos não hesitarão em albergá-lo e protegê-lo. Contudo, Hosni Mubarak, mesmo que não se transforme num foragido ou num pária internacional, jamais terá o reconhecimento universal que é tributado a um Nelson Mandela, o maior símbolo político que ainda vive.

9. É também demasiado complicado fazer uma leitura da actual situação no Iémen, um dos países mais complexos da Península Arábica – terra de origem de Bin Laden, o líder da Al-Quaeda – onde, igualmente, se levantam vozes contra o poder ditatorial de Ali Abdullah Saleh, no poder há 31 anos, de quem se suspeita estar também a preparar um dos filhos para operacionalizar outra sucessão do tipo monárquico numa república.

10. Essa é, afinal, a tentação que sentem os ditadores modernos. Além de se apropriarem, por tempo indeterminado, do poder, apropriam-se também da fatia mais suculenta da riqueza nacional – que partilham, em partes desiguais, com os familiares mais próximos e os apaniguados – criando a falsa ideia de que são insubstituíveis. Por isso, se forem eles a governar, ou quem eles mandatam, o futuro será… o dilúvio.

11. Também no Iémen são, sobretudo, novamente jovens a pôr em causa mais uma ditadura, precisamente ali onde o fundamentalismo islâmico atingiu a sua expressão mais crucial. Daí que eu tenha começado por dizer que a problemática do Iémen é ainda mais complexa, igualmente pelas razões que aduzo de seguida.

12. O derrube de Ali Abdullah Salleh é crítico, uma vez que ele tem dado apoio oficial ao combate contra a Al-Quaeda. Coloca-se também a dúvida sobre o que poderá suceder face a uma eventual substituição do poder de Ali Abdullah Saleh, não se descartando a possibilidade de o enfraquecimento do actual regime vir a desencadear tendências secessionistas.

13. De recordar que a República do Iémen é uma consequência da união, relativamente recente, da ex-República Árabe do Iémen (também chamada Iémen do Norte, com capital em Sa’ana) com a ex-República Democrática do Iémen (também chamada Iémen do Sul, com capital em Aden), com passados coloniais diferentes: o Norte foi dominado pelo Império Otomano (de quem se libertou em 1918) e o Sul foi colónia britânica, tornada, porém, independente em 1967.

14. A complexidade do futuro do Iémen agrava-se ainda mais pelo facto de ser um país produtor de narcóticos e ser, também, uma espécie de guardião do Golfo de Aden, onde se desenrola a maior pirataria marítima que hoje apoquenta o mundo, tendo do outro lado do Golfo a Somália. Não será, pois, muito fácil gerir processos tão complicados como os que se desenrolam nessa parte demasiado importante do mundo que é o mundo árabe.

15. Não possuo espaço nem tempo para abordar a questão da Jordânia, e talvez, da Argélia, onde também incubam energias capazes de gerar conflitos de difícil solução. Faço-o depois, com mais profundidade e munido da informação que os conflitos que abordei irão produzir. Até lá, então!