quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O HAITI ESTÁ AQUI…

1. A proposta apresentada pelo Presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, a propósito da tragédia que ocorreu no Haiti é, no mínimo, caricata. Abdoulaye Wade avançou a ideia de que se deveria ceder um território no continente africano, para que os haitianos se possam resguardar e encontrar a paz de que necessitam.

2. Apreciada apenas pelo lado sentimental, por ser tão angélica, a ideia do Presidente Abdoulaye Wade poderá até “derreter” o coração do mais coriáceo ser humano. Ela teria o condão de fazer “transportar” Abdoulaye Wade para uma qualquer galáxia situada muito para além do nosso firmamento…

3. Pelo menos em relação aos haitianos, o Presidente da República do Senegal pareceu quase um santo... ou como quem tem a justa pretensão de conquistar um lugar junto dos homens e mulheres que ganharam a mais elevada graça divina…

4. Aparentemente, o Presidente do Senegal regressou a um passado já idoso, de cerca de 200 anos, quando milhares de negros livres ou acabados de ser libertados da escravatura, provenientes da América, foram transferidos para a então chamada “Costa da Pimenta”, um pedaço da terra africana pertencente à Serra Leoa, onde fundaram o país que hoje se denomina Libéria, traduzida como Terra Livre.

5. Ao contrário do que se possa eventualmente pensar, o êxodo de negros americanos para a costa africana não se deveu a um sentimento humanitário. Foi, sim, a materialização do preconceito de determinados sectores da sociedade norte-americana, para quem os negros dificilmente se adaptariam à América e ao nascente desenvolvimento capitalista. Para eles, os negros seriam a causa de quase toda a criminalidade que varria a América. Queriam ainda evitar a mistura de sangues. Os sectores brancos mais conservadores queriam, sim, ver os negros muito distantes… Estimularam, pois, a criação da Sociedade Americana de Colonização, auspiciada pelo Presidente James Monroe.

6. Depois de vários revezes na tentativa de colonização da Costa da Pimenta, em 1847, criou-se o primeiro país africano independente, que adoptou uma Constituição inspirada na Constituição dos Estados Unidos da América.

7. Os negros norte-americanos retornaram à África como colonos, tal como os colonos europeus o haviam sido no continente americano, e ainda o eram no continente africano.

8. Mesmo conservando a cor da pele e outros traços distintivos, os colonos negros norte-americanos haviam perdido muitas das suas raízes: diluíram-se as velhas identidades culturais, falavam inglês, muitos nem estavam em condições de apontar num mapa de África o local de onde os seus antepassados haviam partido. A esponja do tempo enxugara as suas memórias... Restavam-lhes ténues e vagas recordações. Os de ascendência mais remota, nem isso tinham.

9. A África é um continente enorme, não é uma pequena ilha onde todos se conhecem e quase todos se irmanam. Os escravos levados para a América, e para outras partes do mundo, partiram de vários territórios, de múltiplas nações; uns do litoral, outros do interior. Depois, sujeitos a uma nova autoridade, misturaram-se numa terra estranha. O processo histórico fez com que esses negros caldeassem novas culturas, que criassem novas identidades – Em suma, eles que partiram negros africanos, tornaram-se negros americanos.

10. Os que retornaram à África, e fundaram a Libéria estabeleceram um relacionamento conflituoso com as populações autóctones da Costa da Pimenta, a quem, inclusive, negaram a cidadania até ao ano de 1904. Desencadearam ainda acções para retirar território à Serra Leoa, colidindo com interesses franceses e ingleses.

11. Até ao ano de 1980, a Libéria somente teve presidentes descendentes de negros originários da América. Por exemplo, Joseph Jenkins Roberts, o primeiro presidente do país (um mestiço nascido no estado norte-americano da Virgínia), William Tubman, ou mesmo William Tolbert Jr., deposto em 1980, e depois assassinado, ele e o seu staff, pelo chefe da sua guarda, o sargento Samuel Doe, oriundo dos negros autóctones. Pelo menos temporariamente, alterara-se o equilíbrio étnico entre afro-americanos e africanos com todas as suas raízes assentes no continente.

12. A disputa entre descendentes de negros americanos e negros autóctones alimentou os mais profundos conflitos que a Libéria conheceu até hoje. As guerrilhas de Charles Taylor e Roosevelt “Prince” Johnson são um exemplo disso. Descendentes de negros americanos, esses dois homens derrubaram Samuel Doe e “Prince” Jonhson encarregou-se de o executar. Fê-lo com os requintes de malvadez que as câmaras registaram.

13. Cairá, pois, num profundo equívoco quem pensa que a cor da pele é o único factor de identidade. Se a identidade fosse assim tão simples, brancos americanos e brancos europeus seriam uma única e a mesma coisa. Teriam, por isso, os mesmos interesses. A cor da pele pode contribuir para distinguir, mas não forçosamente para identificar. Para criar uma identidade, sólida e coerente, participam outros factores: a língua, a cultura, a religião, o reconhecimento da ancestralidade, a consciência da convergência dos destinos e dos interesses (e estes não podem ser meramente circunstanciais).

14. É por isso que eu penso que é utópico pensar-se no transporte dos haitianos para África. Ainda mais, quando a principal motivação é salvaguardá-los das intempéries. Os haitianos não são africanos que foram passar férias no Haiti, e tiveram o azar de ser apanhados por um terramoto… Muitos deles são descendentes de negros africanos que foram levados há 500 anos.

15. Catástrofes naturais há-as em todas as partes do mundo. E sempre houve. Umas vezes, são tornados, outras são ciclones, erupções vulcânicas, tempestades de gelo…

16. Lembro, por exemplo, que Tashkent, a capital do Uzbequistão, está situada sobre uma zona altamente sísmica. No passado, ela quase foi varrida do mapa. Contabilizavam-se, então, mortos e feridos às centenas, mesmo até aos milhares.

17. No ano de 2008, a imprensa mundial fez manchete com a notícia de que, em 22 Agosto, se havia registado um tremor de terra em Tashkent. Porém, sem sinais de danos ou de incêndios. Não houve desabamentos. E sabem porquê? Porque a cidade está agora preparada para resistir aos abalos telúricos. Os uzbeques prepararam a sua cidade para enfrentar, com relativo êxito, a fúria da natureza. Não transferiram os povos para outro país, ou para outro continente.

18. Na mesma ocasião, Tóquio, uma enorme cidade que é vítima constante de terramotos, sofreu mais um abalo de terra. Também não houve registo de danos ou vítimas humanas. A América Central é outra área com forte propensão para os abanões da terra.

19. Na China, em 12 de Maio de 2008, um tremor de terra causou acima de 8.500 mortes. Constatou-se, depois, que esse elevado número de vítimas se deveu a erros na construção dos edifícios. Aconteceu assim na China, e sucederá, pela certa, na maioria dos países subdesenvolvidos.

20. O subdesenvolvimento amplifica os impactos das fúrias da natureza. Hoje, o cerne da questão é o subdesenvolvimento. A natureza encarrega-se de fazer o seu trabalho. Ela causa mais mal sobre os que estão desprotegidos.

21. Que fique bem claro, e que não restem dúvidas: o Haiti não ficou pobre por causa do último terramoto. O terramoto tornou, sim, ainda mais pobre esse país. Mas ele já era o país mais pobre do Hemisfério Ocidental. No Haiti, vemos agora, e mais uma vez, tudo era precário.

22. E nós, afinal, como estamos? Vale a pena olharmos também para nós, e sem falsos pudores.

23. Somos, sim, um país rico de recursos. Pouco mais do que isso. Temos recursos que o Haiti não possui. Vendo bem, e se atendermos ao modo como o nosso povo vive, garanto-vos que quase somos um Haiti com petróleo... Não fosse o petróleo, e estaríamos na mais dantesca ruína. E o petróleo um dia vai terminar…

24. Não nos iludamos com os edifícios de luzes brilhantes e vidros de múltiplas cores, nem com esses condomínios que nos segregam. Esqueçamo-nos, por momentos, também, dos bólides de alta cilindrada que contrastam com as estradas esburacadas, mal concebidas e de curtíssima duração.

25. Não estamos preparados para nada, nem para receber uma chuva miudinha… Qualquer pingo de água que caia sobre Luanda provoca de imediato uma grande inundação, desaloja gente, mata, arruína famílias, paralisa a cidade… Os nossos bairros estão como o Haiti. O Haiti está aqui bem junto de nós. E não veio de barco ou em ponte aérea. O nosso Haiti não retornou da América. Nunca saiu de África.

26. Abdoulaye Wade propôs aos africanos que recebam e alojem os haitianos, para escaparem à fúria da natureza. Mas a fúria que mais tem fustigado o Haiti, ao longo da sua história, é a sua incapacidade para se desenvolver. Tal como nós, os africanos. Afinal, a África, quase toda a África, é um grande Haiti…

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O HAITI: ENTRE A HISTÓRIA E A NATUREZA

1. A natureza agrediu de novo o país mais pobre do Hemisfério Ocidental, o Haiti. E fê-lo de uma forma implacável. A história do Haiti está matizada de agressões de diversa ordem, umas vezes, por parte da natureza, mas, a maioria, foi a acção próprio homem que as levou a cabo.

2. Quando é a natureza age contra o Haiti, os seus impactos são amplificados pelos estragos historicamente causados pelo homem. É verdade, se a natureza encontra criadas as condições, então, o desastre ainda é maior, e os danos humanos são incalculáveis.

3. No dia 13, uma notícia aterradora tomou conta das estações de rádio e de televisão de todo o mundo. Logo pela manhã, ouviu-se dizer: “Eclodiu um forte sismo em Port-au-Prince, a capital do Haiti. As previsões são catastróficas, quer em danos físicos, quer em perda de vidas humanas”. A informação foi-se repetindo e os dados começaram a ser cada vez mais pormenorizados: gente soterrada, mortos acumulados nas estradas e nas vielas, casas derrubadas, bairros de lata em escombros, pessoas em desespero, nenhuma capacidade de atendimento aos sinistrados. Estava tudo em ruínas. Até o Estado parecia ter desaparecido por entre cacos, pedregulhos, chapas de zinco retorcidas, telhas quebradas, troncos de árvores tombados, carros encalhados em qualquer parte, corpos e mais corpos… Via-se, também, gente a procura de nada, sem saberem para onde ir… Era o caos total…

4. Veio-me à cabeça a história do Haiti: o modo como foi povoado; o sofrimento dos homens, primeiro para se adaptarem à nova natureza, ao seu novo mundo, a todas as circunstâncias e contingências; também como os homens agiram sobre os outros homens, uns querendo subjugar os outros, em função da origem geográfica e pigmentação da pele (foi assim que se consolidou aquela estrutura social injusta, nada condizente com os proclamados desígnios divinos; depois lembrei-me da luta dos subjugados, eles a querem desprender-se das algemas e das grilhetas… E, finalmente, a conseguirem. Ao lado, e na continuidade da escravatura, emergiu uma sociedade crioula, típica do Mar do Caribe - o fruto, afinal, das múltiplas miscigenações que os homens teceram. Lembrei-me de tudo isso, de um modo sereno, mas empolgante, arrebatador, dominador, introspectivo. Procurava entender melhor a história dos homens, os homens sujeitos, fazedores da sua própria história…

5. Surgiram, depois, os apelos à comunidade internacional: era preciso socorrer o povo haitiano, que estava a conhecer o maior desastre físico da sua história moderna. Não podiam contabilizar-se diferenças políticas ou ideológicas. Somos apenas seres humanos, seres de carne e osso, somos alma de gente. É a espécie humana que está a ser agredida pela natureza. Passe-se por cima de todas as barreiras, as naturais e as artificiais.

6. Os edifícios públicos não escaparam. A Catedral de Port-au-Prince ficou em ruínas; os hospitais desabaram, sobre os doentes, sobre os feridos, sobre os incapacitados. O Palácio Presidencial ruiu. O Presidente da República, René Prèval, escapou ileso. Pelo menos isso. Estava aí um vestígio do poder de Estado. René Prèval disse em público que ele próprio deixara de ter casa – vi-o na rua, descoroçoado, como um simples cidadão.

7. O pessoal das Nações Unidas, o principal suporte institucional do Haiti, contabilizado entre os milhares de vítimas: soldados, funcionários civis, polícias. Agentes das organizações humanitárias não foram poupados. Religiosos e religiosas. O caos não perdoa nacionais nem estrangeiros, habitantes regulares ou simplesmente de passagem, gente rica ou gente pobre. O terramoto engoliu tudo, ou quase tudo. Era a fúria de um dos elementos.

8. Há poucos anos, foram ciclones que arrasaram aquele pobre país, um país castigado por todos os elementos: chuvas diluvianas, ventos em fúria, vagas marítimas ávidas de ganhar o espaço da terra, mesmo que seja apenas temporariamente… Aparecem mesmo pragas de todo o tipo. O Haiti tem sido sistematicamente castigado.

9. Estou habituado a ver imagens de catástrofes. Emociono-me sempre. Fico preso ao televisor. Elas servem para testar a minha capacidade de resistência. Irmano-me com os que sofrem. Coloco-me no seu lugar. Procuro sentir a sua dor, como se fosse um deles… É a ilusão de que, partilhando com eles a dor, a sua dor fica mais aliviada, porque repartida por mim, por mais alguém. Mas a dor não tem fim, também não tem quantidade. Não dá para repartir. A dor é absoluta… A dor dos que sofrem é mais forte, é mais carnal, é telúrica. Vem da alma e não do intelecto. A dor é um sofrimento que não é partilhável nem transmissível.

10. Mas não é somente a natureza que tem agredido o Haiti. A sua história também tem sido dramática. A história do Haiti está tingida de sangue e vestida de luto. Não lhe bastou ser um povo descendente de escravos arrancados do seu meio, da sua gente. Os descendentes dos escravos também macularam, e de que maneira, os descendem dos escravos. A origem comum nem sempre os irmanou. Esqueceram-se da sua ancestralidade.

11. O Haiti ocupa parte da Ilha Hispaniola, situada no mar do Caribe, perto de Cuba e das Bahamas. Cristóvão Colombo encontrou a ilha em 1492, e deu-lhe o nome. Depois mudaram-lhe o nome para São Domingos, em homenagem ao espanhol São Domingos de Guzman. Do outro lado da ilha fica a República Dominicana, a terra dos merengues de Luís Kalaf e Luís Quintero, Angel Viloria, dos anos 50 e 60 do séc. XX.

12. No séc. XVII, sob domínio francês, a ilha de São Domingos prosperou à custa da exportação de café, açúcar e cacau, muito por força da exploração do trabalho escravo.

13. São Domingos tornou-se célebre, por causa da revolta dos escravos capitaneados por Toussaint Louverture. Feito governador-geral, Toussaint Louverure foi deposto e morto pelos franceses. Seguiu-se-lhe Jacques Dessalines que organizou o exército, derrotando, em 1803, os franceses. Dessalines proclamou a independência e fez-se aclamar Imperador. Afinal, o descendente de escravos tinha como referência Napoleão Bonaparte.

14. Os interesses franceses e espanhóis fizeram-se sentir de um modo contraditório, provocando a divisão da ilha de São Domingos em duas partes: o Haiti, sob influência francesa, com capital em Port-au-Prince, e a República Dominicana, situada na sua parte oriental, mais dependente da Espanha, com capital em Santo Domingo.

15. A história da Ilha de São Domingos, e particularmente do Haiti, está tingida de muito sangue. Quer pela acção dos homens, quer pelos caprichos da natureza. Os golpes de Estados e assassinatos têm sido uma constante. Os Estados Unidos da América não deixaram também de exercer a sua acção, influenciando a política daqueles povos.

16. A era do ditador François Duvalier, o Papá Doc, foi, sobretudo, marcada pelo terror policial. Médico de profissão, Papá Doc assentou o seu poder nos “tontons macoutes”, a sua guarda pessoal, e no vodú, reminiscência cultural de raízes africanas, uma mistura de religião com feitiçaria. A era do Papá Doc foi devastadora. O Papá Doc fez questão de eliminar a elite pensante do país. Provocou o êxodo dos que sobraram, uns para as Américas, outros para a Europa, em especial a França. Ainda encontrei intelectuais haitianos no Congo Brazzaville, ligados aos meus camaradas. Mário Pinto de Andrade, por exemplo, teve um estreito relacionamento com intelectuais haitianos e caribenhos de um modo geral: René Depreste, Sarah Maldoror, misturados com a diáspora intelectual africana em Paris: Allioune Diop, Aimé Césaire, Cheikh Anta Diop, Senghor, Sembène Ousmane.

17. Quando o Papá Doc morreu, sucedeu-lhe o filho, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc. Ambos praticaram uma política implacável contra a oposição, que varreram do mapa, e contra a Igreja Católica.

18. Com a queda de Baby Doc – que depois se refugiou em França – sucederam-se uns governantes altamente autoritários, ou extravagantes, como o padre populista Jean-Bertrand Aristide, derrubado, em 1991, pelo general Raul Cedrás. Aristide regressou ao poder por força da pressão internacional. A passagem pelo poder de Jean-Bertrand Aristide tem matéria para uma crónica especial, tal foi a sua influência na vida política do Haiti dos nossos tempos.

19. O Haiti parece um país amaldiçoado. Sofre a demência dos homens e a inclemência da natureza. Desta vez, foi a natureza que agiu, demolindo, derrubando, queimando, ferindo, matando indiscriminadamente.

20. Uma das sobreviventes desta catástrofe, ao assistir o terramoto a partir da varanda, filmou parte da devastação, e gravou no seu pequeno aparelho esta frase que correu o mundo: “Ai, meu Deus! Será que isto é o fim do mundo?”.

21. Não era o fim do mundo... Era, sim, e mais uma vez, a natureza a castigar o povo haitiano. As imagens que nos chegaram são aterradoras… Parecia mesmo o fim do mundo…

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

MORREU CODÉ DI DONA

1. Em cerca de três meses, a música e a cultura cabo-verdianas perderam dois grandes vultos: Manuel d’Novas e Codé di Dona.

2. Manuel d’Novas era um renomado poeta e compositor, e faleceu aos 28 de Setembro último, aos 71 anos, no Hospital Baptista de Sousa, na Ilha de São Vicente. Segundo se disse, a sua morte adveio das sequelas de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) que o atingira há três anos, em Portugal.

3. Manuel d’Novas foi dos mais privilegiados compositores de mornas e coladeiras. Nasceu na Ilha de Santo Antão, tendo feito, porém, quase toda a sua vida no Mindelo, a capital da Ilha de São Vicente, que o adoptou como um filho. Foi autor de algumas das mais belas músicas interpretadas por Cesária Évora ou por Bana. Nunca me canso de ouvir, por exemplo, “Apocalipse”, “Cumpade Ciznone”, “Lamento d’um Emigrante”, “Nôs Morna”.

4. Pensar em Manuel d’Novas faz-me também retornar às letras e às músicas de B. Leza, como “Eclipse”, “Noite de Mindelo”, ou mesmo “Lua Nha Testemunha”, esta, um autêntico hino. E porque não as composições de Eugénio Tavares?

5. Dizem os estudiosos da música cabo-verdiana que a morna nasceu na Ilha da Boavista, passando depois para as restantes ilhas do Arquipélago, “adaptando-se e tomando a feição psíquica de cada povo”, como escreveu Eugénio Tavares.

6. Sobre a morna, Eugénio Tavares disse ainda mais: “Na Boavista, a morna não se elevou na linha sentimental; antes, planou baixo, rebuscando os ridículos de cada drama de amor, cantando o perfil caricatural de cada episódio grotesco, ironizando fracassos amorosos, sublimando a comédia gentílica das Moias (naufrágios de navios tão frequentes nas costas da ilha), tudo no estilo leve e arrebitado que afeiçoa a vida despreocupada do povo boavisense, o mais alegre, e o mais amorável de entre as gentes do Arquipélago. Música elegante psicatada de sorrisos finos e harmonias ligeiras. Na Ilha Brava em que os homens casam com o mar, como no poema de Pierre Loti, a dulcíssima estância da saudade, mercê da vida aventureira e trágica do seu povo, a morna fixou os olhos no mar e no espaço azul, e adquiriu essa linha sentimental, essa doçura harmoniosa que caracteriza as canções bravenses. Elevou-se de riso e pranto, e finou, amorosamente, pelo portuguesíssimo diapasão da saudade.” Oh, meu Deus, quão poética é esta prosa de Eugénio Tavares…

7. Desde pequeno, tive o ensejo de ouvir canções de Eugénio Tavares. Muito em especial, e com um tremendo enlevo, eu ouvia “A Canção ao Mar – O Mar Eterno”, de que destaco aqui as primeiras estrofes:

“Oh mar eterno sem fundo sem fim
Oh mar das túrbidas vagas, oh! mar
De ti e das bocas do mundo a mim
Só me vem dores e pragas, oh mar

Que mal te fiz, oh mar
Que ao ver-me pões-te a arfar, a arfar
Quebrando as ondas tuas
De encontro às rochas nuas

Suspende a zanga um momento e
escuta
A voz do meu sentimento na luta
Que o amor ascende em meu peito
desfeito
De tanto amar e penar, oh mar”

Na minha infância, a minha mãe, Maria Luzia, filha de um cabo-verdiano de origem judaica, natural de Santo Antão, cantava esta música, quase em pranto. Era para nós quase uma cantiga de ninar. Esse e outros poemas marcaram-me o sentimento e despertaram a minha curiosidade para a leitura dos livros de Baltazar Lopes, Manuel Lopes, Aurélio Gonçalves, Gabriel Mariano, Onésimo Silveira e outros vates da cultura do Arquipélago.

8. A Morna, tida como o género musical mais representativo do povo cabo-verdiano, foi, por isso, um objecto do mais aprofundado estudo. A Coladeira, mais ritmada que a morna, em alguns casos, tida mesmo como uma aceleração da morna, é hoje também uma fiel companheira das noites cabo-verdianas. Ao longo do tempo, a coladeira foi sofrendo múltiplas influências, quer vindas do outro lado do Atlântico, quer mesmo idas do nosso próprio continente.

9. Coube agora a vez a Codé di Dona, falecido no dia 5 de Janeiro, no principal hospital da cidade da Praia, o Hospital Agostinho Neto. O texto do seu obituário dizia apenas que foi vítima de “doença prolongada”.

10. Quando leio ou escuto a expressão “doença prolongada” ganho inteira liberdade para imaginar qualquer maleita, da mais conhecida e corriqueira até à mais sombria e enigmática. Porém, do que li e, depois, percebi, provavelmente Codé di Dona tenha sido mais uma vítima da muito temida doença pulmonar – a tuberculose. Seja essa, seja outra doença, afinal, o que mais importa é que, no dia 5 de Janeiro, Cabo Verde perdeu um dos seus mais emblemáticos compositores. Codé di Dona foi justamente consagrado como Rei do Funaná.

11. O Funaná é um género musical e uma dança nascidos no interior da Ilha de Santiago, a ilha mais africana das dez ilhas que compõem o Arquipélago de Cabo Verde. Com a adaptação de novos instrumentos musicais electrónicos que se juntaram à gaita (o acordeão) e ao ferrinho, o Funaná ganhou espaço não somente na capital, mas, igualmente, nas outras ilhas.

12. Daí, seguramente, o sentimento colectivo de perda que invadiu todo o Arquipélago de Cabo Verde, quando se anunciou a passagem para a eternidade desse grande músico e compositor, Codé di Dona. É assim que se tece o tempo e se compõe a história, umas vezes com felizes entradas, outras com tristes saídas…

MORREU CODÉ DI DONA

1. Em cerca de três meses, a música e a cultura cabo-verdianas perderam dois grandes vultos: Manuel d’Novas e Codé di Dona.

2. Manuel d’Novas era um renomado poeta e compositor, e faleceu aos 28 de Setembro último, aos 71 anos, no Hospital Baptista de Sousa, na Ilha de São Vicente. Segundo se disse, a sua morte adveio das sequelas de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) que o atingira há três anos, em Portugal.

3. Manuel d’Novas foi dos mais privilegiados compositores de mornas e coladeiras. Nasceu na Ilha de Santo Antão, tendo feito, porém, quase toda a sua vida no Mindelo, a capital da Ilha de São Vicente, que o adoptou como um filho. Foi autor de algumas das mais belas músicas interpretadas por Cesária Évora ou por Bana. Nunca me canso de ouvir, por exemplo, “Apocalipse”, “Cumpade Ciznone”, “Lamento d’um Emigrante”, “Nôs Morna”.

4. Pensar em Manuel d’Novas faz-me também retornar às letras e às músicas de B. Leza, como “Eclipse”, “Noite de Mindelo”, ou mesmo “Lua Nha Testemunha”, esta, um autêntico hino. E porque não as composições de Eugénio Tavares?

5. Dizem os estudiosos da música cabo-verdiana que a morna nasceu na Ilha da Boavista, passando depois para as restantes ilhas do Arquipélago, “adaptando-se e tomando a feição psíquica de cada povo”, como escreveu Eugénio Tavares.

6. Sobre a morna, Eugénio Tavares disse ainda mais: “Na Boavista, a morna não se elevou na linha sentimental; antes, planou baixo, rebuscando os ridículos de cada drama de amor, cantando o perfil caricatural de cada episódio grotesco, ironizando fracassos amorosos, sublimando a comédia gentílica das Moias (naufrágios de navios tão frequentes nas costas da ilha), tudo no estilo leve e arrebitado que afeiçoa a vida despreocupada do povo boavisense, o mais alegre, e o mais amorável de entre as gentes do Arquipélago. Música elegante psicatada de sorrisos finos e harmonias ligeiras. Na Ilha Brava em que os homens casam com o mar, como no poema de Pierre Loti, a dulcíssima estância da saudade, mercê da vida aventureira e trágica do seu povo, a morna fixou os olhos no mar e no espaço azul, e adquiriu essa linha sentimental, essa doçura harmoniosa que caracteriza as canções bravenses. Elevou-se de riso e pranto, e finou, amorosamente, pelo portuguesíssimo diapasão da saudade.” Oh, meu Deus, quão poética é esta prosa de Eugénio Tavares…

7. Desde pequeno, tive o ensejo de ouvir canções de Eugénio Tavares. Muito em especial, e com um tremendo enlevo, eu ouvia “A Canção ao Mar – O Mar Eterno”, de que destaco aqui as primeiras estrofes:

“Oh mar eterno sem fundo sem fim
Oh mar das túrbidas vagas, oh! mar
De ti e das bocas do mundo a mim
Só me vem dores e pragas, oh mar

Que mal te fiz, oh mar
Que ao ver-me pões-te a arfar, a arfar
Quebrando as ondas tuas
De encontro às rochas nuas

Suspende a zanga um momento e
escuta
A voz do meu sentimento na luta
Que o amor ascende em meu peito
desfeito
De tanto amar e penar, oh mar”

Na minha infância, a minha mãe, Maria Luzia, filha de um cabo-verdiano de origem judaica, natural de Santo Antão, cantava esta música, quase em pranto. Era para nós quase uma cantiga de ninar. Esse e outros poemas marcaram-me o sentimento e despertaram a minha curiosidade para a leitura dos livros de Baltazar Lopes, Manuel Lopes, Aurélio Gonçalves, Gabriel Mariano, Onésimo Silveira e outros vates da cultura do Arquipélago.

8. A Morna, tida como o género musical mais representativo do povo cabo-verdiano, foi, por isso, um objecto do mais aprofundado estudo. A Coladeira, mais ritmada que a morna, em alguns casos, tida mesmo como uma aceleração da morna, é hoje também uma fiel companheira das noites cabo-verdianas. Ao longo do tempo, a coladeira foi sofrendo múltiplas influências, quer vindas do outro lado do Atlântico, quer mesmo idas do nosso próprio continente.

9. Coube agora a vez a Codé di Dona, falecido no dia 5 de Janeiro, no principal hospital da cidade da Praia, o Hospital Agostinho Neto. O texto do seu obituário dizia apenas que foi vítima de “doença prolongada”.

10. Quando leio ou escuto a expressão “doença prolongada” ganho inteira liberdade para imaginar qualquer maleita, da mais conhecida e corriqueira até à mais sombria e enigmática. Porém, do que li e, depois, percebi, provavelmente Codé di Dona tenha sido mais uma vítima da muito temida doença pulmonar – a tuberculose. Seja essa, seja outra doença, afinal, o que mais importa é que, no dia 5 de Janeiro, Cabo Verde perdeu um dos seus mais emblemáticos compositores. Codé di Dona foi justamente consagrado como Rei do Funaná.

11. O Funaná é um género musical e uma dança nascidos no interior da Ilha de Santiago, a ilha mais africana das dez ilhas que compõem o Arquipélago de Cabo Verde. Com a adaptação de novos instrumentos musicais electrónicos que se juntaram à gaita (o acordeão) e ao ferrinho, o Funaná ganhou espaço não somente na capital, mas, igualmente, nas outras ilhas.

12. Daí, seguramente, o sentimento colectivo de perda que invadiu todo o Arquipélago de Cabo Verde, quando se anunciou a passagem para a eternidade desse grande músico e compositor, Codé di Dona. É assim que se tece o tempo e se compõe a história, umas vezes com felizes entradas, outras com tristes saídas…

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O FIM DA LIVRARIA BUCHHOLZ

1. O encerramento, por falência, da Livraria Buchholz, entristeceu-me. Conheci a Buchholz e frequentei-a. Sempre que regressei a Lisboa, visitei-a. Fi-lo, às vezes mesmo, pelo simples prazer de a percorrer. É que eu sempre gostei de livrarias, de livros, mesmo até sentir o prazer de apreciar as suas estantes e prateleiras.

2. Em Luanda, nesta Luanda de agora, não posso dar vazão ao meu prazer pelas livrarias, por várias razões: porque elas existem em número exíguo; porque as poucos que existem, nem sempre possuem o conforto que gosto de desfrutar; porque estacionar o meu carro em local próximo e seguro é já uma miragem.

3. No período colonial, em Luanda, havia não só livrarias consagradas, mas, igualmente, livreiros consagrados. Em muitos casos, os livreiros eram nossos cúmplices. Alguns desses livreiros tiveram um papel importante na minha tomada de consciência e no meu enriquecimento cultural. Houve livreiros que nos guardavam livros declaradamente proibidos, ou que tornavam suspeito quem os lesse. Tínhamos a Lello, o Centro do Livro Brasileiro, a Argente Santos, a Minerva, quer a da Baixa, quer a do São Paulo.

4. Herdámos do nosso pai e da nossa mãe o hábito da leitura e o respeito pelos livros. Qualquer um deles possuía os seus próprios livros. Por isso, fui assíduo utilizador dos livros da Biblioteca da Câmara e também da Biblioteca do Liceu Salvador Correia, onde estudei. Mantive esse estilo de vida, enquanto vivi em Lisboa. Daí o meu carinho especial pela Buchholz.

5. A Buchholz teve sempre frequentadores de referência. Por norma, eram homens e mulheres da sociedade portuguesa: políticos, gente de cultura, académicos, também gente ligada a profissões liberais. Foi também muito requisitada por estudantes do ensino superior. Antes de frequentar a Buchholz, eu já ouvira falar dela como uma livraria de referência. Tinha, pois, um enorme simbolismo.

6. A Livraria Buchholz não estava muito exposta. Estava recatada, quase sobre a esquina da Rua Duque de Palmela, na Baixa da cidade. Era emblemática. Dentro da Buchholz respirava-se conforto e serenidade. Um ponto de encontro seguro. Depois, procurava-se um outro local para trocar um bom dedo de conversa, geralmente nos seus arredores. Ou então, caminhava-se num qualquer dos sentidos da Avenida dos Restauradores. Fiz isso algumas vezes.

7. Quando alguém me perguntasse onde nos poderíamos encontrar, em função do interlocutor e da conversa, eu escolhia o local. Se fosse alguém com os mesmos interesses intelectuais e científicos que eu, a resposta era quase inevitável: “Na Buchholz, na Duque de Palmela. Depois, logo se vê para onde vamos!”

8. Foi na Buchholz que estive com o Mário Pinto de Andrade, no nosso derradeiro encontro, poucos dias antes da sua morte. Eu, o Mário, o Vicente. Coube ao Mário escolher o local. Afinal, a Buchholz também exercia sobre ele um forte poder atractivo. Inclusive, o Mário era conhecido, e até mesmo amigo de algumas das suas empregadas. Registei, por exemplo, a excitação de uma delas, sua amiga de longa data, quando nos reconheceu como parentes. Também ficámos amigos, até hoje. Revelou a mim e ao Vicente que um dia esteve tentada a seguir o Mário, a ir trabalhar com ele, quando ocupou o cargo de Ministro da Informação e Cultura na Guiné-Bissau, no governo do também já falecido Luís Cabral. São memórias que perduram, que o tempo não apaga… Elas dão um sentido melancólico à vida, emprestado-lhe um singular significado.

9. Uma das características marcantes no Mário era a modéstia. Por isso, levou-nos a almoçar num restaurante relativamente simples, de classe média. O restaurante era ali mesmo junto da Buchholz – ficava do outro lado da rua. Comemos e falámos de muita coisa. Naturalmente, falámos de cultura, da família, de política. Trocámos informações. Esse meu último encontro com o Mário foi quase uma conspiração. Foi um encontro de velhos camaradas de trincheira política. Gente que partilhou cumplicidades.

10. Do ponto de vista anímico, o Mário estava bem, e parecia determinado a retomar o percurso político. Disse-nos que era a altura de fazermos de novo alguma coisa em conjunto. Assim, contribuiríamos, mais uma vez, para a pluralidade de ideias. Urgia, pois, criar um novo espaço democrático, retomar o perfil do MPLA original, reagrupar a gente sã que nele existia. O Mário queria a nossa opinião, queria saber se isso ainda tinha viabilidade, no novo contexto.

11. Aí estava novamente o Mário a convocar-nos, naquele que seria o seu derradeiro esforço. Traçámos projectos de intervenção. Parecia que, por dentro daquele corpo frágil, reemergia o espírito do leão. Por isso, senti uma tremenda comoção por vê-lo ali, firme, determinado, entusiasta, depois de ter feito tudo o que fez na vida… Ainda com vontade de retomar o percurso da nossa terra.

12. Voltámos à Buchholz para nos despedirmos das suas amigas. Seguimos, então, em busca de uma farmácia, porque o Mário sentia-se ligeiramente apoquentado. Era, aparentemente, um simples mal-estar que, disse-nos, estar a sentir desde que regressara de uma recente viagem de pesquisa nos Estados Unidos, onde estivera a investigar, para fundamentar os seus próximos trabalhos. Que o Embaixador de Angola, Manuel Pedro Pacavira, o convidara a almoçar em sua casa. Que, depois desse almoço, nunca mais se sentira bem. Era aquele mal-estar persistente… Que comprara também um computador portátil, pequeno, barato, mas muito prático, etc. Estávamos, pois, a caminho da farmácia, ali próximo, na subida da Bramcamp. Nós os três: eu, o Mário, o Vicente. Duas gerações separadas por cerca de 20 anos. Mas duas gerações unidas na causa. Para além do sangue…

13. Ainda tivemos um pouco de tempo para dar uma saltada até à Feira do Livro de Lisboa, no Parque Eduardo VII. Depois, o último adeus ao Mário. Até hoje…

14. Passados dias, o seu estado de saúde agravou-se. Foi hospitalizado no Egas Moniz, em Lisboa. Posteriormente, transferido para um hospital de Londres. E aí faleceu, dois ou três dias antes de fazer 62 anos de idade. Tudo isso aconteceu em Agosto de 1990. Para mim, este último encontro deu mais simbolismo à Livraria Buchholz.

15. Foi na Buchholz também que tomei conhecimento da vontade do Presidente da República, Eduardo dos Santos, de dotar o seu gabinete de livros de economia, penso que para servir de material de consulta para os seus assessores e colaboradores. Foi um seu assessor na época, meu ex-aluno na Universidade, que foi à Buchholz comprar livros, por especial recomendação de Eduardo dos Santos, segundo me disse. Fiquei satisfeito. Era bom que assessores de Eduardo dos Santos tivessem um mais fácil acesso aos livros, para melhor o ajudarem no entendimento da complexidade da matéria económica. Eis, pois, mais outro motivo para o simbolismo da Buchholz.

16. Priorizei sempre essa Livraria para me municiar de livros. Foi também lá que, de uma assentada, comprei os primeiros 15 livros de Direito para a minha filha Katila, quando ela ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Fiz-lhe, então, a recomendação de que deveria constituir a sua própria biblioteca. Que deveria cuidar dela, como se de um filho se tratasse. Ela ouviu-me e assim faz.

17. Para mim, a Livraria Buchholz é memória. Ela deixa saudades, marca um pouco o meu percurso intelectual e científico, tal como a Lello, o Centro do Livro Brasileiro, a Biblioteca da Câmara de Luanda.

18. A Buchholz não resistiu às incidências da crise mundial que abalou muitos bolsos e descomandou muitas contas. Por isso, ela faliu. No confronto inevitável entre as receitas e os encargos, perderam as receitas, e sobressaíram os encargos. Muitos clientes deixaram de poder honrar os seus compromissos. Desaparece, assim, a Buchholz, deixando uma fila enorme de credores e uma dívida de 1,3 milhões de euros.

19. Foi esse, pois, o destino de um dos emblemas da Lisboa Científica e Cultural, uma marca que ajudou a formar gerações. Não só gerações de portugueses mas, igualmente, gerações de angolanos e, seguramente, de outras nacionalidades.

20. Quando eu regressar a Lisboa, vou sentir a sua falta. Sei que o seu espaço vai continuar a ser uma Livraria da Coimbra Editora. Se mantiver o velho perfil, terei apenas que me habituar à sua nova denominação. Se não, terei que “emigrar” para um outro espaço da cidade, em busca do conforto espiritual que a Buchholz me transmitia.

21. Seguramente, daqui a muitos anos, talvez ela já não seja lembrada com este sentimento de perda. Afinal, a minha geração, e também as outras gerações passarão, tal como passou a geração do Mário Pinto de Andrade.