terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A ÁFRICA DO SUL E AS OPORTUNIDADES QUE SE ABREM

1. O Chefe de Estado angolano, José Eduardo dos Santos, realizou neste mês de Dezembro a sua primeira visita de Estado à África do Sul, tendo despertado uma expectativa que, pelo menos em parte, se viu correspondida.

2. Pouco antes do início da visita, e no decorrer da mesma, políticos, técnicos, e até populares teceram diversos pronunciamentos a propósito. Reparei que a generalidade das pessoas tendeu para manifestar esperança de ver melhoradas as relações entre os nossos dois países, tanto no domínio económico, como no domínio político. Quase todos foram também expressando o desejo de ver mais facilitado o acesso dos cidadãos de cada um dos Estados ao Estado parceiro, numa base de reciprocidade. Não dei conta de alguém se ter pronunciado em sentido contrário, o que demonstra crescente maturidade e, sobretudo, uma perfeita percepção dos interesses que estão em causa.

3. Escutei, porém, algumas opiniões, no mínimo, estranhas como, por exemplo, a de alguém que afirmou que as autoridades sul-africanas estariam a ser ingratas, ao não expressarem, publicamente, gratidão pelo papel que Angola jogou no combate ao regime do apartheid. Que eu saiba, qualquer um dos dois anteriores Chefes de Estado sul-africanos jamais manifestou tal lapso de memória… Na realidade, eles não fizeram dessa questão um tema recorrente nos seus discursos oficiais, o que faz perfeito sentido, dado que há também outras questões importantes a abordar e em busca de soluções.

4. Sobretudo os nossos empresários falaram muito da necessidade do incremento das trocas comerciais, dos investimentos recíprocos, da transferência de tecnologia e, claro, da melhoria na circulação das pessoas. Todos reconheceram o prestígio político e a potência da economia sul-africana, destacando o seu peso no contexto da nossa sub-região austral. É, sobretudo, a última questão que merece agora a nossa atenção, uma vez que a competitividade entre os países se mede pelo que eles são capazes de criar e vender.

5. Para podermos avaliar a importância da África do Sul, comecemos, pois, por dar uma olhada para o seu Produto Interno Bruto. Com base nesse indicador, a economia sul-africana ocupa a 26ª posição na economia do mundo, sendo bem distribuída por sectores, o que lhe garante equilíbrio e sustentabilidade. Por exemplo, a agricultura sul-africana participa com cerca de 4% na formação do PIB, a indústria concorre com 31%, e os restantes 65% são da responsabilidade do sector comercial.

6. A sua relativamente forte base industrial pode ser analisada a partir do seguinte dado: mais de ¼ do total da força-de-trabalho está empregue em actividades de carácter industrial, com o sector agrícola a empregar apenas 9% dessa força-de-trabalho. A estrutura do emprego contrasta fortemente com a imagem característica da maioria dos países africanos, tendencialmente mono produtores, muito mergulhados numa agricultura de quase subsistência, e com o grosso da força-de-trabalho disponível dedicada a actividades comerciais informais.

7. A tendência para a mono produção em certos países africanos, tem sido muito estimulada pela procura crescente de produtos de origem mineral. Isso tem criado enormes distorções económicas, desviando a atenção e o seu cuidado de outras actividades, com implicações negativas de carácter social e político. Muito da instabilidade social e política que a África hoje vive decorre, pelo menos em parte, dessa circunstância.

8. Uma das pessoas que se pronunciou publicamente sobre as vantagens de se melhorar as relações económicas com a África do Sul, o empresário Carlos Cunha, realçou, por exemplo, a importância do sector agro-pecuário, no qual os sul-africanos detêm tecnologia própria e chegam a obter rendimentos médios por hectare bastante assinaláveis, mesmo ao nível dos países mais avançados. Tais bons proveitos derivam da existência do clima moderado, da fertilidade dos solos e das tecnologias adaptadas ao meio.

9. O empresário Carlos Cunha recordou, então, que os zootécnicos daquele país criaram, por exemplo, uma raça bovina tipicamente sul-africana, o bonsmara, um boi bastante resistente, adaptado a pastagens pobres e a temperaturas elevadas. É já a raça de corte mais disseminada na África do Sul. Resultou do cruzamento do gado africâner (em 5/8) com o gado britânico (hereford e shorthorn, em 3/8), e alia a rusticidade do gado africâner à alta produtividade do gado europeu. Possui elevada taxa de conversão alimentar, muito bom rendimento da carcaça e precocidade sexual.

10. O bonsmara está já disseminado um pouco por todo o mundo, pois está a ser criado em países tão distantes como o Brasil – o segundo país com maior efectivo desse gado – Austrália, Canadá, Estados Unidos, Argentina, Paraguai, Colômbia, Namíbia e Zimbabwe. No início deste mês de Dezembro, durante um encontro de criadores brasileiros dessa espécie bovina, em São Paulo, no Brasil, foi divulgado o resultado da primeira avaliação genética internacional do bonsmara. O bonsmara também já franqueou as nossas fronteiras e o efectivo tem tendência para o crescimento.

11. Tal como Angola, a África do Sul possui assinaláveis concentrações de produtos minerais. É rica em ouro e diamantes, mas, igualmente, em urânio, platina, crómio, manganês, ferro, vanádio, antimónio e titânio. Possui ainda enormes concentrações de carvão, um produto que é seguramente responsável pela maior parte da produção de energia desse país, e que motivou uma forte e já antiga corrente migratória a partir dos países vizinhos. Moçambique, por exemplo, depende muito das remessas dos seus emigrantes que trabalham nas minas de carvão sul-africanas.

12. Eu sou um grande apreciador de reportagens sobre as belezas da natureza. Por isso, não dispenso documentários sobre os parques de animais selvagens que a África em geral ainda possui, e de que a África do Sul, juntamente com o Quénia serão, talvez, os expoentes máximos. O Parque Nacional Kruger, situado na África do Sul, é considerado das maiores reservas de mamíferos do mundo, possuindo os tradicionais “big five”: leões, leopardos, elefantes, rinocerontes e búfalos. Estas e outras belezas naturais potenciam o turismo sul-africano, que se transformou numa das principais fontes de receita do país. Temos, pois, a aprender muito com esse país, nesse domínio, e em outros que vale a pena pesquisar.

13. A perspectiva aberta com a vista de Estado de José Eduardo dos Santos à África do Sul não pode ser menosprezada, sob pena de perdermos oportunidades que outros, talvez mais expeditos, seguramente não desperdiçarão.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

PARA COMPREENDER MELHOR A COSTA DO MARFIM

1. A minha memória regista uma interessante imagem de 1984, o ano em que conheci a Costa do Marfim, quando fui frequentar um curso sobre Análise e Gestão de Projectos patrocinado pelo Banco Africano de Desenvolvimento, e destinada a quadros superiores de vários países africanos. Conto em poucas palavras.

2. Um dia, ao regressarmos ao hotel, o Hotel Sebroko, situado nos arredores de Abidjan, depois das aulas, deparámo-nos com um camião acidentado na estrada. Chama-nos de imediato a atenção não só a aparatosa imagem do acidente mas, também, o ar de profundo desalento do motorista. De entre nós, alguém inquiriu, então, o motorista do nosso autocarro sobre o porquê do estado de alma do homem do camião. A resposta saiu sem dificuldade, e foi dada nos seguintes termos: “Na Costa do Marfim, quem danifica um bem público comete um crime que é severamente punido! Esse motorista já sabe o que o espera – seguramente, vai para a prisão!”. A resposta colocou os angolanos da comitiva, a olharmos uns para os outros, num misto de espanto e curiosidade…

3. Na altura, antes, e mesmo ainda mais tarde, em Luanda, quem partisse um carro do Estado era “premiado”, quase de imediato, com um outro carro. Aqui entre nós, o infractor geralmente não sofria quaisquer consequências.

4. Estávamos, pois, na época da impunidade, uma impunidade que fazia parte do nosso quotidiano. Os bens do Estado eram sistematicamente maltratados, usados com descuido e sem respeito. Por detrás desse comportamento estava a ideia de que, sendo bens do povo, e sendo o povo uma figura incorpórea e abstracta, não havia autoridade moral para se punir.

5. Um outro facto ainda despertou a minha curiosidade, na Costa do Marfim: o modo como as crianças das escolas do ensino de base trajavam. As crianças vestiam de forma elegante e bem cuidada – fossem eles rapazes, fossem elas raparigas. Isso evidenciava a preocupação das autoridades para com a educação e o ensino. Mostrava também que o orçamento para a educação tinha carácter prioritário e era gasto de modo correcto e eficaz. O ensino de base era o espelho.

6. Guardo ainda na memória a imagem da liberdade com que se circulava em frente à Grande Maison do Presidente Félix Houphouët-Boigny, em Yamoussoukro, a cidade que tinha sido no ano anterior elevada à categoria de capital política do país. Yamoussoukro deixara para Abidjan o título de capital económica e comercial. Em Yamoussoukro era permitido fotografar a Grande Maison, assim como os crocodilos do lago artificial situado mesmo junto ao Palácio.

7. Tenho mais outras memórias agradáveis daquele país. Por vezes, conto-as aos meus amigos. Talvez um dia me decida a trazê-las para o papel, para as partilhar com mais gente… Será também uma forma de as rememorar.

8. A Costa do Marfim foi um país próspero e organizado, mas, agora, caiu na desordem social e na confusão política. Já é uma má referência para o nosso continente.

9. Na Costa do Marfim, percebi facilmente o porquê de aquele país se ter transformado num pólo de atracção para as populações dos países limítrofes. Cerca de 1/3 dos seus habitantes provinham do Mali, do Burkina Faso, do Ghana, da Libéria ou da Guiné-Conacry. Os africanos das redondezas buscavam lá, sobretudo, trabalho. Alguns eram refugiados políticos que vinham fugidos de países onde campeava a intolerância. Por isso, para uns o país era um bom porto de abrigo, já que tinha uma economia muito próspera; para outros, não obstante vigorasse um regime de partido único, havia, ainda assim, alguma segurança e, sobretudo, paz.

10. A Costa do Marfim era o maior exportador mundial de cacau, o terceiro maior exportador de café, um grande exportador de madeira, também de óleo de palma, algodão, copra, abacaxi, banana, açúcar, etc. Tinha um bom sistema financeiro e sentia-se que a classe média estava em expansão. Contudo, nas actividades directamente ligadas à produção, quer agrícola, quer industrial, era notória uma forte dependência da força-de-trabalho estrangeira. O comércio era dominado por originários da Ásia, em especial, por libaneses.


11. Ouvi dizer que o Presidente Félix Houphouët-Boigny achava que o pior que poderia acontecer à Costa do Marfim seria lançar-se também na exploração petrolífera, porque o petróleo mataria as restantes actividades económicas, muito em especial, a agricultura e a indústria transformadora. Tinha como referência o que aconteceu com a Nigéria que, de país agrícola, um verdadeiro celeiro agrícola, passara a país importador de alimentos. Era isto que fazia com que o Presidente Félix Houphouët-Boigny estimulasse os jovens quadros cedendo-lhes terra e criando facilidades de créditos para a produção agrícola. Nesse sentido ele era, pois, um visionário.

12. Félix Houphouët-Boigny governou em regime de partido único desde a independência, em 1960, até ao ano de 1990. Depois abriu o país ao multipartidarismo e ganhou as eleições de 1990. Morreu em Dezembro de 1993. Com a sua morte, o castelo de cartas desmoronou.

13. O sucessor de Félix Houphouët-Boigny, Henri Konan Bedié aguentou-se no poder até 1999, quando foi derrubado por meio de um golpe militar comandado pelo general Robert Gueï que, por sua vez, foi assassinado. Seguiu-se Laurent Gbagbo, em 2000, e a guerra civil, e a separação, na prática, entre o norte, muçulmano, e o sul, cristão ou animista.

14. O norte, a área por excelência virada para a produção agrícola, é a zona de maior influência do ex-primeiro-ministro Alassane Ouattara, declarado vencedor do recente pleito eleitoral pela Comissão Eleitoral Independente. Aqui começa, pois, o problema que se arrasta até ao presente momento.

15. A guerra civil entre o norte e o sul teve como detonador uma lei que Laurent Gbagbo fez aprovar, aparentemente para impedir a eleição dos estrangeiros. Perante essa lei, Alassane Ouattara seria considerado estrangeiro, pois é filho de mãe burkinabe – mesmo que o pai seja marfinense.

16. Assim, Laurent Gbagbo retirava do caminho o seu adversário mais temido. Limitava também os direitos a outros milhões de marfinenses que são o fruto das migrações. Fez ainda tábua rasa do contributo desses homens e mulheres que ajudaram a Costa do Marfim a criar a riqueza de que tanto se orgulhou no passado...

17. Laurent Gbagbo não quis perceber que os Estados que hoje temos resultam de múltiplos processos de transformação; que, inclusive, muitas das etnias que agora se reivindicam de autóctones, são originárias de outras paragens – dos fenómenos migratórios que foram uma constante no nosso continente. Ele não conseguiu compreender que a própria história da humanidade está toda ela assente sobre as migrações.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

UMA SIMPLES QUESTÃO DE LÓGICA E DE VISÃO

1. Portugal, um dos países com quem temos relações mais estreitas, está nesta altura a atravessar uma profunda crise, que começou por ser económica, mas vai assumindo crescentes contornos sociais e mesmo políticos. A prazo, a crise portuguesa pode até provocar a queda do actual governo minoritário do Partido Socialista (PS). Se tal suceder, convocar-se-ão de eleições legislativas antecipadas, ou então formar-se-á um governo de iniciativa presidencial. Qualquer um destas soluções só pode ser viabilizada após as eleições presidenciais de Janeiro de 2011.

2. Há alguns anos, devido à relutância de alguns países europeus ocidentais em apoiar a Guerra do Iraque, o então Presidente norte-americano, George W. Bush, dividiu a Europa em dois grupos: à Europa Ocidental chamou “Velha Europa”; aos países europeus situados mais a Leste, denominou “Nova Europa”. Com tal dicotomia, o Presidente George W. Bush certamente quis dizer que havia uma Europa envelhecida, virada para o passado, muito pouco dinâmica, e uma Europa emergente, mais virada para o futuro – por coincidência, a constituída pelos países mais propensos a apoiar a sua proposta belicista.

3. Os países da “Velha Europa”, inseridos na União Europeia, são também os que vão sofrendo mais os impactos da crise económica e financeira mundial. Os da dita “Nova Europa” têm resistido mais, talvez porque a sua mais recente integração na União Europeia imponha menos obrigações. Além de que são receptadores líquidos de ajuda.

4. Grécia, Irlanda, Portugal são os que vivem as dificuldades económicas e financeiras mais profundas. Todos têm problemas de liquidez e estão a aplicar políticas restritivas para o seu reequilíbrio macroeconómico. Possuem uma enorme dívida pública; as economias não estão a crescer; não conseguem gerar suficientes novos empregos; e o acesso ao crédito internacional está a ser cada vez mais difícil e é mais caro. A sua actual situação económica é tão grave que os juros da dívida pública estão a atingir níveis proibitivos. Por isso, decidiram aplicar medidas de contenção dos gastos públicos, bem como aumentar o volume das receitas para reduzir o “gap”. Trata-se de um exercício de resultados imprevisíveis, podendo vir mesmo a redundar na contracção do nível da actividade económica.

5. As medidas de consolidação orçamental – congelamento dos salários, aumento dos impostos, abandono (ou redefinição) de alguns projectos económicos – forçam os cidadãos a apertar o cinto... Medidas que são bem vistas por muito poucos, e que são odiadas pela maioria.

6. Os partidos políticos da oposição em Portugal estão a utilizar o momento de grande fragilidade da economia para esgrimir argumentos contra o governo do PS e, sobretudo, contra o Primeiro-Ministro, José Sócrates. O governo e o Primeiro-Ministro vivem, seguramente, o seu momento mais difícil. Estão encaixados numa espécie de camisa de sete varas. Quaisquer movimentos que façam, picam-se…

7. O congelamento dos salários, o encarecimento dos preços e a subida de alguns impostos apoquentam a classe média e as classes mais desfavorecidas. O aumento da carga fiscal sobre as empresas desagrada os patrões, que vêem isso como uma perspectiva de redução dos lucros e também diminuída a sua capacidade de investimento – Sem investir, não podem criar mais empregos. Por sua vez, o abandono (ou o redimensionamento) de projectos quebra expectativas. Enfim, o governo português meteu a mão no ninho de marimbondos…, e está agora a ser ferrado por todos os lados…

8. Há grande descontentamento popular. Evolui uma onda grevista. As duas centrais sindicais do país estimulam as paralisações, e a economia portuguesa fica ainda mais fragilizada, e afasta-se para mais longe a hipótese de auto-regeneração.

9. Possivelmente, só haja uma solução: pedir auxílio à União Europeia (através do Fundo Europeu de Estabilização), e ao FMI (o Fundo Monetário Internacional). Foi isso o que fez o governo grego e o governo irlandês.

10. O governo português joga o tudo por tudo para evitar o pacote de ajuda internacional. A maioria dos analistas já não acredita que Portugal possa evitar tal solução. Estima-se que a ajuda venha a atingir o equivalente a 20% do PIB.

11. A ajuda internacional aos países em crise impõe condicionalismos. Muitos dos condicionalismos poderão até ser mais gravosos do que as medidas restritivas que estão agora a ser tomadas – o que parece ser a parte amarga da fruta que vem sob a forma de injecção massiva de dinheiro. Quem ajuda tem pelo menos dois objectivos: i) receber mais dinheiro do que o montante cedido; ii) ver realizadas as acções preconizadas.

12. O recurso ao auxílio estrangeiro é, para alguns, uma beliscadura na dignidade nacional, uma ferida na honra… Estamos perante um orgulho patriótico à maneira antiga, mas que é contraditório com o acelerado curso do processo de globalização. Corre ainda em sentido contrário ao processo de integração de que a Europa é campeã e tida como a maior referência mundial. Há também quem veja as coisas de outro modo: os que adivinham ainda maiores dificuldades, mesmo que temporárias.

13. O apoio financeiro não se resume à injecção de dinheiro para se ajustarem as contas, ele vem acompanhado de regras e envolvido em pressupostos: seguramente, novos impostos, novos cortes salariais, novas tesouradas na protecção social, redução dos benefícios fiscais para determinados escalões, ainda maior desprotecção da economia interna, etc.

14. Aproximam-se, pois, dias difíceis para Portugal e os seus parceiros de desdita. A principal potência económica europeia, a Alemanha, olha-os, certamente, com os olhos de um felino, pronto a entrar num galinheiro… Cheira-lhe a repasto…

15. O mau momento que Portugal agora vive não deixará de ter repercussões em Angola, já porque somos parceiro histórico e privilegiado.

16. Quando estávamos em guerra, muitos jovens angolanos procuraram Portugal, em busca de oportunidades. Portugal soube retirar proveito desse afluxo de mão-de-obra barata. A situação inverteu-se. Será que nós saberemos aproveitar bem a actual disponibilidade de força-de-trabalho que Portugal nos oferece? Será uma questão de lógica e de visão.

ADEUS, LENA MARIA, CAMARADA!

1. Há poucos anos, o meu velho companheiro de luta, Adolfo Maria, escreveu algumas palavras para o jornal português, “Público”, referindo o facto de a morte da Doutora Julieta Gandra não ter merecido sequer uma linha na imprensa portuguesa. Rui Araújo, actual Provedor do Leitor de Portugal, chama a esse esquecimento “uma desmemória (para não dizer outra coisa…)”.

2. As razões que levaram o Adolfo Maria a “protestar” contra tal “esquecimento”, prendem-se com o facto de a Doutora Julieta Gandra ter sido uma figura marcante no percurso da nossa luta de libertação nacional, juntamente com o Arquitecto António Veloso e o Engenheiro Calazans Duarte, cidadãos portugueses, tal como ela.

3. A Doutora Julieta Gandra, e os seus compatriotas, envolveram-se de tal modo no nosso processo político que foram presos, julgados, condenados e enviados para cumprir pena em Portugal, quando os seus companheiros angolanos do famoso “Processo dos 50” foram “penar” no Tarrafal, em Cabo Verde. Estávamos no início da luta de libertação nacional. Portanto, a Doutora Julieta Gandra pertenceu ao primeiro grande processo político do nacionalismo angolano moderno, pelo que é parte da nossa memória e da nossa história. Sobre ela disse ainda o Adolfo Maria: “Portou-se com coragem e dignidade, quer durante os interrogatórios da PIDE, quer nas cadeias a cumprir pena”. Em 1964, foi considerada pela Amnistia Internacional a Presa do Ano.

4. O meu velho companheiro Adolfo Maria, com quem falei ao telefone, há dias, em Lisboa, está de luto, porque acaba de perder a sua companheira de uma vida inteira – a Helena Maria, ela também nossa velha companheira.

5. Em Lisboa, o Engenheiro Simão Cacete informou-me que a Lena Maria estava em estado crítico, com um cancro no cérebro. Liguei de imediato para o Adolfo procurando informar-me sobre o estado de saúde da Lena, também sobre o ânimo do Adolfo, perante a triste e difícil conjuntura. Informei-me, também, sobre o percurso dos dois filhos do casal, o Mário Jorge e a Tonica. Na ocasião, foi a conversa possível com o meu velho companheiro de luta Adolfo Maria.

6. Infelizmente, não pude falar com a Lena Maria, pois ela estava hospitalizada, a convalescer da operação. Foi uma pena, porque já não falava com a Lena Maria desde que fui preso pela DISA, no longínquo ano de 1976, logo após a independência. Quer isso dizer que a memória que me resta da Lena Maria tem a idade de quase 35 anos.

7. Ainda bem que não vi a Lena Maria doente, possivelmente muito derreada, com rugas e olhar triste, voltada para as memórias do passado, consciente de que estava próximo o fim de um percurso de vida pleno de emoções, umas boas, outras más. A Lena Maria, nossa companheira de luta, conviveu com os momentos talvez mais marcantes da nossa luta de libertação.

8. A Lena Maria era portuguesa de nacionalidade, mas assumiu plenamente o projecto da nossa libertação nacional, ao lado do Adolfo. Fê-lo com alma, com o querer da mais profunda angolanidade. Fugiram de Portugal na juventude, quando a luta também dava os seus primeiros passos. Depois, atravessaram com os nossos companheiros os êxitos, os recuos, as vitórias, as derrotas, tudo quando foi acontecendo ao longo de 14 longos anos. A Lena Maria é, pois, uma peça integrante da nossa luta de libertação – faz parte dela, tal como a Doutora Julieta Gandra.

9. Conheci a Lena Maria no Congo-Brazzaville – estávamos, então, em dissidência com a direcção do Presidente Neto. Eu vinha de uma longa estadia na cadeia do Tarrafal. Ela de uma longa proximidade com a luta e com os dirigentes históricos da nossa luta.

10. A Lena Maria foi uma militante abnegada e uma mulher extraordinária, que nunca recuou perante as dificuldades. Atravessou as adversidades sempre com o sorriso de quem pretende apenas suavizar a dor… Conviveu com e viu desaparecer o Viriato da Cruz, o Matias Miguéis, o Hoji ya Henda, o Américo Boavida, a Deolinda Rodrigues, a Engrácia, a Irene Cohen, os comandantes gloriosos da nossa epopeia libertadora, o povo que serviu de sustentáculo e barreira sólida para a nossa vitória. A ela também devemos a nossa vitória.

11. A Lena Maria esteve lado a lado com o Gentil Viana, Mário de Andrade, Joaquim Pinto de Andrade, Maria do Céu Carmo Reis, Hugo de Menezes, Eduardo Macedo dos Santos, Amélia Mingas, Jota Carmelino, e outros, antes e depois na Revolta Activa.

12. Vencemos juntos o colonialismo mais anacrónico que a história conheceu. Com o nosso esforço, contribuímos para duas vitórias: a do povo angolano pela sua independência, e a do povo português, que assim se viu livre do fascismo, prestando um valioso serviço à humanidade.

13. A mulher do Adolfo Maria, a nossa querida companheira de luta, Lena Maria (que nem teve uma nota de rodapé a anunciar a sua morte), envolveu-se na nossa luta para servir o nosso povo, nunca para se servir do nosso povo.

14. Dissidentes, passámos juntos as dificuldades e as vicissitudes da dissidência. Até que sobreveio, novamente, a prisão. No dia 13 de Abril de 1976, iniciou o processo de encarceramento de alguns dos mais temidos membros da Revolta Activa (pelo menos, era essa a percepção do regime). O poder instituído decidiu que o melhor lugar para nós era a prisão – não tínhamos direito à independência, muito menos à liberdade.

15. A DISA começou a caça ao homem. Prendeu o Gentil Viana, prendeu a mim e aos meus dois irmãos (Vicente e Merciano), encarcerou o Fernando Paiva, Manuel Videira, Brooks de Sousa e Santos, Rafael Goddinho, António Capita, Luís Lukamba Vinge, os irmãos António Menezes e Talangongo Totoy Monteiro, e mais outros dissidentes. Buscaram o Adolfo Maria, também para o prenderem. Mas, o Adolfo Maria sentiu-lhes o cheiro e “mergulhou” na clandestinidade. Esteve “mergulhado” por um período de três anos.

16. O “mergulho” do Adolfo Maria foi o mais espectacular que a nossa história moderna conheceu. O Adolfo “mergulhou” em plena cidade de Luanda. Nas barbas da DISA, com os esbirros à sua procura, para o juntarem a nós, no “cangaço”, nos calabouços. E nós sem sabermos o que lhe tinha acontecido. Receávamos que tivesse sido apanhado e, depois, morto…

17. No “cangaço”, na cadeia, o Gentil Viana, nosso companheiro de muitas cumplicidades, mantinha uma olímpica serenidade. Nunca nos disse que o Adolfo sobrevivera à razia… Guardava essa informação a sete chaves… Depois, viemos a saber que o Gentil, o Joaquim e a Lena Maria eram os únicos que sabiam do “mergulho” e conheciam o local do “mergulho” do Adolfo. O Adolfo Maria, frágil fisicamente como parecia, portou-se como um verdadeiro tubarão…

18. E a Lena Maria sempre a fazer de conta… Para despistar os esbirros… Ia à DISA perguntar pelo paradeiro do marido. De lágrimas nos olhos, com ar de viúva inconsolada... Continuava a ir trabalhar. Que, volta e meia, chorava… Que toda a gente a via como a viúva que nem tinha tido a oportunidade de receber o corpo do marido, “assassinado” pelos seus próprios camaradas.

19. Passados três anos, o Adolfo Maria emergiu do seu longo “mergulho”. Emergiu tuberculoso, com uma longa barba, a ver mal… Saiu da clandestinidade, depois de um contacto que o Joaquim Pinto de Andrade estabeleceu, de boa-fé, com o Presidente Neto. Mas o Presidente Neto expulsou para Portugal o nosso antigo companheiro de luta, o Adolfo Maria, como se ele fosse cidadão estrangeiro, como se fosse algo incómodo à nossa terra finalmente libertada.

20. A DISA colocou o Adolfo Maria num avião, e fê-lo partir da sua pátria – Angola – pela qual tinha lutado. Um nacionalista angolano, branco, partiu para Portugal, de onde saíra quase 20 anos antes, entregando-se integralmente à luta de libertação. Este é um facto que ainda hoje me choca. É algo que não consigo entender, à luz dos valores e princípios que defendíamos na altura. Foi uma grande ingratidão. Não tem qualquer reparação possível, porque a vida só se vive uma vez.

21. O meu velho companheiro, Adolfo Maria, perdeu agora o outro lado da sua vida, a Lena Maria. E todos nós perdemos uma companheira de enorme mérito e grande valia. Nos alicerces desta pátria está, também, bem firme, o seu humilde tijolo. Adeus, Lena Maria, camarada! Paz à tua alma!

DOIS FACTOS MARCANTES

1. No dia 15 deste mês de Novembro, na habitual análise aos jornais que faço aos microfones da Rádio Ecclésia, elegi dois temas como os mais marcantes da semana anterior: A comemoração dos 35 anos da nossa independência, e a libertação, no dia 13, de Aung San Suu Kyi – a activista dos direitos humanos e também líder da oposição democrática na Birmânia.

2. Sobre os 35 anos de Angola independente, já muito se disse e escreveu. Falaram ou escreveram analistas, políticos, e o povo em geral também abordou o assunto nas suas diversas vertentes e nas mais variadas dimensões. Houve mesmo quem não tenha deixado de aproveitar a ocasião para capitalizar em proveito próprio, ou dos seus pares, o mérito da data. Cheguei, inclusive, a constatar tentativas de transformar cidadãos “vulgares” em “heróis”, mistificando assim, propositadamente, a nossa história. Mas houve também gente honesta que soube reconhecer o papel desempenhado pela vasta plêiade de protagonistas que engrossou as fileiras e dignificou a luta de libertação nacional.

3. O país que hoje temos é, pois, tributário do esforço dessas gerações de angolanos, muitos dos quais se manterão no anonimato para todo o sempre. Foi, em especial, para esses heróis anónimos que eu dirigi o meu pensamento no dia 11 de Novembro: os que nunca tiveram direito a uma campa, mesmo rasa, muito menos uma lápide a recordar o seu nome, a data do seu nascimento, ou o dia em partiram para lá da história... Heróis de verdade, heróis sem maquilhagem.

4. A segunda questão que elegi, a libertação de Aung San Suu Kyi, seguramente não terá prendido muito a atenção dos que me ouviram, já porque tudo se passou muito longe, demasiado distante das nossas fronteiras. Porém, atribuí ao facto um grande simbolismo. Vou, pois, aprofundar um pouco mais esta questão.

5. Finalmente, foi posta em liberdade uma mulher que viveu 15 dos últimos 20 anos em prisão domiciliária, fruto da sua luta pela liberdade e pela democracia. Ela, sim, é uma heroína de carne e osso, uma pessoa determinada e destemida que fez da liberdade do seu povo a principal motivação da sua vida. Trago, pois, o seu nome para o nosso convívio, para que a conheçamos melhor, a si e ao seu país.

6. O país de Aung San Suu Kyi, o Myanmar (antiga Birmânia), é complexo e muito enigmático. A sua complexidade decorre da história: serviu de ponto de confluência para vários grupos étnicos da sua região. Trata-se do país mais extenso do sudeste asiático, fazendo fronteira com a China, Índia, Tailândia, Laos e o Bangladesh. Sofreu a influência cultural de todos esses vizinhos, tornando-se palco de tensões engendradas pela história comum dos seus povos.

7. Foi colonizado pelos britânicos, e ocupado, temporariamente, pelos japoneses, durante a II Guerra Mundial. Depois de um curto período de tempo, foi retomado pelos britânicos. Em 1948, tornou-se independente, muito por força da acção reivindicativa dos monges budistas que souberam usar a religião como factor de ruptura entre colonizados e colonizadores. Até 1962, prevaleceu no país um regime democrático que foi derrubado pelos militares. Fruto da pressão interna e internacional, o regime militar realizou eleições no ano de 1990.

8. O Partido Nacional pela Democracia, de Aung San Suu Kyi, ganhou as eleições de 1990, arrecadando 60% dos votos e conquistando 80% dos assentos parlamentares. Porém, os resultados foram prontamente anulados pelos militares que não aceitaram abandonar o poder. Prenderam a líder do partido ganhador e instituíram um regime político bastante fechado, politicamente apoiado pela China. Ao contrário da economia da China, a economia do Myanmar cresce muito pouco, pelo que se transformou num dos países mais pobres da região e com poucas expectativas de bem-estar, mesmo que tenha sido no passado o maior exportador de arroz do mundo, e até o mais alfabetizado daquelas paragens.

9. Muito fechado dentro das suas fronteiras, as notícias que conseguem sair retratam, geralmente, acções de repressão, intolerância e violência. Essa é, por norma, a imagem de marca das ditaduras, de todas as ditaduras. Tenho ainda bem guardado na memória as imagens que, em Setembro de 2007, correram o mundo, mostrando a revolta pacífica dos monges budistas do Myanmar. Era a coragem dos monges budistas estampada nas suas passeatas de protesto pelas ruas de Rangum.

10. Os monges budistas destes tempos recuperaram o protagonismo dos monges budistas que lideraram a luta de libertação contra o poder colonial britânico. Tornaram-se, novamente, o porta-bandeira dos sentimentos do povo. Expressaram a alma do povo anónimo, do povo humilde, daqueles que não têm voz. O regime militar reprimiu-os, e o saldo em mortos e feridos foi bastante pesado.

11. O mundo repudiou a repressão que se seguiu aos protestos. Parecia o início de alguma coisa… E essa coisa, finalmente, aconteceu: Aung San Suu Kyi foi libertada no Sábado, dia 13, depois de ter vivido uma epopeia de cerca de 20 anos.

12. Pelo seu contributo na luta pela defesa dos direitos humanos, Aung San Suu Kyi foi agraciada, em 1990, com o Prémio Sakharov e, em 1991, com o Prémio Nobel da Paz. Não a deixaram sair para receber directamente o prémio que lhe foi atribuído.

13. Ela é filha de um dos heróis da luta pela independência do Myanmar – o general Aung San, assassinado quando a filha tinha 2 anos de idade. Ela está de novo em liberdade. Ninguém sabe por quanto tempo… Mas já manifestou disposição para continuar a defender a causa em que acredita. As suas referências são Ghandi e Nelson Mandela. Há mesmo quem a chame a Nelson Mandela no feminino.

14. Numa altura em que muitos optam por soluções violentas para resolver problemas políticos e sociais, soa bem ouvir o discurso integrador e pacífico dessa mulher que tinha tudo ou quase tudo para também apelar à violência. Mas ela percebeu, e bem, que a violência nem sempre é o melhor recurso para pôr fim à violência.

PARA QUE PREVALEÇA O BOM-SENSO

1. Alguns bancos norte-americanos decidiram encerrar (ou congelar) as contas das Embaixadas de 37 países (sendo 20 não-africanos e 17 africanos, entre os quais Angola), o que está a fazer correr muita tinta e a gerar polémica. No que diz respeito a Angola, tal tomada de posição foi precedida pelo anúncio dos resultados a que chegou uma Comissão do Senado encarregue de investigar movimentações financeiras julgadas ilícitas ou de carácter duvidoso. A Comissão do Senado fez, pois, referência a uma tentativa de transferência do montante de 50 milhões de usd, do erário público para uma conta privada, imputando a responsabilidade do acto ao ex-governante que, na altura, dirigia o Banco Nacional de Angola.

2. Na sequência das investigações, as autoridades norte-americanas terão ainda solicitado esclarecimentos às entidades oficiais do nosso país, não tendo sido, porém, bem sucedidas. Desconhece-se se o silêncio a que se votaram as nossas autoridades foi por negligência, ou por qualquer outra razão. Em consequência, os americanos ameaçaram bloquear as contas da nossa representação diplomática nos Estados Unidos, assim como as da Agência Nacional de Investimento Privado, ANIP, de que o Dr. Aguinaldo Jaime é o actual responsável máximo. Falou-se, também, no envolvimento de uma instituição bancária angolana.

3. Face a este quadro de pressão, e à mediatização nacional e internacional que se lhe seguiu, o Dr. Aguinaldo Jaime prestou esclarecimentos à imprensa angolana, num exclusivo concedido ao semanário Novo Jornal, tendo dito que as alegações americanas eram “perfeitamente ridículas”. E deu, então, a sua versão da história, que se resume no seguinte:

i) Que, em 2002, viera ao nosso país uma delegação de um grupo financeiro denominado “MSA Investments” mostrando-se pronto a emprestar 50 milhões de usd ao Estado angolano, a título de “ajuda humanitária”;
ii) Que o governo vira tal operação como uma oportunidade para, rapidamente, dispor de dinheiro para obras de reconstrução, já que estávamos no rescaldo da guerra civil;
iii) Que ele se apressara a buscar fórmulas para negociar as garantias capazes de suportar o negócio;
iv) Que se colocaram, pois, duas hipóteses alternativas para as tais garantias: ou pela compra de Títulos do Tesouro norte-americano (o que foi recusado pelas entidades americanas); ou por abertura de uma conta num banco americano, sendo o próprio Dr. Aguinaldo Jaime um dos signatários, para que ela pudesse ser movimentada com segurança;
v) Que para essa conta se transfeririam, então, os 50 milhões de usd cedidos pela “MSA Investments”. Uma opção que também foi rejeitada pelas entidades norte-americanas. Terá sido, pois, esta a operação que levantou as suspeitas, e que fez colocar Angola sob a mira ianque.

4. Ficou, porém, por esclarecer o porquê do posterior envolvimento da nossa Embaixada nesse imbróglio. Terá ela participado no processo da abertura da conta e posterior tentativa de transferência do dinheiro para a mesma conta? Se o fez, passou, então, a fazer parte do problema.

5. Porquê, também, que, de início, se falou na possibilidade de encerramento das contas de um banco angolano? O quê que o banco angolano teve a ver com a questão, se o signatário da conta era Governador do BNA?

6. Haverá alguma coisa mais, por detrás de tudo isso, que nós desconhecemos?

7. O que é facto é que a decisão de alguns bancos norte-americanos de encerrarem as contas da nossa Embaixada gerou reacções diversas no nosso país. Houve quem se tenha limitado a manifestar profunda consternação; houve também quem tenha assumido tal decisão como um aviso à navegação (para nos prevenirmos contra eventuais acções ainda mais graves, no futuro); por último, li (ou ouvi) autênticas manifestações de histeria patriótica, como, por exemplo, apelos a uma urgente retaliação contra os interesses americanos sedeados em Angola, a começar pelo encerramento das contas das suas empresas petrolíferas.

8. Alegadamente, as instituições bancárias norte-americanas optaram por encerrar as nossas contas, e também das outras 36 Embaixadas, por considerarem bastante onerosa a acção de fiscalização. Quanto mais duvidoso for um cliente, mais cara fica a sua relação com o banco. Numa avaliação de Custo/Benefício, suponho, os bancos terão optado por se desfazerem do cliente.

9. Penso que, no fundo, tudo se enquadra no conjunto de medidas que os americanos vêm tomando para combater eficazmente o branqueamento de capitais e o financiamento a grupos terroristas.

10. O Bank of America e os outros bancos estarão a cumprir as normas em vigor no seu país, normas que os obrigam a tomar medidas cautelares, sempre que suspeitem de alguma irregularidade grave nas movimentações bancárias dos seus clientes. Essa acção fiscalizadora implica operações onerosas para os bancos. Querem, pois, por um lado, colocar-se do lado da Lei, mas, por outro lado, desejam também afastar clientes problemáticos, ou eventualmente problemáticos.

11. A questão do branqueamento de capitais é matéria bastante melindrosa e costuma ser levada a cabo em três fases: 1ª) O dinheiro começa por ser colocado no sistema financeiro; 2ª) Depois é movido ou transferido para outras contas, através de uma série de transacções que visam ocultar a sua proveniência; 3ª) Por fim, os fundos são reintroduzidos na economia de forma a parecer que provêm de fontes legítimas.

12. Embora as autoridades norte-americanas tenham, de início, ameaçado Angola pela não apresentação de explicações das razões que levaram às movimentações aludidas pelo Dr. Aguinaldo Jaime, tudo leva, porém, a crer que a acção de encerramento (ou de congelamento) das contas é da responsabilidade dos bancos em causa, já porque, logo de seguida, surgiram outros bancos, também americanos, dispostos a alojar os dinheiros da nossa Embaixada. Além disso, as autoridades políticas daquele país predispuseram-se a tudo fazer para evitar danos ainda maiores.

13. Esta é, pois, uma questão que terá, seguramente, solução no curto prazo. Se todos mantivermos a cabeça fria… Servirá, ainda, para aprendermos, mais uma vez, que o silêncio nem sempre é a melhor solução. Sobretudo, quando a outra parte tem legitimidade para nos questionar.

14. E não vale a pena estarmos a esgrimir o preceituado no artigo 25º da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas, pois esse artigo diz apenas que “O Estado acreditador dará todas as facilidades para o desempenho das funções da missão”. Leia-se, missão diplomática. Esta Convenção internacional não coloca, pois, ninguém acima da Lei do país acreditador. Haja, por isso, bom-senso!

COMUNICADO – sobre a situação na Costa do Marfim

A situação prevalecente na Costa do Marfim concita a maior atenção por parte dos verdadeiros democratas e da Comunidade Internacional, em geral.

Quando se esperava que as eleições presidenciais, recentemente realizadas naquele país, pudessem contribuir para desanuviar a tensão política e social e o retorno à normalidade democrática, eis que a adulteração deliberada dos resultados eleitorais, apurados pela Comissão Eleitoral Independente, retirou a vitória ao candidato da oposição, Alassane Ouattara, dando-a, por via da Conselho Constitucional, fraudulentamente, ao candidato derrotado, o até então Presidente Laurent Gbagbo, que, precipitadamente, correu a tomar posse.

O Bloco Democrático, partido político herdeiro da cultura democrática do povo angolano, não pode deixar passar em branco mais este atropelo às regras democráticas e que põe de novo em causa a paz e a estabilidade não só naquele país, mas, também, na região em que está inserido, a África Ocidental.

O Bloco Democrático tem perfeita noção da importância que o Governo de Angola dá às suas relações com a Costa do Marfim, e também da influência que exerce sobre as autoridades marfinenses. Por isso, em nome da paz e dos superiores interesses dos nossos países, apela que inste o candidato usurpador do poder, Laurent Gbagbo, a aceitar os resultados eleitorais declarados pela Comissão Eleitoral Independente, e crie as condições para que, de um modo pacífico, o candidato vencedor, Alassane Ouattara, possa assumir as mais elevadas responsabilidades do Estado.

O Bloco Democrático recorda que o povo angolano tem uma triste memória dos actos anti-democráticos que, no passado, nos conduziram à guerra civil que dilacerou o nosso país, marcando, indelevelmente, a nossa existência e também o nosso futuro mais próximo, pelo que não deseja que povos irmãos passem por idêntica experiência.

O Bloco Democrático acredita que a Democracia é possível em África, e que ela não deve ficar refém de ambições e caprichos pessoais ou partidários.


Liberdade, Modernidade, Cidadania.

Luanda, 6 de Dezembro de 2010

O Presidente do Bloco Democrático

Justino Pinto de Andrade

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A IMPORTÂNCIA CRESCENTE DOS BRIC

1. Aquando da derrota eleitoral do Partido Democrata norte-americano nas eleições intercalares recentemente realizadas, Barack Obama deu como exemplo do mau desempenho científico e tecnológico americano, no presente momento, o facto de o computador mais rápido do mundo ter sido produzido na China e não no seu país.

2. O super computador chinês tornou-se, pois, motivo de orgulho daquele país, colocando a China na posição de superpotência tecnológica. Factos como esse fizeram da China a segunda economia do mundo, depois de ter destronado o Japão.

3. A importância internacional da China vai ao ponto de o seu Presidente da República ter sido recentemente considerado o homem mais influente do mundo, em avaliação feita pela conceituada revista Forbes. Pela primeira vez, o Presidente chinês relegou para o segundo lugar o Presidente norte-americano.

4. A China e a Índia fazem parte de um conjunto de países que têm estado a chamar a atenção do mundo, pelo impacto que produzem na economia mundial. São os chamados BRIC, de que fazem também parte o Brasil e a Rússia. O aparecimento dos BRIC como actores globais é, seguramente, um dos factos mais relevantes no cenário moderno das relações internacionais, já porque a sua influência conjunta é muito mais importante do que o somatório das suas influências individuais.

5. De acordo com estimativas credíveis, em 2030 – portanto, dentro de 20 anos – o PIB (Produto Interno Bruto) dos BRIC superará o PIB do G-7 (EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Canadá e Japão). Actualmente, o PIB dos BRIC corresponde a 16% do PIB mundial; possuem 42% da população do planeta; e ocupam 26% do território da Terra. A China, o principal elemento do grupo, é o maior exportador mundial.

6. Se a esses países juntarmos outras 3 destacadas economias emergentes, Indonésia, México e Turquia (completando, assim, o chamado E-7), veremos que os até agora países mais desenvolvidos estão a perder terreno de uma forma muito acelerada, uma perda, em parte, estimulada pela crise económica mundial. As previsões actuais apontam para uma ultrapassagem do PIB do G-7 pelo PIB do E-7, ainda no ano 2020, embora em 2000 o PIB do G-7 fosse o dobro do PIB do E-7. Projecta-se para o ano 2030 o seguinte ranking para as 10 mais importantes economias do mundo: China, Estados Unidos, Índia, Japão, Brasil, Rússia, Alemanha, México, França e Grã-Bretanha.

7. É reconhecido, porém, que os BRIC ainda não actuam no plano internacional como um grupo coeso. Tem-se assistido, porém, a um aumento dos contactos entre esses 4 países, quer ao nível do político, do económico-financeiro, no domínio tecnológico e comercial.

8. Na visita que efectuou à Índia, o Presidente norte-americano, Barack Obama, fez afirmações que assinalam o reconhecimento do papel desse país na economia e, por consequência, na política mundial. Apelou mesmo a um maior relacionamento entre a Índia e os Estados Unidos da América, com vista ao aumento do volume do emprego no seu país, um facto que indicia que a economia norte-americana precisa de novos mercados para se expandir – e o crescente mercado de consumo indiano pode ser uma solução.

9. A ida do Presidente norte-americano à Índia e a afirmação que lá fez sobre o eventual apoio do seu país a uma futura inclusão da Índia no núcleo restrito dos países com assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, realça o papel crescente da Índia no panorama internacional. Deixa, assim, de ter apenas importância local (regional) e passa a exercer influência a um nível mais vasto.

10. Na mesma ocasião, o Secretário do Tesouro norte-americano, Timothy Geithner, discutiu com o Ministro indiano das Finanças os modos de aprofundamento das relações entre os dois países e, sobretudo, o estabelecimento de um acordo global que permita reequilibrar as contas correntes entre eles. Do reequilíbrio das suas contas correntes dependerá, em alguma medida, o aumento do número de empregos nos Estados Unidos – afinal, o calcanhar de Aquiles da presente governação norte-americana, e que pode condicionar o futuro político do Presidente Barack Obama.

11. A proposta norte-americana de fortalecimento dos laços com a Índia e o seu apoio à obtenção de um assento como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas visam também reduzir a importância crescente da autoridade da China na região asiática e no mundo.

12. Presentemente, e em termos globais, a Índia é a 10ª economia do mundo, não obstante ser o 2º país mais populoso (com um efectivo que ronda os mil e duzentos milhões de pessoas), o que faz com que o seu PIB per capita seja irrisório.

13. A Índia é ainda um país com uma enorme “dívida social”: cerca de 25% da sua população da Índia vive abaixo da linha de pobreza; tem muita pobreza no meio rural; tem um importante analfabetismo residual; o seu sistema de castas torna-se um obstáculo ao desenvolvimento; e os índices de corrupção são assinaláveis. Por contraste, é hoje dos países mais importantes no campo das tecnologias de informação e em outras tecnologias de ponta. Tem, sobre a China, a vantagem de ser uma democracia. Claramente, estamos face a um país a ter em conta.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

UMA PERSPECTIVA REDUTORA DA POBREZA

1. No dia 20, o Coordenador Residente das Nações Unidas em Angola, Koen Vanormelingen, declarou em Luanda, em conferência de imprensa, que a pobreza em Angola, medida em receitas monetárias, baixou de 68% em 2002, para 38%, em 2009. Sendo assim, e com os avanços registados na última década, o nosso país “caminha de forma segura para o alcance dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio”.

2. A responsabilidade por tais avanços recai sobre o facto de sermos um país que exerce uma forte atracção para o investimento estrangeiro, estarmos em fase de reabilitação das infra-estruturas económicas e sociais, haver já um sensível recuo nos níveis de mortalidade materna e infantil, também por estarmos a aumentar de forma significativa a taxa de escolarização primária e a expandir a nossa rede sanitária, bem como por se verificar um crescente número de quadros técnicos.

3. Porém, o Coordenador Residente das Nações Unidas em Angola fez ainda referência ao facto de prevalecerem entre os angolanos grandes disparidades que podem pôr em causa, no médio e no longo prazos, o próprio desenvolvimento económico e social. Para ilustrar esse seu relativo pessimismo, referiu a existência de 7 milhões de angolanos a viverem com menos de 1.75 usd, cerca de 1 milhão de crianças fora do sistema nacional de ensino primário, e milhões de pessoas sem acesso a serviços de saneamento adequados.

4. Há dois meses a esta parte, mais precisamente em Agosto, por ocasião da apresentação do primeiro Inquérito Integrado sobre o Bem-Estar da População, a Ministra do Planeamento, Ana Dias Lourenço, destacou também alguns avanços registados nesses domínios, comparativamente aos valores evidenciados, no ano de 2001, pelo Inquérito sobre Despesas e Receitas, portanto, pouco antes do término da guerra.

5. A Ministra Ana Dias Lourenço apelidou o Inquérito Integrado sobre o Bem-Estar da População de o maior inquérito jamais realizado, dado que abrangeu 18 províncias, nas dimensões urbana e rural, tendo-se socorrido de uma amostra de cerca de 12 mil agregados familiares. Na ocasião, ela realçou que o resultado do estudo permitia um melhor conhecimento da vida dos cidadãos e das suas vulnerabilidades, e balançaria o governo para a definição de políticas mais correctas para o combate à pobreza.

6. Modernamente, a problemática da pobreza é vista numa perspectiva mais abrangente do que a que tem sido apresentada pelas Nações Unidas, já porque o rendimento monetário não é suficiente para exprimir devidamente o estado de pobreza. Para as Nações Unidas é considerado “pobre” o indivíduo a quem se atribui um rendimento médio diário inferior a 1 usd.

7. Por sua vez, a Banco Mundial estratifica a pobreza em dois patamares: no primeiro patamar temos a pobreza extrema, no outro, a pobreza moderada. Serão extremamente pobres os que vivem com menos de 1 usd diário, e moderadamente pobres os indivíduos que vivem com menos de 2 usd diário.

8. Estamos, pois, perante duas visões puramente quantitativas e redutoras, a das Nações Unidas e a do Banco Mundial. Qualquer uma delas deixa de fora componentes que se reputam de fundamentais.

9. A concepção moderna da pobreza atende também a outros aspectos para além do rendimento monetário. Por exemplo, a dificuldade de acesso aos bens e a determinados serviços básicos, como água, luz, saúde, educação e habitação, dando assim uma ideia multifacetada da condição de vida dos pobres.

10. O economista do Bangladesh e Prémio Nobel da Paz 2006, Muhammad Yunus, vai ainda mais longe ao considerar pobre “quem está inseguro quanto ao futuro e sem previsão dos rendimentos que terá para sobreviver”.

11. Combater a pobreza e a fome é o primeiro desígnio definido pelas Nações Unidas no quadro dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. Até 2015, os Estados comprometeram-se a reduzir para metade a população extremamente pobre, ou seja, aqueles que sobrevivem com menos de 1 usd diário. O mesmo deveria acontecer com o combate à fome. Fazendo fé nos números oficialmente apresentados, Angola estaria em condições de cumprir, em tempo, esse e outros objectivos definidos pelas Nações Unidas.

12. Ninguém põe em causa a afirmação de que têm sido feitos esforços nesse sentido. Porém, a opinião mais generalizada entre a nossa população é de que estaremos ainda muito longe das metas enunciadas, dado o estado de miséria que se torna visível mesmo à vista desarmada. Não há, pois, coincidência entre o discurso oficial e a opinião popular.

13. Um dos mais respeitados economistas da actualidade, o Professor Jeffrey Sachs, apresentou um plano integrado para a eliminação da pobreza extrema ao nível mundial até 2025. Nesse plano, ele aconselha intervenções em áreas como: habitação, alimentação, educação, cuidados primários de saúde, agricultura, água potável, transportes e comunicações.

14. Essa é, sim, uma visão mais global, que não se baseia apenas no rendimento monetário. A visão monetária descura, por exemplo, a região e o local de habitação do pobre, assim como as diferenças no custo de vida de um país para outro país. Ela apresenta, pois, uma receita única para doentes que sofrem de males específicos.

É O “DÉBRUILLEZ-VOUS!”

1. Saltou à vista de quem escutou o discurso do Presidente José Eduardo dos Santos sobre “O Estado da Nação” o facto de ele não ter dedicado uma única linha à corrupção. Para certos observadores, o descaso pode ter significado o reconhecimento de que JES já não possui “fórmulas mágicas” para uma tão grande empreitada. Para outros, José Eduardo dos Santos poderá mesmo ter já chegado à conclusão de que, fazendo a corrupção corpo com o regime seria, pois, contraditório tentar combater um fenómeno que ali se alimenta.

2. Recordo que foi o próprio Presidente José Eduardo dos Santos quem, há anos, declarou que neste país quase não haveria quem vivesse somente de rendimentos lícitos. (Se não estou em erro, JES falou, especificamente, dos salários).

3. Para a maioria da nossa população, essa afirmação não foi propriamente vista como uma crítica à corrupção mas, sim, como um muito subtil consentimento, um claro “Débruillez-vous!”, ou seja, “Desenrasquem-se!”. Então, depois, foi simples, muitos passaram a agir em conformidade. Foram pisoteando todas as regras, entrando num processo declarado de apropriação ilícita de riqueza, alguns usando a capa de empreendedores.

4. Como diz o velho ditado: “Quem não tem cão, caça com gato”. Por isso, é vê-los hoje a “arranharem” tudo quanto é património público, despudoradamente a delapidarem o erário público, num processo de acumulação do capital que deixaria boquiabertos até os que, há séculos, desencadearam aquilo que ficou consagrado como a acumulação primitiva. Mas, voltemos ao essencial.

5. Depois de, no seu discurso à Nação, discorrer sobre um vasto leque de questões, JES elegeu como preocupações estratégicas para os próximos anos, as seguintes:

a) A preservação da unidade e coesão nacional, com a consolidação da democracia e das instituições;
b) A garantia dos pressupostos básicos necessários ao desenvolvimento, através da estabilidade financeira e da transformação e diversificação da estrutura económica;
c) A melhoria da qualidade de vida e a consequente melhoria dos índices de desenvolvimento humano dos angolanos;
d) O estímulo ao sector privado, em especial ao empresariado angolano;
e) O reforço da inserção competitiva de Angola no contexto internacional.

6. Eu penso que de modo algum será factível a consolidação da democracia e a solidez das instituições se a corrupção continuar a grassar e a corromper a nossa sociedade, como tem sucedido até agora.

7. Mesmo que a corrupção seja reconhecidamente um fenómeno universal, é um facto indesmentível que ela é mais acentuada nas sociedades onde a democracia é débil, ou onde ela é apenas um desígnio teórico. As sociedades mais democráticas procuram aprimorar os instrumentos de seu combate à corrupção. Daí que, frequentemente, surjam a público notícias de acções judiciais contra infractores altamente mediáticos.

8. Nas democracias modernas, o combate à corrupção funciona como um mecanismo de defesa do regime democrático. Entre nós, fica-se com a impressão que a corrupção é essencial ao regime, dando-lhe alma e energia.

9. Ilude-se, pois, quem pensa ser possível desenvolver um país de forma harmoniosa desprotegendo-o contra a corrupção. A corrupção desestabiliza e mina a confiança nas instituições, onera os custos dos bens e dos serviços, promove uma afectação ineficiente dos recursos disponíveis. A corrupção deforma a própria estrutura económica do Estado.

10. Se institucionalizada, a corrupção gera efeitos nefastos sobre o desenvolvimento humano: desacelera o crescimento económico, acentua os níveis de pobreza, dificulta o acesso aos bens e aos serviços básicos, fragiliza a estrutura social, promove o aumento das desigualdades.

11. Embora o Presidente da República tenha elegido, no seu discurso, como questão estratégica o incentivo ao empresariado nacional, eu creio que, nas circunstâncias actuais, tal estímulo permanecerá ainda discricionário, ou seja, continuará condicionado à militância partidária. Isso chama-se corrupção política, e é uma das formas mais gravosas e nefastas de corrupção.

12. Se queremos garantir competitividade internacional, como assinalou JES, temos que estimular os melhores, apoiar os mais competentes, acarinhar os mais dedicados, glorificar os mais criativos. Só assim poderemos produzir com qualidade e oferecer bons preços. A competitividade internacional que nos interessa não é a da venda de matérias-primas, é a que resulta da venda ao exterior de bens e serviços com valor acrescentado nacional. E isso consegue-se com competência – não é com militância partidária.

13. Eduardo dos Santos não está em condições de reconhecer publicamente que organizou um puzzle tal que, mexendo-se numa peça essencial, ruirá toda a estrutura. É por isso que os que o adulam se agarram a ele como náufragos em desespero. É a sua bóia de salvação.

14. O último relatório da Transparência Internacional veio demonstrar que JES se equivocou quando, no seu discurso sobre “O Estado da Nação”, fez descaso do fenómeno corrupção. Angola mantém-se entre os dez países pior colocados no que diz respeito à percepção sobre a corrupção. Entre 178 países avaliados, Angola situou-se na posição 168, sendo apenas ultrapassado por países como a Somália, o Afeganistão ou o Myanmar.

15. Esta é uma realidade que não pode ser posta em causa, muito menos a credibilidade da agência internacional que realiza anualmente o estudo. Não vale a pena tapar o sol com a peneira: o nosso país é muito mal visto internacionalmente.

16. Não é com discursos altamente tendenciosos e enviesados que melhoraremos a nossa imagem pública. Há, pois, que ter coragem de assumir que o barco está a navegar em águas alterosas. Basta olhar para “O Estado do Mar…”

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

1. O drama vivido pelos 33 mineiros chilenos (na realidade são 32 chilenos e 1 boliviano) – retidos durante 69 dias a cerca de 700 metros de profundidade depois de um desabamento – apaixonou o mundo. Não creio que alguém tenha ficado indiferente ao seu sofrimento. Creio também que, não obstante todo o empenho demonstrado pelas autoridades do país em retirá-los do fundo do poço, pairou sempre uma mistura de ansiedade e medo, pois o resultado final poderia ser outro, que não o que, felizmente, se veio a verificar.

2. Os mineiros soterrados trabalhavam numa mina de ouro e cobre, na localidade chilena de São José, uma exploração que já data do ano de 1869 e que antes conheceu 5 outros acidentes fatais. Nesta década, terão já morrido quase 4 centenas de mineiros naquele país, e mesmo no último mês de Janeiro, pereceram ali 31 trabalhadores.

3. Grande parte dos desastres em minas tem origem na violação das normas de segurança por parte dos patrões. De acordo com as recomendações técnicas, as minas devem possuir pelo menos 2 túneis de comunicação com a superfície, para que, face à interrupção de um deles, o trânsito possa fazer-se pelo outro. A mina chilena de São José possuía um único túnel de comunicação que se viu obstruído aquando do desabamento de 5 de Agosto.

4. A falta de condições de segurança na exploração mineira é uma constante também na China, de onde constantemente surgem notícias sobre tragédias do género. Nesse país, somente em 2009, e segundo estatísticas oficiais (de pouca credibilidade), terão morrido mais de 2.700 mineiros envolvidos na exploração de carvão. A pior tragédia desse ano, inclusive, numa mina controlada pelo Estado, aconteceu no nordeste do país, com um saldo fatal de 104 mineiros mortos. Em 2005, no noroeste da China, uma explosão numa mina de carvão fez perder 214 operários. Vemos, pois, que o desenvolvimento económico da China está a ser realizado com um muito elevado custo em desconforto e em vidas humanas.

5. O último desastre do Chile tornou-se, sobretudo, espectacular porque bateu todos os recordes de sobrevivência humana, em condições mais ou menos idênticas. Além disso teve uma cobertura mediática que jamais outro conheceu. Penso que inaugurou uma nova era, permitindo ainda chamar a atenção do mundo para a vida desses homens que se sacrificam muito para garantir a sobrevivência e o desenvolvimento dos seus países. Diz-se que o espírito do mineiro é peculiar.

6. As duras condições de trabalho nas profundezas da terra, e os desastres que lhe são inerentes, embora com nuances e especificidades, são ainda frequentes em outros países como a África do Sul, Ucrânia, Austrália, México, Colômbia, e até mesmo nos Estados Unidos da América.

7. Mais ou menos na altura em que ficaram enclausurados os mineiros chilenos, o mundo recordava os 10 anos decorridos desde que 118 marinheiros russos de um submarino nuclear, o Kursk, se viram envolvidos numa situação dramática no fundo do mar. É que soterramento dos mineiros aconteceu no dia 5 de Agosto deste ano, e o afundamento do submarino nuclear russo no Mar de Barents, teve lugar a 12 de Agosto de 2000.

8. Os marinheiros russos cumpriam uma missão eventualmente de rotina, ou estariam engajados numa actividade específica que jamais foi esclarecida. O que se sabe até agora é que houve uma explosão a bordo, deixando temporariamente vivos 23 dos 118 marinheiros que, infelizmente, também não puderam ser recolhidos. Morreram de morte lenta, por asfixia, talvez mesmo por afogamento dentro do submarino. Os restantes 95 morreram de imediato, na sequência da explosão.

9. As previsões iniciais para a conclusão do eventual salvamento dos mineiros chilenos apontavam para uma duração de até 4 meses – pelo que deveriam ser recolhidos apenas na proximidade do próximo Natal. De imediato, foram tomadas as disposições necessárias para se ir abastecendo os sinistrados, levando-lhes alimentação e água, para além de outro conforto capaz de minorar o seu sofrimento.


10. As autoridades chilenas portaram-se à altura do acontecimento, não desprezando, inclusive, os conselhos técnicos dados por peritos da NASA, especialistas em situações de confinamento humano. Prevaleceu, pois, o bom-senso e o espírito de solidariedade.

11. Não foi isso o que se passou no caso do submarino nuclear pertencente à orgulhosa Frota Russa do Norte. Perante a tragédia, a marinha russa optou primeiro por negar o acidente, vindo mais tarde a reconhecê-lo, mas quando já teriam transcorrido os momentos cruciais para um eventual êxito da operação de socorro. Esse atraso pode ter sido fatal, e veio ainda a ser agravado pelo facto de o Presidente russo, Vladimir Putin – em gozo de férias em Sotchi – ter começado por recusar a ajuda internacional oferecida por países ocidentais, com destaque para os Estados Unidos, Reino Unido e a Noruega.

12. São comportamentos distintos que só podem ser entendidos se tivermos em conta a época em que sucederam mas, sobretudo, a cultura política dos intervenientes.

13. O afundamento do Kursk deu-se poucos anos depois do fim da Guerra-Fria e envolveu um país saído de um regime fechado, desconfiando de tudo e de todos. O soterramento dos mineiros chilenos teve lugar em época de maior distensão internacional, mas, também, num país onde a democracia já é uma realidade – logo, são mais propensos ao respeito pelos direitos humanos e a opinião pública. Penso que estamos agora melhor entendidos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

AFINAL, BRINCADEIRA TEM HORA…

1. As eleições gerais realizadas recentemente no Brasil despertaram uma natural curiosidade em Angola, muito por causa dos laços históricos que nos unem. A curiosidade dos angolanos tem sido estimulada, sobretudo, pela visibilidade que a sociedade brasileira vai tendo entre nós, devido ao impacto da televisão mas, igualmente, pelo intercâmbio cultural que se estabelece. Tudo isso fez com que algumas figuras públicas do Brasil se tenham tornado, também, figuras nossas conhecidas, seja os da política, os do desporto, da música, das diversas artes. Não posso garantir, porém, que o inverso seja verdadeiro. Ou seja, nada me garante que, no Brasil, se conheça também muitas das figuras públicas angolanas, inclusive os endinheirados que gastam parte do seu tempo de lazer passeando-se pelo Brasil, onde possuem propriedades, ou até mesmo fazem negócios.

2. Para além da disputa entre os principais políticos do momento – a dupla “Lula-Dilma”, José Serra, Marina Silva – as eleições do Brasil trouxeram ainda para as primeiras páginas nomes conhecidos fora da política, como os dos ex-futebolistas Romário e Bebeto, ou mesmo Roberto Dinamite e Marcelinho Carioca mas, igualmente, sambistas, pugilistas e até a nadadora Rebeca Guzmão.

3. Contudo, o fenómeno mais mediático da primeira volta das eleições brasileiras foi sem sombra de dúvidas a eleição para deputado federal do humorista Tiririca, com o “score” eleitoral mais elevado no Estado de São Paulo, e de todo o Brasil. Tiririca arrecadou acima de 1 milhão e trezentos mil votos, graças, em parte, à utilização do seguinte slogan de campanha: “Pior do que está não fica, vote Tiririca”.

4. O “fenómeno Tiririca” pode parecer um facto banal – mas não é. Ele começou a ganhar a vida muito novo, com 8 anos de idade, fazendo o papel de palhaço em pequenos circos na sua terra natal, Itapipoca, no Nordeste brasileiro. Depois, gravou um CD, com o apoio de pequenos negociantes da região, um CD que vendeu mais de 1,5 milhão de cópias. A música do Tiririca ficou famosa em todo o Nordeste e depois estendeu-se por todos os pontos do Brasil. O palhaço Tiririca, animador de pequenos circos, tornou-se, assim, músico, compositor e cantor. Gravou ainda outros CD´s.

5. Tiririca, de seu nome próprio Francisco Everardo Oliveira Silva, passou para a televisão (na TV Record), aumentando a sua fama por causa da maior visibilidade e exposição. Destacou-se, sobretudo, pela participação que teve na Escolinha do Barulho, e a que ainda tem no Show do Tom, com o grande humorista brasileiro Tom Cavalcante. Foi acompanhando o programa Show do Tom que eu percebi o enorme talento de Tiririca, porém, sem me ter passado pela cabeça que algum dia ele iria causar a polémica que se seguiu à sua investida na política.

6. Todos sabemos que a imagem dos políticos no Brasil não conhece bons momentos. Quase diariamente se fala de escândalos envolvendo figuras da política brasileria, quer ao nível estadual, quer ao nível federal. São por demais conhecidas as broncas de deputados, redundando, muitas vezes, na suspensão dos seus mandatos. Por isso, e inteligentemente, o palhaço Tiririca escolheu também para a sua campanha um outro slogan bastante sugestivo, dizendo: “O que faz um deputado federal? Na realidade, eu não sei. Mas vota em mim que eu te conto”. Podemos, pois, perceber agora melhor o papel que o marketing joga numa campanha política. Tiririca já era conhecido e apreciado. Com isso, tornou-se um emblema.

7. O povo está farto de ver “palhaçadas” protagonizadas por políticos, em especial, por deputados. Por que não fazer, então, entrar no “circo parlamentar” um verdadeiro palhaço, um palhaço profissional? O povo brasileiro cansou-se de aturar palhaços ocasionais… Prefere ter lá um palhaço que faz os outros rirem com as suas piadas e diabruras inofensivas. É aqui que está a verdadeira chave do problema. É isso que explica melhor o “fenómeno Tiririca”, o humorista nordestino que conseguiu a maior votação nas eleições brasileiras. Ele pediu que votassem num palhaço verdadeiro, em vez de o estarem a fazer, inconscientemente, em palhaços de fingir… E o povo respondeu com uma votação massiva, sem rodeios…

8. No Brasil, discute-se agora se Tiririca pode (ou não pode) ser deputado. Há dúvidas se ele sabe ler e escrever, conforme obriga a Constituição brasileira. Fontes muito próximas do humorista Tiririca disseram que ele não consegue ler nem uma letra do tamanho de um boi… Outros disseram que, a escrever, Tiririca é ainda pior que o Zeca Diabo… Lembram-se do Zeca Diabo? Aquele da célebre novela brasileira que, há alguns anos, deliciou Angola…

9. Pois é, se o Zeca Diabo, para escrever uma fase, tinha que colocar parte da língua para fora, num dos lados da boca, o eleito deputado Tiririca, para escrever uma simples letra, possivelmente terá que pôr quase toda a língua de fora, imitando os cães quando estão cansados, ou então, quando estão cheios de sede…

10. Espero, pois, que o Tribunal Eleitoral de São Paulo não mande para fora do Parlamento brasileiro o pobre do Tiririca, só porque ele não sabe ler nem escrever…

11. É que, ao votar massivamente no palhaço Tiririca, o povo brasileiro demonstrou que está farto de políticos charlatães: doutores de casaco e gravata, mas sem princípios morais e sem ética, mestres em pirataria, engenheiros da malandragem, arquitectos da trambicagem…

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A SAÍDA DO GENERAL “NGONGO”

  1. A demissão do General Roberto Leal Monteiro, “Ngongo”, do cargo do Ministro do Interior, soou como o estrondo provocado por uma bomba. Tomei conhecimento do facto pela imprensa, quando estava próximo o meu regresso a Luanda, após ter participado numa conferência auspiciada pela Universidade de Wageningen, na Holanda. Os despachos da Agência Portuguesa de Notícias, a Lusa, e também da nossa Angop aludiam à “exoneração” do cargo, e não, propriamente, à sua “demissão” – o que são coisas diferentes, mesmo que, conceptualmente, próximas.

  1. Pensei, então, legitimamente que, face ao sucedido em São Tomé com o cidadão português, Jorge Oliveira, o General “Ngongo” havia tomado ele próprio a iniciativa de solicitar ao Presidente da República, Eduardo dos Santos, que o libertasse daquele cargo, assumindo, assim, a responsabilidade política pelo desastrado acto cometido por elementos organicamente sujeitos à sua tutela.

  1. Conhecendo como conheço o General “Ngongo” – e já lá vão dezenas de anos, desde os nossos tempos do Liceu Salvador Correia –, gostaria que a sua desvinculação do cargo de Ministro do Interior tivesse acontecido por via de um pedido de “exoneração”, e não por “demissão”, sendo esta uma figura mais grave, mais penalizadora.

  1. A exoneração pode decorrer da vontade expressa da própria pessoa que ocupa o cargo. É uma espécie de alívio de carga, de retirada de um peso, de supressão de um ónus. A exoneração pode ainda resultar de iniciativa do superior hierárquico, talvez por este ter constatado que o subordinado tivesse demasiada carga, demasiada responsabilidade, optando, assim, por o aliviar desse ónus.

  1. A figura da demissão do cargo público surge como um castigo, uma penalização resultante de um qualquer incumprimento, pelo cometimento de irregularidade, ou mesmo pela prática de uma ilegalidade – como, afinal, ficou esclarecido no Despacho Presidencial.

  1. Por norma, acompanho de perto o desempenho de um grande número de titulares de cargos públicos. A minha atenção é ainda maior, quando os titulares são pessoas que conheço bem e, sobretudo, que aprecio e respeito (como é o caso). Nunca fico indiferente, também, quando alguém está incumbido de tarefas relevantes para o destino do país.

  1. Por exemplo, durante a guerra, o meu cuidado principal virou-se para as áreas de defesa e segurança, de que dependia a nossa segurança interna e também externa. Porém, com o advento da Paz, virei a minha bússola para a actuação e o desempenho dos responsáveis das áreas económica e social. Nestes últimos tempos, cuido ainda de observar como se portam os serviços tutelados pelo Ministério do Interior, em especial, as suas diversas polícias.

  1. A segurança das fronteiras é crucial para a estabilidade do nosso país. Mas a criminalidade interna tem merecido um cuidado cada vez maior, sobretudo, porque temos perfeita percepção de que ela só pode ser eficazmente combatida se conjugarmos medidas preventivas com medidas repressivas. São com que duas faces da mesma moeda, e devem ser sempre aplicadas de uma forma proporcional, dependendo das circunstâncias.

  1. Pareceu-me, pois, que terá sido essa a razão que determinou a escolha do Presidente da República, Eduardo dos Santos, quando fez do General “Ngongo” Ministro do Interior. Terá achado que ele corporizava a figura capaz de atingir tais objectivos.

  1. Do meu ponto de vista, o General “Ngongo” conseguiu criar uma imagem mais favorável para o complexo aparelho que é o Ministério do Interior. E fê-lo com tenacidade e com persistência. Viu-se-lhe amiudadas vezes uma clara intenção de fazer prevalecer os princípios fundamentais que devem reger o Estado de Direito Democrático.

  1. Não é nada fácil transformar a máquina pesada que dirigiu durante uns bons anos num organismo respeitado. Mas o General “Ngongo” deu continuidade ao trabalho já iniciado pelo infausto General Osvaldo Serra Van-Dúnem, hoje de boa memória e sempre lembrado.

  1. Nos últimos anos, era notório o seu esforço para modernizar os órgãos policiais, sobretudo, para criar uma nova mentalidade, uma nova cultura nos órgãos sob a tutela do Ministério do Interior. Reorganizou a estrutura, admitiu gente nova, gente com formação académica mais elevada, homens e mulheres mais adequados aos crescentes desafios do momento.

  1. Mesmo que sejam ainda apontados repetidos de actos de verdadeira barbárie a polícias – e que chocaram profundamente a opinião pública – íamos já respirando uma nova esperança, uma maior distensão, uma maior confiança.

  1. Apreciei, sobretudo, a realização pela polícia de campanhas de sensibilização dos cidadãos contra práticas incorrectas e contra actos em contravenção às normas socialmente estabelecidas. Por isso, quando soube do desastrado acto que envolveu o cidadão português em São Tomé, fiquei preocupado com a imagem pública do General “Ngongo” e da instituição que dirigia.

  1. Compreendo perfeitamente que o nosso país não pode carregar às costas a imagem de um Estado trapaceiro que “rapta” cidadãos num país estrangeiro – violando a soberania dos outros Estados e desrespeitando as normas do direito internacional. Por isso, o culminar deste episódio tem perfeita justificação – mesmo que eu preferisse que o meu amigo “Nini” Monteiro tivesse ele próprio solicitado a sua exoneração. Seria uma solução menos gravosa, que não mancharia tanto a sua longa folha de serviço público.

  1. Espero, pois, que esse acto sirva para todos reflectirmos seriamente sobre o modo como devemos conviver, quer nas relações institucionais, quer mesmo aqui entre nós, aqui dentro das nossas fronteiras, onde são bem visíveis, e crescentes, as apetências para se fazer do Estado de Direito Democrático uma frase oca e sem sentido.

  1. Neste momento menos bom para o General “Ngongo” – o nosso “Nini” Monteiro do Liceu Salvador Correia – eu quero testemunhar-lhe publicamente o meu apreço, e agradecer-lhe pelo modo como soube interagir com a sociedade, em especial, com comunicação social, de que nunca distinguiu a pública da privada. A ambas deu a dignidade que merecem, sabendo, assim, mostrar o respeito que nutre pelo seu povo – um povo que também ajudou a libertar.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

POSTAL DE WAGENINGEN. ENTRE A HISTÓRIA E O AFECTO

1. Envio-vos este “postal” a partir de um dos países mais antigos e mais simbólicos da Europa – um país de que se conhecem vestígios humanos há, pelo menos, 100.000 anos. Estou por alguns dias nos Países Baixos, incorrectamente chamados Holanda, pois as “Holandas” são apenas duas das suas doze Províncias, a Holanda do Norte e a do Sul.

2. Para nós, angolanos, o nome Holanda traz-nos, de imediato, à memória o futebol. Ainda há pouco tempo a selecção holandesa deliciou-nos com maravilhosas exibições, na Copa do Mundo 2010 que teve lugar na África do Sul. Depois, foi batida, in extermis, pela Espanha, com um golo de grande oportunidade marcado por esse fabuloso jogador espanhol que se chama Iniesta. A Holanda, que esteve durante oito séculos sob domínio espanhol viu, assim, fugir-lhe das mãos mais uma oportunidade de se sagrar Campeã do Mundo de Futebol, precisamente pela sua antiga (e remota) potência colonial. Imagino-lhes a raiva…

3. Daqui onde estou, e donde vos envio este “postal”, recordo nomes que deram muitas glórias desportivas à Holanda como, por exemplo, em 1974, a sua selecção, então treinada por Rinus Mitchels, e que ficou mundialmente conhecida por “A Laranja Mecânica”. Vem-me à cabeça o seu jogador mais valioso, Johan Cruifff, mas, igualmente, o Neeskens ou o Johnny Rep. Na final, “A Laranja Mecânica” foi derrotada por 2-1 pela fortíssima selecção da Alemanha Ocidental, onde despontavam Franz Beckenbauer e Gerd Müller.

4. Depois, vieram outras grandes glórias como MarcoVan Basten, Ruud Gullit, Frank Rijkaard, os irmãos Frank e Ronald de Bóer, ou mesmo Donald Koemen, Patrick Kluivert, Clarence Seedorf.

5. Este é o país que deixou para a História nomes da Cultura e das Artes como Van Gogh, Rembrandt, ou os filósofos Espinoza, René Descartes e Erasmo de Roterdão. A jovem judia Anne Frank escreveu aqui o seu famoso diário, enquanto se escondia da sanha assassina dos nazis que haviam ocupado o seu país.

6. Sempre desejei pisar o solo de Anne Frank, sobretudo porque o seu drama, depois narrado em livro, foi dos episódios que mais profundamente marcou a minha memória de juventude.

7. Os Países Baixos, que nos habituámos a chamar Holanda, também tentaram colonizar Angola, em 1641. A História ensinou-nos que, estranhamente, depois de Portugal já se ter libertado do domínio espanhol, os holandeses, aproveitando-se da fragilidade ocasional de Portugal, iniciaram a ocupação de algumas das suas colónias. Fizeram-no no Nordeste Brasileiro, no Litoral Angolano, nos domínios portugueses na Ásia.

8. Os holandeses eram, então, a maior potência marítima do mundo e estavam em fase de expansão económica. Um país reduzido, mas com uma tremenda vontade imperial… Penso que essa vontade imperial lhes vinha dos tempos de Carlos Magno e também da longa ocupação espanhola.

9. Angola entrou na História da Holanda e a Holanda entrou na História de Angola, não só pela ocupação temporária de Luanda mas também pela astúcia política e diplomática da nossa célebre Rainha Ginga. A Rainha Ginga alternou alianças para reforçar o seu poder e enfraquecer as forças ocupantes. Prometeu aos holandeses que repartiria consigo os escravos capturados, subtraindo, assim, aos portugueses a força de trabalho que necessitavam para explorar o Brasil.

10. É, pois, desta Holanda que também faz parte da nossa História, que vos envio este singelo “postal de viagem”. Eles deixaram, entre nós, visíveis vestígios de sangue, como se pode ver por alguns nomes de famílias angolanas, como os Van-Dúnem, os Van-Deste, ou os Von-Haff.

11. Vem-me agora à memória uma coisa que julgo interessante e que quero partilhar com vocês. Há muitos anos, alguém me disse que a Armada do luso-brasileiro Salvador Correia de Sá e Benevides, partida de Pernambuco para retomar Luanda das mãos dos holandeses, conseguiu o seu intento praticamente sem ter disparado um tiro… Caminhando do Sul para Luanda, estacionaram no Litoral da Província do Kwanza-Sul – creio que defronte ao Kikombo ou a Porto Amboim. Aconteceu, porém, um fenómeno marítimo, um maremoto (que hoje nos habituámos a chamar Tsunami), que fez afundar muitos dos navios da Armada, entre os quais o Navio-Almirante. Refeitos do susto, os sobreviventes, capitaneados por Salvador Correia de Sá, encaminharam-se mesmo assim para Luanda, para cumprirem a missão que se propunham.

12. Os holandeses, resguardados e entrincheirados na Fortaleza, divisaram alguns, poucos, navios a aproximarem-se. Faltava o Navio-Almirante. O que fez com que os holandeses tomassem aquela pequena frota como sendo apenas uma pequena parte da enorme Armada que os vinha atacar… Se o Navio-Almirante ainda não tinha chegado, é porque, então, o grosso da tropa vinha com ele… Calculada assim a hipotética correlação de forças, os holandeses terão decidido retirar para mais longe, sem oferecer resistência em Luanda…

13. Salvador Correia de Sá terá, pois, alcançado o objectivo que se propunha, sem grande esforço. Os holandeses “bazaram” tendo-se restabelecido o comércio de escravos que alimentava a economia brasileira e fazia rico o Reino de Portugal.

14. Esta é apenas uma versão da história da retomada de Luanda. Não digo que seja a verdade histórica.

15. Já vos disse tantas coisas neste “postal” que vos envio, e esqueci-me de vos dizer ao que vim…

16. Na realidade, estou aqui em Wageningen, uma cidade holandesa, pequena mas linda. Muito simbólica pela ensino que ministra. Vejam, por exemplo, que dos menos de 40.000 habitantes que possui, cerca de 10.000 são estudantes. Possui uma Universidade de muita qualidade, cujos cursos são tomados como exemplares em todo o mundo, muito em especial, na Europa. Só a fazerem Doutoramentos estão mais de mil estudantes. Aqui há estudantes de 100 países. Não me enganei – são, sim, 100 países. É, como se dizia na minha infância, uma autêntica Babilónia…

17. Vim participar numa Conferência, patrocinada pela Wageningen University. Estou aqui juntamente com mais dois angolanos: o Professor Nuno Vidal, que veio pela Universidade de Coimbra e a Doutora Maliana Serrano, da Wageningen University. Somos os únicos angolanos aqui. Longe da nossa terra, mas com ela sempre no coração. Por isso, vos envio este “postal”, colocado entre a História e o afecto…

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

IMPOSSÍVEL TAPAR O SOL COM A PENEIRA

1. A frase bombástica que um jornalista norte-americano atribuiu a Fidel Castro, sobre o dito “falhanço do modelo económico cubano”, foi agora rejeitada pelo ex-líder cubano. Fidel diz ter querido dizer exactamente o contrário.

2. Para mim, o contrário a falência só pode significar êxito. Então, o que Fidel Castro terá querido dizer é que o modelo económico cubano foi um enorme êxito? A ser verdade, então, o modelo económico cubano terá ainda suficiente poder atractivo para, eventualmente, ser copiado por outros países, mesmo que com alguns ajustamentos à situação concreta de cada um...

3. Eu fico, pois, agora, com dúvidas sobre como interpretar o desmentido de Fidel Castro. Talvez escrevendo este texto eu consiga percebê-lo melhor.

4. Por exemplo, hoje, Cuba ainda importa cerca de 80% dos bens alimentares que consome – mesmo tendo 65% da sua população a viver no campo. Mas, é verdade também que exporta muito poucos produtos – que eu saiba, praticamente, tabaco e rum; e pouco mais.

5. O Estado cubano controla a maior parte da economia. Diz-se ainda que é responsável por cerca de 80% da realização do seu Produto Interno Bruto. As actividades privadas (que são, sobretudo, propriedade de estrangeiros) participarão com os restantes 20%. Num passado muito próximo (e, talvez, agora mesmo), pequenas actividades económicas como carpintaria, sapataria, canalização, lojas de venda de gelados, estavam sob a alçada do Estado.

6. Com a queda da União Soviética, em 1990, Cuba perdeu os volumosos subsídios que recebia do gigante do Leste Europeu – contabilizam-se em cerca de 5 mil milhões de usd anuais – um fluxo financeiro que permitia ao povo cubano manter um padrão de vida razoável. Depois, a economia entrou em colapso e o povo passou a conhecer momentos de grande dramaticidade, com muita gente a buscar refúgio e melhores oportunidades de vida noutras paragens, sobretudo nos EUA, o vizinho mais próximo, aquele país que exerce grande fascínio sobre todos quantos se sentem desesperados no país caribenho.

7. Foram necessários perto de 15 anos para Cuba iniciar um processo de recuperação económica, processo esse que foi abalado por uma sucessão de desastres naturais e pela persistência do embargo comercial norte-americano contra a Ilha, que vigora desde 1962.

8. O embargo comercial imposto pelos EUA teve (e tem ainda) profundas implicações no comércio de Cuba com o exterior, limitando-o, quer nas exportações, quer nas importações. Mesmo assim, há hoje um crescimento dos investimentos provenientes de países da União Europeia, sobretudo os virados para o turismo, e também para outros domínios, como a produção de energia e as telecomunicações.

9. O turismo de massa transformou-se num dos sectores mais dinâmicos da economia cubana, sendo já a sua principal fonte de arrecadação de divisas e um grande gerador de novos empregos, muito deles ocupados por pessoal com qualificação superior.

10. Os investimentos realizados no sector energético permitiram aliviar a gritante carência que se fazia sentir, com restrições e cortes constantes de energia. Permitiram, também, a exploração de novas e modernas fontes de energia, como a eólica e a solar, e até mesmo a energia proveniente da transformação da cana-de-açúcar em etanol. Alivia-se, assim, a emissão de gases poluentes, resultantes da acentuada utilização de gás e de diesel para a produção de energia.

11. Contudo, é referenciada como bastante positiva a área da educação, onde o governo cubano investiu imenso, desde a Revolução, uma educação que se mantém gratuita em todos os níveis de ensino e gratuita e obrigatória até ao 9º ano de escolaridade. Isso criou um escol de quadros reconhecidos em várias partes do mundo, num país que antes da Revolução tinha quase metade da sua população na condição de analfabeta.

12. Cuba está também na dianteira, relativamente aos seus vizinhos latino-americanos, no que diz respeito à saúde. Possui muito baixa taxa de mortalidade infantil e uma expectativa de vida de 75 anos para os homens e de 79 anos para as mulheres. Neste domínio, está mesmo ao nível dos países desenvolvidos. Ao longo dos anos, desenvolveu intensas campanhas para o combate a um conjunto de doenças que, noutras paragens, são endémicas, reduzindo para zero, ou para quase zero a sua incidência.

13. Terão sido tais políticas sociais que permitiram que Cuba, em termos do Índice de Desenvolvimento Humano, seja cotado como um claro caso de sucesso.

14. A grande debilidade de Cuba é, sem dúvidas, a economia. Para além, claro, do regime político, um regime político que nega as mais elementares liberdades democráticas.

15. Do ponto de vista económico não há como esconder a falência do modelo. De tal modo que é o próprio Presidente Raul Castro a protagonizar alterações, hoje vistas como significativas. O que mais chamou a atenção foi o anúncio de um corte, até Março de 2011, em 500 mil postos de trabalho ao nível do Estado, com a possibilidade de crescer até 1 milhão, nos próximos 5 anos. Esta medida põe claramente em causa o modelo económico cubano, baseado na propriedade e na actividade estatal.

16. Ao tomar tal medida, o governo alimenta a expectativa de os desempregados se encaminharem para o sector privado ou para o sector cooperativo da economia.

17. A reorganização económica do Estado cubano irá, seguramente, encontrar muitos obstáculos, a começar pela ausência de poupança por parte das famílias. Sem poupança não poderão fazer investimentos, mesmo que se lhes dê acesso à terra ou se liberalizem algumas actividades económicas, antes do domínio total do Estado.

18. Para crescer, a economia cubana terá que receber muito dinheiro e ele só poderá vir do Estado, dos cubanos emigrados no estrangeiro, ou de investidores estrangeiros. O Estado tem limites e irá, seguramente, deixar para o sector privado algumas áreas económicas. Será, pois, o sector privado a funcionar como o motor da criação de novos postos de trabalho.

19. Mesmo que haja naquela Ilha muita gente qualificada, em alguns domínios a economia de mercado que começará a ser implantada exigirá um tipo de formação técnica diferente daquela que foi ministrada até agora. Terá, sim, de haver, por exemplo, uma reciclagem dos quadros de gestão e economia. E os métodos de trabalho irão, também, por certo, ser alterados.

20. Uma coisa é ter sido formado para servir o aparelho de Estado (com a sua própria lógica de funcionamento, num modelo de sociedade pouco dinâmica e ultrapassada), outra coisa é ser servidor de agentes económicos privados que baseiam a sua actuação no princípio do lucro, num quadro de grande competitividade, interna e internacional.

21. O arranjo político – que é inevitável, mesmo que demore – fica para uma abordagem posterior.

22. Mesmo que Fidel Castro negue, agora, o que lhe foi atribuído, na realidade, a vez das grandes mudanças em Cuba está cada vez mais próxima.