quarta-feira, 22 de agosto de 2012

CONSEQUÊNCIAS IMEDIATAS DAS SECAS


  1. Há dias, escrevi um artigo, para uma revista, baseado num tema similar a este, debruçando-me, essencialmente, sobre a questão da seca que devasta muitas plantações de cereais no Centro-Oeste dos EUA. Quis, pois, alertar para as repercussões internacionais dessa seca, dado que os EUA são os maiores produtores mundiais de cereais, e que alguns desses cereais têm uma participação muito importante em diversos ramos económicos. Volto agora, neste texto, ao fenómeno da seca, mas centrando-me na Rússia, um dos maiores produtores mundiais de trigo.



  1. Para um não economista e, sobretudo, para quem não tenha sensibilidade para as questões agro-pecuárias, uma notícia sobre a ocorrência de altas temperaturas num dado país (ou numa região do mundo), talvez não diga nada. Poderá mesmo parecer um quadro simpático, o ambiente mais apropriado para o veraneio, para o gozo de uns bons dias de férias. Porém, para um economista como eu, que até possuo alguma sensibilidade para o mundo da agro-pecuária, o excesso de calor acrescido a uma redução muito acentuada no nível das chuvas, faz disparar todas as sirenes que se alojam no meu cérebro.



  1. À semelhança do território do Centro-Oeste dos EUA, alguns países europeus e, particularmente, a Rússia, estão a viver um período de profunda estiagem. E, como é típico destas ocasiões, surgem as sempre incómodas pragas de gafanhotos que são capazes de, num ápice, arrasar as plantações.



  1. Ao ler a notícia sobre as pragas de gafanhotos que assolam as plantações do sul da Rússia, recordei-me de uma praga de gafanhotos que vi arrasar o pouco do verde que se havia formado à volta do Tarrafal, depois de, por alguns dias, terem caído do céu algumas gotas de água. O Arquipélago de Cabo Verde conhecia, então, uma das maiores, das mais prolongadas e das mais devastadoras secas da sua história.



  1. Pouco mais de vinte anos antes, Cabo Verde sofrera também uma seca bastante severa que causou milhares de mortos e que promoveu um dos seus maiores êxodos populacionais com destinos variados, entre os quais São Tomé e Príncipe e Angola. Muitos dos cabo-verdianos, ou seus descendentes que vivem em Angola são precisamente um fruto desse êxodo. Foi, porém, o final da seca de década de 1940 que, certamente, inspirou o lindo poema de Amílcar Cabral, “Regresso”, que aqui reproduzo na íntegra:





Mamãe Velha, venha ouvir comigo

O bater da chuva lá no seu portão.

É um bater amigo

Que vibra dentro do meu coração



A chuva amiga, Mamãe Velha, a chuva

Que há tanto tempo não batia assim…

Ouvi dizer que a Cidade Velha

- a ilha toda –

  Em poucos dias já virou jardim…



Dizem que o campo se cobriu de verde

Da cor mais bela porque é a cor da esp’rança

   Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde

- É a tempestade que virou bonança…



Venha comigo, Mamãe Velha, venha

Recobre a força e chegue-se ao portão

 A chuva amiga já falou mantenha

        E bater dentro do meu coração!



  1. Mas, voltemos à Rússia. A área do seu territótio mais afectada pela seca é agora, nem mais nem menos, que a província de Ulianosvsk, situada no centro da parte europeia da Rússia, a terra onde nasceu Vladimir Ilitch Ulianov (Lenine), o pai da Revolução Bolchevique.



  1. Segundo se diz, a actual estiagem na Rússia já terá prejudicado a safra de trigo em cerca de 23%, se comparada com a safra do ano anterior, tendo, por isso, feito disparar os preços. Esta estiagem, associada a dos EUA e de outros países europeus, provocou uma forte redução nos stocks, quer do milho, quer do trigo.



  1. É evidente que tal fenómeno irá ter profundas implicações ao nível mundial, ao ponto de outros países produtores e exportadores de cereais estarem a aproveitar a má colheita nos EUA, na Rússia e em outros países da União Europeia, para aumentarem os preços destes bens e dos bens que com eles se articulam como, por exemplo, as carnes.



  1. Com as frequentes repetições de períodos de carestia de bens alimentares, não hesito em recordar aqui a teoria do economista inglês Thomas Malthus, para quem o Mundo atingiria um ponto de rotura entre o crescimento populacional e o crescimento das subsistências, em especial, dos alimentos.



  1. Para Thomas Malthus, haveria também uma relação directa entre a fecundidade e o rendimento das famílias. Dizia ele que, se a pobreza fosse reduzida, as pessoas teriam mais filhos, e o crescimento dos meios de subsistência não poderia acompanhar o aumento da população. Qual então a via para controlar o crescimento da população? Aumentar as taxas de mortalidade, seja pela miséria, seja pelas epidemias, seja ainda pelas guerras.



  1. Malthus nunca aprovou o expediente da redução da taxa de fecundidade, pois isso, dizia ele, implicaria o recurso aos contraceptivos e ao aborto seguro. Esse pastor anglicano opunha-se ao uso desses recursos, porque os casais deviam procriar seguindo o princípio bíblico do “crescei e multiplicai-vos”.



  1.  Mas, Thomas Malthus foi contrariado pela tecnologia que promoveu um aumento extraordinário dos meios de subsistência. Foi, também, contrariado pela aplicação de outros métodos de controlo do crescimento populacional: ou pelo controlo autoritário da natalidade – como sucede, por exemplo, na China, que impõe que um casal possa apenas ter um filho – ou ainda por uma via mais democrática – que se socorre de estímulos ao controlo da natalidade.



  1.  A carência de alimentos e alta dos seus preços são problemas sérios para a maioria dos países. Podem mesmo estimular convulsões sociais, como tem sucedido um pouco por todo o lado. Mas a carência de alimentos e a alta dos seus preços, de forma alguma são a razão profunda de ser das revoluções que actualmente se espalham, por exemplo, pelo mundo árabe, como alguns analistas querem fazer crer. Elas funcionam tão-somente como o fósforo que incendeia toda a floresta. O problema não está, pois, no fósforo. Temos, sim, que ver qual o estado da floresta… Em suma: A razão de ser dessas revoluções está na lógica dos seus regimes, que são, claramente, ditaduras.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

“QUANDO A AMÉRICA ESPIRRA O MUNDO APANHA GRIPE”


  1. Estamos na eminência de ver confirmado o aforismo segundo o qual “quando a América espirra o mundo apanha gripe”. O seu exemplo mais recente foi o de finais de 2007 e início de 2008, altura em que as principais bolsas de valores em todo o mundo se ressentiram da crise do sector imobiliário norte-americano que contaminou os principais centros financeiros mundiais, desde Nova York a Londres, passando por Paris, Frankfurt, Tóquio, Hong Kong, etc. De imediato, e para fazerem face à crise que se estendia, as autoridades estadunidenses e os principais bancos centrais, um pouco por todo o mundo, impuseram medidas que conseguiram limitar os impactos da crise. Porém, os principais índices bolsistas assinalaram perdas substanciais, afectando diversos sectores económicos.

  1. A economia mundial passou, assim, a viver uma das suas maiores odisseias, tanto do lado da procura como do lado da oferta, ressentindo-se, por exemplo, nos preços da energia (com o petróleo a baixar para patamares alarmantes), assim como nos preços dos bens alimentares, que atingiram valores proibitivos.

  1. As notícias que agora fazem manchete na mídia internacional reflectem o receio de um aumento nos preços de determinados produtos ao nível mundial, fruto da seca que varre diversos estados do Centro-Oeste dos Estados Unidos da América, e que já afecta cerca de 60% do território.

  1. Os produtos agrícolas que estão a ser mais atingidos pela estiagem norte-americana são o milho, a soja e o trigo que, por reflexo, vão deixando também as suas impressões digitais sobre as carnes e outros produtos. A persistir, a seca que assola os EUA poderá tornar-se a maior da sua história. Os EUA são o maior produtor mundial de grãos e responsável por 40% das “commodities” negociadas nos mercados de futuros.

  1. Por enquanto, ainda se fala numa descida dos preços da carne bovina no mercado interno norte-americano, mas que resulta do facto de os criadores de bovinos se estarem a desfazer dos seus rebanhos, por causa da subida do preço das rações, muito dependentes do milho e da soja. Porém, já para o próximo ano, com a redução da oferta de carne de bovino, assistir-se-á a uma subida dos seus preços. Pelo contrário, será ainda neste ano de 2012 que subirá o preço da carne de frango, de suínos, das gorduras e dos óleos.

  1. Fruto da crescente globalização das economias, a situação agrícola nos EUA levou ao agravamento, por exemplo, dos preços da soja nos mercados internacionais, uma “commodity” negociada em várias bolsas, com especial destaque para a Bolsa de Chicago.

  1. O impacto na economia mundial de um aumento do preço do milho pode se fazer sentir num conjunto muito vasto de produtos, de que serve como matéria-prima, tais como produtos de mercearia, etanol, ração para o gado, tintas, penicilina e outros medicamentos, pasta para os dentes, cosméticos, até mesmo na produção de alumínio. Terá, assim, um impacto no nível geral de inflação, baixará o poder de compra dos salários, dinamizará o movimento grevista, podendo desencadear pressões sociais de valor incalculável.

  1. Fala-se já na stocagem precipitada de grãos por parte de alguns países, com receio de que uma eventual carência possa fazer despoletar tensões sociais escondidas.

  1. Com a seca nos EUA, os preços de muitas outras “commodities” subirá, gerando ganhos aparentes para alguns países. Paralelamente, assistir-se-á à volatilidade desses mercados que serão objecto de fortes acções especulativas.

É mesmo caso para dizer que embora a procissão ainda vá no adro, fica por demais evidente que este “resfriado” dos EUA vai pela certa desencadear uma “epidemia de gripe” ao nível global. 

COMPORTAMENTOS ATÍPICOS


  1. Na segunda metade da campanha para as eleições gerais de 31 de Agosto, já há alguma matéria para analisar. Hoje, debruçar-me-ei sobre duas que eu acho interessantes. Para o tempo que nos resta até ao fim, sobrarão, seguramente, outras.

  1. Baseadas na Constituição aprovada em 2010, estas eleições gerais são, realmente, muito atípicas, uma vez que permitem a escolha do Presidente da República – e, por extensão, do Vice-presidente – juntamente com os deputados ao Parlamento. Um tal esquema, pouco usual de eleição, permitiu a opção por um modelo de tempo de antena que subalterniza a figura dos futuros deputados, a quem não se dá espaço algum, ou quase nenhum.

  1. Por não estar dissociada a eleição de uns e de outros – do Presidente e dos deputados – os tempos de antena são dominados pelas imagens do candidato a Presidente, ficando os candidatos a futuros deputados quase sem trabalho: vão apanhando boleia na “viatura” do Presidente. Isto sucede em todas as candidaturas.

  1. Todos os partidos políticos nem se dão ao incómodo de expor ao público a fotografia do seu candidato a Vice-presidente. Também não se lhes vê o rosto nos tempos de antena. Eles e os deputados. Dá até vontade de dizer que “lutam na clandestinidade”.

  1. Quero então dizer que, nestes termos, quem figura em segundo lugar numa eventual lista vencedora será, no final de contas, o maior “maguelador” da corrida eleitoral, uma vez que até tem a possibilidade de vir a ser Presidente da República sem que para isso se tenha batido verdadeiramente. Mas, o quê que isso significa? Significa tão-somente que poderemos ter “em mãos” alguém que não foi suficientemente avaliado. Recordo que, para o imaginário público é, sobretudo, o perfil do candidato a Presidente que está a ser questionado. A figura do Vice, por força da quase exclusiva visibilidade do primeiro, está ser relegada para segundo plano.

  1. Em eleições presidenciais típicas, a dupla Presidente/Vice-presidente é demasiado importante, o que fica bem espelhado nas eleições norte-americanas. Por exemplo, o ex-candidato presidencial pelo Partido Republicano, John Mc Cain, uma figura fisicamente debilitada face à pujança do candidato do Partido Democrático – Barack Obama – optou por cobrir o seu aparente défice com a escolha de uma mulher para o secundar, como candidata a Vice. E o candidato presidencial democrata, o relativamente jovem Barack Obama, escolheu um senador de idade mais madura e de larga experiência política para o secundar como candidato a Vice, dando, assim, uma maior confiança ao eleitorado.

  1. A estratégia republicana, baseada no género – ou seja, um homem e uma mulher, no pressuposto de chamar para si a adesão dos dois lados do ser humano – falhou, entre outras razões, porque a mulher escolhida para secundar o Presidente, e substitui-lo em caso de necessidade, mostrou-se bastante desastrada, tendo feito intervenções públicas que lançaram sérias dúvidas sobre a sua real capacidade para dirigir o destino do país.

  1. Por sua vez, a estratégia democrata de compensar a juventude do candidato a Presidente com a experiência do candidato a Vice mostrou ser mais consistente, relegando para plano secundário a ideia do equilíbrio no género.

  1. Quer, então, dizer que ser candidato a Vice-presidente não é algo de somenos importância, sobretudo se o Vice tiver constitucionalmente possibilidade de se tornar Presidente, sem que se realize imediatamente nova eleição. Foi o que sucedeu com a substituição do Presidente John Kennedy por Lindon Jonhson, por morte do primeiro. Viu-se também agora no Ghana e no Malawi, onde os Vice substituíram os Presidentes, por morte destes.

  1. Na realidade, se houve quem tivesse alimentado a ilusão de estarmos num processo eleitoral verdadeiramente típico, enganou-se. Tem agora suficientes razões para desfazer tal equívoco. E não precisará de rebuscar muito na memória, dado que, diariamente, saltam-nos à vista comportamentos e atitudes no mínimo ilustrativos do modo desequilibrado como são tratados publicamente os diversos intervenientes no processo eleitoral. Estamos, sim, perante mais uma “atipicidade” do nosso processo político eleitoral.

  1. Refiro-me concretamente à gritante parcialidade como um órgão público da comunicação social utiliza as suas páginas para zurzir sobre as costas dos principais contendores que estão na oposição, e o modo como “leva ao colo” o partido da situação. Em relação a partido da situação, tal órgão de comunicação social nunca poupa espaço para se desfazer em encómios. Inclusive, trata matérias menores (e sem qualquer relevância especial) como se fossem factos marcantes na história do nosso povo.

  1. Na análise dos tempos de antena e dos actos públicos de determinados partidos (e coligações) na oposição, ele chega a cair no insulto reles, no destrato, deturpando, por vezes, as ideias que são apresentadas. Pelo modo raivoso como vergasta algumas oposições, fazendo-me lembrar o tempo colonial, quando os administradores de posto instruíam os seus cipaios para surrarem – até fazer sangue – os “rebeldes” que se negassem a pagar o “imposto indígena” ou quem desobedecesse às suas iníquas ordens coloniais.

  1.  Não sou dos que, eventualmente, pensam que se deva deixar passar em branco os erros cometidos por responsáveis de partidos da oposição, ou que se deva fazer do partido no poder o “saco” onde todos os boxeiros devem exercitar os seus bíceps, criando a ideia de que ele é fonte única de todos os nossos males, o culpado de todas as nossas desgraças. Tenho, porém, a convicção de que, num quadro como o actual (em que se repete até à exaustão a necessidade de se exercer a escolha de um modo consciente), compete principalmente aos órgãos públicos de comunicação social guardarem suficiente serenidade, funcionando como espaços, de facto, ao serviço da comunidade e não como órgãos virtualmente criados e pagos por um qualquer partido político.

  1. Quando aos órgãos de comunicação social privados, o máximo que se lhes pode pedir é que façam o possível para preservarem uma conduta civilizada. Que sejam eles também contribuintes para a criação e/ou a manutenção da paz social. Não se lhes pode exigir total imparcialidade, já porque são propriedade privada, obedecendo, no essencial, ao interesse dos seus proprietários. Que pugnem por um comportamento de razoável equilíbrio, pois o interesse pessoal de um qualquer empresário (ou grupo de empresários) nunca pode ser superior ao interesse do conjunto da nação.

A RAÇA NOS JOGOS OLÍMPICOS


  1. Há poucos anos, mais concretamente em 2008, um professor brasileiro chegado recentemente a Angola, manifestou junto de mim a sua enorme estupefacção pelo facto de os negros em Angola beberem regularmente água, como o fazem os brancos. Coube-me, pois, o direito de me surpreender, dado que nunca tinha imaginado alguém a associar o consumo de água a um qualquer grupo racial. Devo dizer-vos que o professor brasileiro era negro.

  1. Passados os poucos segundos que reservei para alguma reflexão, resolvi pedi que ele me explicasse o porquê (ou os porquês) da sua surpresa. Mas, antes de o deixar falar, tomei a dianteira, para lhe dizer que, para mim, o acto de beber água, quer para os negros, quer para os brancos, não passava de dar satisfação a uma normal necessidade fisiológica.

  1. A justificação que ele, então, me deu foi, no mínimo, caricata: i) um afro-descendente não precisava de beber água, devido às suas características fisiológicas que ele achava serem distintas nos afro-descendentes e nos brancos; ii) Como era a primeira vez que ele pisava solo africano, tivera então a possibilidade de verificar que havia diferença de comportamento entre os afro-descendentes e os negros africanos; iii) e que tudo isso sucedia porque os afro-descendentes provinham dos negros que haviam sido levados, no tráfico negreiro, entre a África e o continente americano. Por isso, eram os mais fortes, eram os que se mostraram mais resistentes às adversidades desse tráfico.

  1. E passou a descrever a sua tese. Segundo ele, no decurso do transporte dos escravos saídos de África e idos para o então chamado Novo Mundo (incluindo, portanto, o Brasil), em várias ocasiões, no alto mar, faltaram mantimentos dentro das embarcações, ficando nas mãos dos chefes das embarcações a possibilidade de tomarem decisões sobre como reduzir o efectivo de pessoas a bordo: i) a primeira opção era, naturalmente, lançar para o mar os mais frágeis e os doentes (os que, teoricamente, teriam menos probabilidades de sobreviver); ii) caso prosseguisse a penúria de mantimentos, a repartição do pouco que houvesse era feita de um modo desigual: privilegiavam-se os tripulantes brancos, deixando para os negros o pouco que restasse; iii) em situação de extrema carência, a opção era parar de fornecer água e outros mantimentos aos poucos negros que ainda estivessem nos navios.

  1. Os negros sobreviventes de uma tão longa e tão penosa caminhada eram, sem sombra de dúvidas, os mais fortes, os mais saudáveis, os que possuíam extraordinárias capacitados para consentir sacrifícios. Após um último processo de selecção, já em terra, eram então escolhidos os que iam trabalhar, e trabalhar duro, nas plantações de algodão, de cana-de-açúcar ou, talvez, nas minas.

  1. Terão sido esses povos negros que deram origem a actual diáspora negra no Novo Mundo: os afro-americanos, os afro-caribenhos, os afro-latino-americanos, os afro-canadenses. Seriam, pois, na opinião do académico brasileiro, portadores de uma herança genética bastante rica. Eram, geralmente, gente pujante, gente resistente.

  1. Eu não tenho dúvidas de que sobreviveram os mais fortes. Não tenho também dúvidas que o tráfico negreiro provocou uma sangria de homens e mulheres africanos que começaram por morrer no processo da apanha do escravo; na sua caminhada para a costa; no seu acantonamento na costa até à chegada das embarcações que os levariam; durante a travessia do Oceano Atlântico; na caminhada já dentro do continente americano; depois, finalmente, nas plantações.

  1. Mas, segundo também sei, os negros africanos foram transportados para variadas partes do mundo. Diz-se que, entre 1500 e 1900, foram cerca de 4 milhões os negros escravizados transportados para as ilhas no Oceano Índico; cerca de 8 milhões os enviados para os países da área mediterrânica; aproximadamente 11 milhões os que sobreviveram a travessia até ao Novo Mundo. Em 4 séculos de tráfico negreiro, a África foi subtraída e perto de 100 milhões de homens e mulheres e, grande parte deles, morreu antes de chegar ao destino. Um desses destinos foi, naturalmente, o Brasil.

  1. Embora fosse relativamente baixo e pouco corpulento, o professor brasileiro dizia-se descendente desses negros africanos que sobreviveram às piores peripécias e aos mais dramáticos episódios.
  2. A teoria que ele me apresentou é engenhosa mas… esquisita. E ainda acrescentou mais um quesito à sua teoria: em média, a compleição física dos negros norte-americanos é maior, se os compararmos aos negros africanos. Respondi-lhe, dizendo que vi em países da África Ocidental por onde passei, verdadeiros gigantes, quer homens, quer mulheres negros: “autênticas torres” e “autênticos armários”. E ele contra atacou, com a afirmação de que, mesmo assim, os afro-descendentes são, geralmente, os maiores praticantes do boxe, os velocistas mais rápidos, os grandes saltadores de barreiras, os basquetebolistas mais dotados, etc.

  1. É verdade que, nos últimos anos, durante os torneios olímpicos, se assiste a uma preponderância dos afro-descendentes em determinadas modalidades desportivas: os norte-americanos, os jamaicanos, os afro-descendentes das Bahamas, de Trinidad e Tobaco, todos da diáspora negra americana. Não é possível ficar indiferente ao seu brilho, à extraordinária performance desses atletas. Mas, não será que esses campeões beneficiam do facto de viverem em países com melhores condições de saúde, de alimentação e até mesmo de treinamento? Seria bom analisar-se as condições gerais de vida nos países citados.


  1. Como explicar, a seguir, o facto de os negros africanos com origem no Quénia, na Etiópia, na Somália ou no Uganda apresentarem um potencial reconhecido para as provas de atletismo de fundo e meio-fundo? E porquê ainda que os seus rivais são geralmente marroquinos e argelinos? Como, então, explicar este último fenómeno, se eles não são descendentes dos escravos que cruzaram o Oceano Atlântico?

  1. A teoria defendida pelo professor brasileiro cai logo por terra, se nos lembrarmos que os competidores dos afro-descendentes do continente americano nos torneios olímpicos são, muitos deles, também afro-descendentes, mas de nacionalidade francesa, britânica e até mesmo de outros países europeus. Que eu saiba, estes afro-descendentes não são filhos dos escravos transportados nos navios negreiros.

  1. Será, mesmo assim, justo dizer que existe uma maior propensão de determinados grupos raciais para certas disciplinas desportivas? É que já vemos hoje, e cada vez mais, negros, brancos, chineses, japoneses e australianos a disputarem medalhas olímpicas em modalidades como salto em altura ou salto com vara, lançamento de peso e de dardo, salto em comprimento, etc. Este resultado aconselha-nos, pois, a ir à busca de outras explicações, talvez mais lógicas e consistentes.

  1. Justificar um fenómeno social, como o desporto, a partir da raça pode conduzir-nos a caminhos ínvios, ou até mesmo, fazer-nos desaguar no racismo.

  1. A ciência admite diferenças físicas mínimas entre os seres humanos, fruto, talvez, do processo de adaptação ao meio. O mesmo sucede no restante meio animal e até no vegetal. Mas isso não permite o estabelecimento de escalões, indo ao ponto de se definir superioridades ou inferioridades em função da raça.

  1. Ao longo da História, houve mesmo quem tenha usado as diferenças biológicas para justificar certas práticas discriminatórias. Houve até quem tenha colocado questões como o carácter e a inteligência para justificar uma hierarquização entre os seres humanos. São exemplo a escravidão e até mesmo certos genocídios. Recordo que foi o racismo contra os negros e os índios que justificou a escravidão dos primeiros e o confinamento dos segundos em reservas nas Américas. Serviu, igualmente, para sustentar as teses do Apartheid na África do Sul.

  1. A análise dos fenómenos sociais a partir das raças pode conduzir a um certo darwinismo social. O ensaio do Conde de Gobineau sobre a desigualdade das raças humanas, ou os escritos do inglês Houston S. Chamberlain, ou ainda as teses de Alfred Rosemberg serviram de muleta ao nazismo, com base na ideia da superioridade da raça ariana, identificada com o povo alemão.

  1. Como reacção à abolição da escravatura, nos EUA, o Ku Klux Klan usou a teoria da superioridade branca para justificar os seus assassinatos. A ideia da raça desenvolveu-se também em grupos negros na América, apelando a uma suposta supremacia da raça negra, como o fizeram os mentores do movimento “Black Power” e a “Nação do Islão”.

  1. Por isso, sou levado a concluir que a raça apenas serve pouco, ou mesmo até não serve nada, para justificar determinados fenómenos sociais. Para esses, há, pois, que encontrar teorias mais consistentes.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O “CAMARADA VOSTOK”


  1. Vista do espaço, a Terra assume uma muito bonita cor azul, como constatou, há 51 anos, o cosmonauta soviético Yuri Gagarin, o primeiro ser humano a orbitar no espaço. Ele tripulava a nave espacial Vostok I, dando, pois, início à corrida espacial entre a União Soviética e os Estados Unidos da América. Era a época da Guerra-Fria e cada um destes dois países não poupava esforços para se superiorizar ao outro. O Vostok tem, pois, um enorme significado para o mundo inteiro, que o associa sempre, e de um modo indelével, ao nome de Yuri Gagarin.

  1. Para mim, Vostok também tem um outro significado, faz-me regressar a uma etapa do meu percurso de vida, quando o destino me colocou no ponto de cruzamento com um homem, aparentemente simples, mas que, afinal, se revelou como um dos mais eficazes agentes da PIDE, a polícia política portuguesa. Chamava-se Sidónio mas, para mim e para outros elementos da luta clandestina, era o Vostok que, traduzido do russo, significa Planeta. Morava na Vila Alice e mantinha um negócio na vila de Catete. Fazia com certa regularidade o percurso Luanda – Catete, o que lhe permita conhecer gente ligada à clandestinidade articulada com a guerrilha instalada na Primeira Região Político-Militar do MPLA.

  1. Aparentemente, o Vostok (Sidónio) cumpria correctamente o mandato que recebia dos revolucionários, quer dos que estavam nas matas, quer dos que estavam na cidade. Levava de um lado para o outro os “materiais” que lhe eram entregues. Conseguiu, assim, transformar-se no nosso principal “pombo-correio”.

  1. O Juca Valentim, meu companheiro de luta (prematuramente desaparecido), líder do CRL (Comité Regional de Luanda do MPLA), acreditava piamente no estafeta, vendo nele um fiel servidor da nossa causa revolucionária. O Planeta (Vostok) fazia tudo para manter essa aparência. Chegava mesmo a pedir que arranjássemos mais “material” para ele levar em socorro dos combatentes que mantinham a chama da luta armada nas matas na Primeira Região. Para o Juca Valentim ele era homem de inteira confiança do lendário Comandante Ingo, o meu querido amigo Benigno Vieira Lopes. Pôr em causa esse homem que ligava directamente ao Ingo era duvidar da própria causa – o era imperdoável, para o Juca.

  1. O Planeta gravitou durante muito tempo em torno de alguns de nós. Também funcionava como “pombo-correio” do meu primo Mário Guerra, outro activista da luta clandestina com múltiplas articulações. O Mário Guerra morreu há pouco mais de um ano. Felizmente, ainda tivemos a possibilidade de conversar e recordar, com alguma angústia, as peripécias do famoso “pombo-correio”, o Vostok.

  1. Estafeta “seguro”, o Vostok tinha um estatuto especial: apenas se relacionava com os chefes, e mesmo aqui, com um número muito restrito, para garantir a confidencialidade que a luta clandestina exigia.

  1. Ao nível do CRL, éramos em número bastante reduzido os que sabíamos da existência do “pombo-correio”. Os membros da células, certamente que desconfiavam que possuíamos um elo de contacto bastante eficaz, dado que o “material” saía e, aparentemente, chegava inteiro e completo ao seu destino: às matas, aos nossos heróicos guerrilheiros. Foi assim durante anos. Eu acredito que o Vostok cumpria, pelo menos em parte, as missões de que era incumbido, quer num sentido, quer no outro. No seu vai-e-vem entre a cidade e o campo.

  1. O Vostok trazia mensagens supostamente provenientes dos nossos camaradas, relatando as dificuldades e os feitos da luta, a precariedade dos meios em posse dos guerrilheiros, as difíceis condições de vida destes e das populações em seu redor. Falava dos quartéis “Brno” e “Europa”, símbolos da resistência na Primeira Região. Os seus relatos emocionavam-nos e alimentavam a nossa determinação de prosseguirmos nessa senda, até à vitória final! Dizia que o Comandante Ingo já fazia algumas incursões próximo da Luanda. Que, disfarçadamente, outros combatentes penetravam no perímetro urbano, pondo em cheque a malha de segurança das forças armadas portuguesas e da PIDE. Enfim, no meio das notícias sobre dificuldades e sofrimentos, as aventuras relatadas pelo Vostok enchiam de orgulho e de esperança qualquer revolucionário.

  1. A luta clandestina e a luta armada alimentaram-se de sonhos, de esperanças, mas, também, de dor e sofrimento. Sobretudo, daquele sofrimento que não se traduz em desânimo e, sim, na convicção de a nossa causa ser justa. Se alguém caísse pela causa, a saía causa ainda mais fortalecida. Era assim a nossa alma.

  1. O Vostok trazia e levava “coisas”. Um dia o meu saudoso companheiro Juca Valentim apareceu, naquele seu estilo revolucionário, com “material” vindo da mata… Entre outras coisas, trazia a Acta do julgamento e da execução do Miro, nas matas da Primeira Região.

  1. O Miro, o Casimiro de Almeida, responsável pelo sector da educação fora julgado por traição à causa revolucionária. Já não me recordo dos pormenores, mas, entre outras razões, “por falta de respeito para com o povo”. Supostamente, também, “por querer manter contacto com os portugueses”. Creio que era disto que o acusavam. O Miro tinha sido estudante universitário na Europa (era estudante de Economia) e respondera ao apelo do Presidente Neto de abandonar “o comodismo da Europa” para vir lutar ao lado do povo. Veio, abandonou tudo.

  1. Dizia-se que o Miro era culto e com boa formação política. Tinha tido cargos de responsabilidade na Juventude do Movimento. Era, por isso, elemento de referência, mesmo para nós, jovens do “Interior” (Era assim que se designavam os militantes da luta clandestina).

  1. Desconfiei da qualidade das acusações feitas ao Miro. Fiquei também bastante chocado com o seu fim, com o modo como foi fuzilado. Estava tudo relatado na Acta que o Vostok trouxe para nós.

  1. Interroguei-me sobre o porquê de os nossos camaradas nos terem mandado aquela Acta. E para quê? Para nos informarem apenas, estreitando desse modo a nossa relação?

  1. Coloquei a questão ao Juca e ao Vicente. Não seria a PIDE a ter entregue a Acta ao Vostok, para ele ficar junto de nós a imagem de um estafeta de confiança, ao ponto de lhe entregarem a prova desse acto? O quê que o “Interior” ganhava ao tomar conhecimento do seu fuzilamento e das razões que o determinaram?

  1. Disse ao meu companheiro Juca Valentim: “Lamento dizer-te, Juca, mas desconfio que o Vostok também trabalha para a PIDE! Ele está a fazer o papel de agente duplo! Não sei apenas para qual dos lados ele é mais sincero…”. O Juca e o Vicente ouviram-me, atentos. O Juca abalou, vi no seu olhar, mas portou-se como um chefe: não respondeu.

  1. A partir daquele momento, tomei consciência de que a PIDE já nos tinha tomado por dentro. A PIDE tinha entrado profundamente nas nossas hostes. Estávamos “fritos”. Era só uma questão de tempo... E foi assim, de facto.

  1. Passados tempos, o Juca disse-me que tínhamos uma missão de alto risco a cumprir: que nos íamos encontrar com guerrilheiros, entre os quais o Comandante Ingo, numa localidade depois de Catete, em local secreto. De quem viera a instrução? O Juca respondeu-me que o Vostok trouxera a missão do próprio Comandante. Que iríamos os três, Juca, eu e Vicente. A minha resposta foi: “Nem penses! É a PIDE que se quer desenvencilhar de nós. Querem decapitar o CRL, e apanhar o Comandante, que nem um pato…” O Juca disse-me para pensar bem, pois desobedecer a uma ordem revolucionário do Comandante, a uma chamada sua, era grave indisciplina revolucionária. E, por isso, pagava-se caro…”

  1. Passaram-se poucos anos e fomos realmente presos pela PIDE. Primeiro o Juca, depois o Vicente, o Vasco de Jesus, Chico Caetano, o Gilberto. Eu. E mais outros: Calhandro, Aldemiro, Jaime Cohen, Alberto Neto, Alcino Borges, Nado, André Mateus Neto, Augusto Bengue, Paiva Domingos da Silva, e muitos mais aqui em Angola. Para além de Lisboa: Garcia Neto, Rui Ramos, Joaquim Pinto de Andrade, Sabrosa, Diana Andringa, Raul Feio, Zefos. E mais. E mais. Caiu boa parte do CRL e a sua conexão de Portugal.

  1. E o Vostok? Será que o Vostok também estaria preso? Por que não, se ele era um dos principais “pombos-correio”? Ele que conhecia alguns dos contactos da organização…

  1. Poucos dias antes da minha prisão, o meu primo Mário Guerra abordou-me secretamente (num sítio ermo junto ao actual Hospital Américo Boavida), perguntando-me se eu tinha um estafeta, pois queria dar fuga a um companheiro nosso (operário da tipografia onde se fazia a revista Notícia) que entrara na clandestinidade. Ele precisava de ser posto “ao fresco” imediatamente. Disse-lhe que já não confiava há muito tempo no estafeta principal, no Vostok, e que, de imediato, não tinha outro em mão. Que talvez o Vicente tivesse algum outro, mas que nunca me tinha posto ao corrente. E o Vicente estava preso.

  1. Vou encurtar caminho. O Vostok continuou em liberdade… Fomos todos, ou quase todos para a “pildra”, para a cadeia, e depois deportados, uns para São Nicolau, outros para o Tarrafal. No Tarrafal constatei que muitos dos presos que lá encontrei e que tinham estado ligados à Primeira Região, tinham também eles conhecido e utilizado o Vostok como elo de contacto… Mais grave: além de terem sido presos em vagas sucessivas, todos conectados com o Planeta, ainda assim acreditavam que “O Camarada Vostok”, como eles diziam, era um grande revolucionário. Depois, vim a saber que o Vostok ainda continuou a fazer os seus estragos…

  1. O último estrago do Planeta – talvez o maior e mais cobarde – foi ter entregue às mãos da PIDE o Comandante Ingo, grande glória da nossa luta. O Heróico Comandante foi atraído a uma emboscada e entregue, praticamente de bandeja, à polícia política portuguesa. A notícia da sua prisão tocou no nosso cérebro como um terramoto – mesmo à distância.

  1. Escrevo este texto porque os americanos acabam de mandar uma nave altamente sofisticada ao Planeta Marte. A nave chama-se “Curiosity”. O que espicaçou a minha curiosidade.

  1. Mais de 40 anos depois, lembrei-me do “Camarada Vostok”, o gajo que nos entregou a todos. E se não tivesse chegado o 25 de Abril, que ele teria feito ainda mais? Talvez continuasse por mais tempo “a fazer das suas”, a entregar mais nacionalistas á PIDE. Esta é a minha “curiosity”.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

QUE SE RETIRE O BIOMBO POLÍTICO


  1. O líder do maior partido político da oposição, Isaías Samakuva, presidente da UNITA, e o presidente da CASA-CE, Abel Chivukuvuku, lançaram um repto ao presidente do MPLA e seu cabeça de lista às próximas eleições, José Eduardo dos Santos, para um debate, a fim de esgrimirem em público os seus argumentos para o pleito eleitoral do dia 31 de Agosto. Este convite transformou-se, assim, num facto político que passou a ser tema de análise para jornalistas e analistas políticos. Teve um tal impacto, ao ponto de fazer parecer que terá sido em Angola que foi feita a descoberta da roda…



  1. Na realidade, os debates públicos entre candidatos são uma prática normal em democracia. Infelizmente, para nós, democraticamente muito atrasados, um evento desse género funcionará como uma descoberta fenomenal. Merecerá, por parte de alguns, o soltar do célebre grito “Eureka!”, a velha expressão que é historicamente atribuída ao matemático grego Arquimedes de Siracusa (ainda antes de Cristo), quando ele, mergulhado numa banheira, constatou que o volume de qualquer corpo pode ser calculado medindo o volume da água movida quando o corpo é submergido nela.



  1. Para alguns, pelo que tenho constatado nas suas intervenções, desafiar José Eduardo dos Santos para um debate público equivalerá a uma espécie de “heresia”, devendo, por isso, os “hereges” serem levados a um qualquer “tribunal de inquisição”, pois que o “Chefe” não se contesta, muito menos se confronta. Dirão estes, então: “Afinal, o que é isso?! Onde é que estamos, então?!”



  1. Mas, vamos, por momentos, recordar um pouco da nossa história “democrática” dos últimos 20 anos.



  1. Das eleições de 1992, vêm-me muitas vezes à memória as entrevistas individuais feitas pela televisão a alguns dos candidatos de então. Que me lembre, apenas não foram entrevistados José Eduardo dos Santos, Jonas Savimbi e Holden Roberto.



  1. Em 1992, não tiveram propriamente lugar debates entre candidatos, como os que agora propõem Isaías Samakuva e Abel Chivukuvuku a José Eduardo dos Santos. Foi um “pivot” da televisão que se encarregou de questionar os candidatos, e abriu depois o espaço para os questionamentos vindos dos telespectadores.



  1. De um modo geral, os telespectadores que entraram em directo portaram-se com elevação e civismo. Porém, houve quem tivesse optado pela deselegância e pelo insulto, descarregando sobre alguns dos candidatos os seus preconceitos e as suas frustrações. Fica, pois, para a memória, essa tentativa de exercício democrático, mesmo com as limitações que apontei.



  1. Como foi algo de inédito, de um modo geral, os protagonistas mostraram uma razoável imaturidade, chegando, em alguns casos, a ser mesmo até risíveis. Penso que esses chamados “candidatos menores” apareceram, mais porque necessitavam de ter alguma visibilidade. Eles eram, como se viu, desconhecidos do grande público. Passaram-se 16 anos e, em 2008, nas segundas eleições, já com outros protagonistas, nem mesmo aquele “cheirinho democrático” se repetiu.



  1. É bom que se diga que as eleições de 2008 não foram presidenciais, tais como em 1992 (em que houve, simultaneamente, legislativas e presidenciais). Dos grandes protagonistas de 1992 restaram, como cabeças de lista dos seus partidos, apenas José Eduardo dos Santos, presidente do MPLA, e Anália de Vitória Pereira, do PLD. Rui de Vitória Pereira, Milton Kilandomoko, Holden Roberto, Jonas Savimbi, Mfulunpinga Landu Victor, deixaram de fazer parte da pauta eleitoral de 2008, porque já não faziam parte do mundo dos vivos.



  1. Não há, portanto, entre nós, uma cultura do debate político público entre candidatos. As entrevistas de 1992 a alguns candidatos podem considerar-se episódicas e não fizeram escola. O confronto directo entre candidatos jamais foi praticado aqui no nosso meio.



  1. O que temos visto, sim, desde há alguns anos atrás, é o debate público radiofónico (poucas vezes, televisivo), geralmente exercitado por quadros técnicos ou por quadros políticos de escalão mais ou menos intermédio. Hoje por hoje, por razões que a razão desconhece (será mesmo que desconhece?) até mesmo esse debate público vai sendo espartilhado. Tem se feito questão de deixar todo o espaço de intervenção pública a vozes de um só tom. Ou mais ou menos assim.



  1. Por norma, os grandes responsáveis políticos, os grandes decisores políticos escondem-se por detrás de verdadeiras redomas, ficando, assim, protegidos das críticas directas. Ficamos, pois, sem saber qual a sua real capacidade discursiva. De papel na mão, seguramente escrito por assessores, lá vão eles, então, aparecendo a debitar ideias e propostas, ao ponto até de se enganarem na pontuação.



  1. Também é verdade que os grandes decisores políticos jamais escrevem algum texto de opinião para um jornal ou um semanário, como é prática corrente nos países democráticos e entre políticos que não temem esconder as suas reais capacidades. Esse défice de exposição pública faz-nos parecer que somos governados por seres extraterrestres…



  1. As nossas campanhas eleitorais são, sim, uma farsa. Elas baseiam-se na apresentação de documentos, por norma encomendados a empresas especializadas e que se fazem pagar por muito dinheiro. O resto é, quando muito, charme pessoal e um grande desrespeito pela palavra dada, baseados no pressuposto de que a memória popular é demasiado curta, não ultrapassando geralmente os 6 meses. Por isso mesmo, nas nossas campanhas eleitorais fazem-se promessas mirabolantes, sabendo-se, antecipadamente, que não serão cumpridas.



  1. O respeito pela palavra dada não faz parte do nosso historial político, nem no período do partido único, nem neste período mais recente que eu ainda não consigo caracterizar bem. O recurso ao “ilusionismo político” é, pois, uma prática corrente.



  1. O confronto entre candidatos, em debate público, seria uma forma de vermos uns e outros a esgrimirem os seus argumentos e a mostrarem as suas reais capacidades. Deixariam, assim, de ter as suas capacidades disfarçadas por detrás de algum biombo… Por via dos debates públicos, em pé de igualdade, veríamos quem é quem, e quem, de facto, vive à custa das assessorias e das suas máquinas partidárias…



  1. Em democracia, é necessário conhecer-se bem quem pretende mandar em nós, para sabermos em que mãos nós estamos a entregar o nosso futuro. É que, por vezes, os protagonistas mais não passam de marionetas nas mãos de aparelhos partidários. Não poucas vezes até de máquinas perversas… Conhecem-se variados exemplos de verdadeiros grupos mafiosos que se escondem por detrás de instituições de aparência credível.



  1. Veja-se o modo como, nesta campanha eleitoral, se está a utilizar uma fotografia de há trinta anos para representar um candidato de agora. Clara manipulação de imagem que indicia, sobretudo, falta de escrúpulos. Isso não passa de uma espécie de “doping político”. Pretende-se, assim, emprestar uma imerecida vantagem de imagem a um determinado concorrente.



  1. Sou, claramente, pelo debate de ideias em público, entre aqueles que querem definir os destinos do nosso país e guiar as nossas vidas nos próximos cinco anos. Não compreendo, pois, como é possível alguém dizer-se democrata e, de seguida, escusar-se ao debate com aqueles com quem disputa o mesmo lugar.



  1.  Será, porém, um tremendo erro candidatos da oposição aceitarem debater entre si, deixando de fora quem tem o lugar em causa. Num debate apenas entre candidatos da oposição seriam apenas eles que se desgastariam. Já basta todas as demais vantagens. Dar-se ainda mais uma a quem já beneficia das outras todas, entre elas a de continuar resguardado por detrás de uma redoma, seria, penso eu, de uma ingenuidade imperdoável!

QUE SE RETIRE O BIOMBO POLÍTICO


  1. O líder do maior partido político da oposição, Isaías Samakuva, presidente da UNITA, e o presidente da CASA-CE, Abel Chivukuvuku, lançaram um repto ao presidente do MPLA e seu cabeça de lista às próximas eleições, José Eduardo dos Santos, para um debate, a fim de esgrimirem em público os seus argumentos para o pleito eleitoral do dia 31 de Agosto. Este convite transformou-se, assim, num facto político que passou a ser tema de análise para jornalistas e analistas políticos. Teve um tal impacto, ao ponto de fazer parecer que terá sido em Angola que foi feita a descoberta da roda…



  1. Na realidade, os debates públicos entre candidatos são uma prática normal em democracia. Infelizmente, para nós, democraticamente muito atrasados, um evento desse género funcionará como uma descoberta fenomenal. Merecerá, por parte de alguns, o soltar do célebre grito “Eureka!”, a velha expressão que é historicamente atribuída ao matemático grego Arquimedes de Siracusa (ainda antes de Cristo), quando ele, mergulhado numa banheira, constatou que o volume de qualquer corpo pode ser calculado medindo o volume da água movida quando o corpo é submergido nela.



  1. Para alguns, pelo que tenho constatado nas suas intervenções, desafiar José Eduardo dos Santos para um debate público equivalerá a uma espécie de “heresia”, devendo, por isso, os “hereges” serem levados a um qualquer “tribunal de inquisição”, pois que o “Chefe” não se contesta, muito menos se confronta. Dirão estes, então: “Afinal, o que é isso?! Onde é que estamos, então?!”



  1. Mas, vamos, por momentos, recordar um pouco da nossa história “democrática” dos últimos 20 anos.



  1. Das eleições de 1992, vêm-me muitas vezes à memória as entrevistas individuais feitas pela televisão a alguns dos candidatos de então. Que me lembre, apenas não foram entrevistados José Eduardo dos Santos, Jonas Savimbi e Holden Roberto.



  1. Em 1992, não tiveram propriamente lugar debates entre candidatos, como os que agora propõem Isaías Samakuva e Abel Chivukuvuku a José Eduardo dos Santos. Foi um “pivot” da televisão que se encarregou de questionar os candidatos, e abriu depois o espaço para os questionamentos vindos dos telespectadores.



  1. De um modo geral, os telespectadores que entraram em directo portaram-se com elevação e civismo. Porém, houve quem tivesse optado pela deselegância e pelo insulto, descarregando sobre alguns dos candidatos os seus preconceitos e as suas frustrações. Fica, pois, para a memória, essa tentativa de exercício democrático, mesmo com as limitações que apontei.



  1. Como foi algo de inédito, de um modo geral, os protagonistas mostraram uma razoável imaturidade, chegando, em alguns casos, a ser mesmo até risíveis. Penso que esses chamados “candidatos menores” apareceram, mais porque necessitavam de ter alguma visibilidade. Eles eram, como se viu, desconhecidos do grande público. Passaram-se 16 anos e, em 2008, nas segundas eleições, já com outros protagonistas, nem mesmo aquele “cheirinho democrático” se repetiu.



  1. É bom que se diga que as eleições de 2008 não foram presidenciais, tais como em 1992 (em que houve, simultaneamente, legislativas e presidenciais). Dos grandes protagonistas de 1992 restaram, como cabeças de lista dos seus partidos, apenas José Eduardo dos Santos, presidente do MPLA, e Anália de Vitória Pereira, do PLD. Rui de Vitória Pereira, Milton Kilandomoko, Holden Roberto, Jonas Savimbi, Mfulunpinga Landu Victor, deixaram de fazer parte da pauta eleitoral de 2008, porque já não faziam parte do mundo dos vivos.



  1. Não há, portanto, entre nós, uma cultura do debate político público entre candidatos. As entrevistas de 1992 a alguns candidatos podem considerar-se episódicas e não fizeram escola. O confronto directo entre candidatos jamais foi praticado aqui no nosso meio.



  1. O que temos visto, sim, desde há alguns anos atrás, é o debate público radiofónico (poucas vezes, televisivo), geralmente exercitado por quadros técnicos ou por quadros políticos de escalão mais ou menos intermédio. Hoje por hoje, por razões que a razão desconhece (será mesmo que desconhece?) até mesmo esse debate público vai sendo espartilhado. Tem se feito questão de deixar todo o espaço de intervenção pública a vozes de um só tom. Ou mais ou menos assim.



  1. Por norma, os grandes responsáveis políticos, os grandes decisores políticos escondem-se por detrás de verdadeiras redomas, ficando, assim, protegidos das críticas directas. Ficamos, pois, sem saber qual a sua real capacidade discursiva. De papel na mão, seguramente escrito por assessores, lá vão eles, então, aparecendo a debitar ideias e propostas, ao ponto até de se enganarem na pontuação.



  1. Também é verdade que os grandes decisores políticos jamais escrevem algum texto de opinião para um jornal ou um semanário, como é prática corrente nos países democráticos e entre políticos que não temem esconder as suas reais capacidades. Esse défice de exposição pública faz-nos parecer que somos governados por seres extraterrestres…



  1. As nossas campanhas eleitorais são, sim, uma farsa. Elas baseiam-se na apresentação de documentos, por norma encomendados a empresas especializadas e que se fazem pagar por muito dinheiro. O resto é, quando muito, charme pessoal e um grande desrespeito pela palavra dada, baseados no pressuposto de que a memória popular é demasiado curta, não ultrapassando geralmente os 6 meses. Por isso mesmo, nas nossas campanhas eleitorais fazem-se promessas mirabolantes, sabendo-se, antecipadamente, que não serão cumpridas.



  1. O respeito pela palavra dada não faz parte do nosso historial político, nem no período do partido único, nem neste período mais recente que eu ainda não consigo caracterizar bem. O recurso ao “ilusionismo político” é, pois, uma prática corrente.



  1. O confronto entre candidatos, em debate público, seria uma forma de vermos uns e outros a esgrimirem os seus argumentos e a mostrarem as suas reais capacidades. Deixariam, assim, de ter as suas capacidades disfarçadas por detrás de algum biombo… Por via dos debates públicos, em pé de igualdade, veríamos quem é quem, e quem, de facto, vive à custa das assessorias e das suas máquinas partidárias…



  1. Em democracia, é necessário conhecer-se bem quem pretende mandar em nós, para sabermos em que mãos nós estamos a entregar o nosso futuro. É que, por vezes, os protagonistas mais não passam de marionetas nas mãos de aparelhos partidários. Não poucas vezes até de máquinas perversas… Conhecem-se variados exemplos de verdadeiros grupos mafiosos que se escondem por detrás de instituições de aparência credível.



  1. Veja-se o modo como, nesta campanha eleitoral, se está a utilizar uma fotografia de há trinta anos para representar um candidato de agora. Clara manipulação de imagem que indicia, sobretudo, falta de escrúpulos. Isso não passa de uma espécie de “doping político”. Pretende-se, assim, emprestar uma imerecida vantagem de imagem a um determinado concorrente.



  1. Sou, claramente, pelo debate de ideias em público, entre aqueles que querem definir os destinos do nosso país e guiar as nossas vidas nos próximos cinco anos. Não compreendo, pois, como é possível alguém dizer-se democrata e, de seguida, escusar-se ao debate com aqueles com quem disputa o mesmo lugar.



  1.  Será, porém, um tremendo erro candidatos da oposição aceitarem debater entre si, deixando de fora quem tem o lugar em causa. Num debate apenas entre candidatos da oposição seriam apenas eles que se desgastariam. Já basta todas as demais vantagens. Dar-se ainda mais uma a quem já beneficia das outras todas, entre elas a de continuar resguardado por detrás de uma redoma, seria, penso eu, de uma ingenuidade imperdoável!

SOBRE “ANGOLA: A TERCEIRA ALTERNATIVA”


  1. O Dr. Marcolino Moco, autor do livro que me cabe agora apresentar, possui um portal denominado “À MESA DO CAFÉ”, no qual, com alguma regularidade, vai colocando ideias sobre questões que mais prendem a sua atenção. Como ele próprio diz na introdução a este texto, a sua primeira tentação foi a de elaborar apenas mais um dos seus comentários. Porém, o facto ocorrido no dia 3 de Setembro de 2011, quando um grupo de jovens pacíficos decidiu manifestar-se publicamente, pareceu-lhe merecer mais do que um simples comentário, pois a “ousadia” dos jovens manifestantes traduziu-se num balanço muito negativo, com presos, feridos e mesmo alguns desaparecidos. Depois de muita expectativa e de um julgamento mal conduzido, em primeira instância, o Tribunal Supremo decidiu enviar os jovens em liberdade.



  1. Esse episódio – que, inesperadamente, se transformou num marco na luta pública e pacífica pela democracia – consolidou na sua mente a ideia de que, afinal, tudo quanto se passa de essencial na vida pública e na vida política do nosso país decorre, geralmente, da “natureza do regime político que o actual Presidente em funções imprimiu a partir de meados dos anos noventa, a coberto da guerra pós eleitoral…”.[1]



  1. Marcolino Moço preferiu, então, abandonar a ideia de fazer uma abordagem meramente factual, casuística e que seria, por isso, bastante redutora, passando, assim, e de imediato, a questionar a natureza do regime em vigor, que designa como “todo um sistema perverso gerador desses eventos nefastos”.[2]



  1. O seu ânimo discursivo, numa autópsia antecipada ao actual regime, foi estimulado ainda por outros actos de repressão que se seguiram ao facto do dia 3 de Setembro de 2011 como, por exemplo, “a exoneração à moda antiga[3] da então Ministra da Energia, ela que foi sacrificada no “purgatório de políticas de «cavalos brancos»[4]fazendo-a passar pela grande responsável pela falta de energia e água de que padece grande parte da nossa população. Reeditou-se, assim, um método que se tornou habitual e que consiste em exonerar todas as responsabilidades do círculo presidencial, passando-as, na íntegra, para a esfera dos ministros, feitos publicamente bodes expiatórios.



  1. Neste momento em que, em muitos países democráticos, se assiste a uma verdadeira onda de contestação popular contra certas políticas governamentais que limitam os direitos adquiridos pelos cidadãos, ou mesmo a favor da instalação de democracias, ali onde elas não existem, Marcolino Moco optou por dissecar peça por peça, músculo por músculo, vaso por vaso, o corpo de um regime que ele bem conhece, pois fez dele parte, tendo mesmo ocupado cargos de enorme relevância, seja ao nível partidário (chegou a Secretário Geral do MPLA), seja ao nível governamental (foi Primeiro Ministro do governo saído da eleições de 1992). Representou ainda o nosso Estado, enquanto primeiro Secretário Executivo da CPLP – a Comunidade dos Estados de Língua Portuguesa.



  1. A sua experiência internacional e a possibilidade que passou a ter de olhar o mundo e o país a partir de fora, deram-lhe esta capacidade que agora aqui demonstra de perceber os pontos fracos do actual regime, assim como a sua relutância em entender quão antiquados são os métodos que utiliza para conter a crescente onda de contestação social que se vive hoje em Angola.



  1. Entendo perfeitamente por que razão o Dr. Marcolino Moco escolheu esta forma de intervenção pública. É que, assim, ele pode mais facilmente jogar um papel conciliador e agregador de diversas vontades de mudança que se manifestam na nossa sociedade, pois teme uma eventual introdução de factores de ruptura que possam funcionar como elementos desestabilizadores da paz social que é imperioso manter e consolidar. Contudo, tal não o inibe de apontar o seu bisturi analítico para o alvo certeiro, para o tecido cancerígeno, para a parte do nosso corpo político do qual irradiam as metástases que contaminam o conjunto da nossa sociedade.



  1. Marcolino Moco teve também o cuidado de explicar o porquê do título atribuído ao seu trabalho “Angola: a terceira alternativa”. Diz que se inspirou numa obra de Stephen R. Covey, que propõe uma nova abordagem para a solução dos problemas do mundo actual. Teve, assim, o cuidado de explicar que não pretende desenhar sozinho uma típica “terceira via mas, sim, pôr o acento tónico em aspectos essenciais do presente regime político. É, afinal, a essência e a substância deste regime que é importante analisar. Estende a sua análise crítica ao conjunto do sistema político, bem como ao papel dos diversos intervenientes sociais.



  1. Parte dizendo que urge, desde já, abandonar em definitivo a actual concepção personalizada do poder. De seguida, enumera um esboço de Agenda Nacional, assente em dez vertentes, servindo de método da Terceira Alternativa:



i)                   O respeito pelos direitos humanos fundamentais, colocando a dignidade humana acima de todos os valores. E para ilustrar essa ideia busca uma frase em umbundo, a sua língua materna: “Omanu vakola. Omuenyo ukola”. Ou seja: “Sagradas são as pessoas. Sagrada é a vida”. Isto é: “Sagrado não é o dinheiro nem mesmo o poder”.[5]

ii)                Governar é servir e não servir-se. Aqui apela a uma verdadeira mudança de mentalidades, mais até do que a introdução de formalismos constitucionais ou legais.

iii)              Angola é uma unidade na diversidade. Não vale, pois, a pena taparmos o sol com a peneira, disfarçando, por exemplo, o carácter étnico-regional de alguns dos nossos conflitos. Uma questão que tem de deixar de ser tabu.

iv)              É urgente a despartidarização do Estado-Nação

v)                A necessidade de eliminar fantasmas e enterrá-los juntamente com todos os outros “cadáveres psicológicos”. Com tais fantasmas e “cadáveres psicológicos” desencorajaram-se diversas gerações de jovens de assumirem as suas responsabilidades e amedrontaram-se outros, inclusive, mais velhos, criando-se uma cultura de medo.

vi)              O respeito ao princípio republicano da alternância na ocupação de altos cargos de natureza pessoal, especialmente a nível da chefia de Estado e de governo.

vii)           Uma descentralização e desconcentração efectiva do poder, numa alusão ao poder autárquico que, felizmente, faz parte da agenda política dos próximos tempos. Contudo, os seus contornos ainda não estão definidos, não se sabendo, por isso, que impacto terá na vida futura do nosso país.

viii)         O fim pacífico da espoliação dos recursos nacionais e regionais por uma minoria. Esta é uma verdade inelutável, indisfarçável e fonte de contestação crescente. Poderá mesmo constituir-se em fonte de conflitos de consequências inimagináveis, por enquanto.

ix)              A libertação e democratização dos meios de comunicação social. Uma matéria que desmente os discursos falaciosos que se vão ouvindo e que mostra a real cultura política antidemocrática dos actuais detentores do poder.

x)                O regresso ao respeito do princípio de separação formal dos poderes de soberania, com especial realce para independência formal e efectiva do poder judicial.



  1. Logo no início da obra, o autor faz uma ligeira abordagem sobre “os porquês” da instabilidade que se instalou no nosso país, depois da queda do governo fascista de Salazar e Caetano. E aponta alguns dos eixos dessa instabilidade, como sendo: a Guerra-Fria; a irracionalidade do sistema colonial que se recusou, no devido tempo, ouvir e atender os sucessivos apelos para o diálogo lançados por líderes nacionalistas; a existência de 3 movimentos de libertação nacional com raízes sócio-antropológicas diferentes e que se mostraram incapazes de “amadurecer consensos na defesa do interesse nacional”; também a desconfiança dos 3 movimentos de libertação em relação à “componente branca”, o que terá contribuído para o seu êxodo, com as consequências socio-económicas que depois se viram.[6]



  1. De seguida, Marcolino Moco passa à análise da situação actual e dos perigos para o futuro, se tudo se mantiver como está agora. Desvenda o carácter perverso da actual Constituição, feita à medida da vontade de José Eduardo dos Santos concentrar todo o poder real nas suas mãos, provocando, como ele diz, a “anemia das restantes instituições”.[7]



  1. A instrumentalização de algumas organizações civis, o uso abusivo do erário público para o enriquecimento rápido e ilícito de um conjunto restrito de subservientes, a subversão dos princípios reitores do Estado de Direito Democrático, não escapam à sua análise.



  1. Tudo isso é, afinal, conseguido à custa de uma estrutura que apelida de iníqua e que “apresenta todos os condimentos necessários para a curto ou longo prazo se criar uma situação idêntica a que se vivia ou se vive em países e Estados em situação revolucionária hoje e ontem”. E passa a descrição desses elementos estruturais.



  1. Com algum pormenor, aponta o papel dos jovens no processo de mudança e passa, de seguida, à enumeração do papel das diversas instituições e agentes sociais e políticos na criação de uma sociedade pacífica e de progresso social: o papel do Presidente da República em funções; o papel do MPLA; o dos partidos de oposição; a sua visão sobre o papel das chamadas elites; a autoridade moral das igrejas, intelectuais e mais velhos; a comunidade internacional; a sociedade civil.



  1. Na parte final do livro, temos, então, o desenvolvimento da ideia daquilo que ele decidiu chamar “A Terceira Alternativa”, consubstanciada numa Agenda Nacional esquematicamente referida antes. São aqueles 10 eixos (ou vertentes) que já enumerei.



  1. Antes de terminar, gostaria de esmiuçar um pouco mais a ideia subjacente ao título escolhido.



  1. Segundo Marcolino Moco, tudo aponta para o falhanço da Primeira Alternativa. A Primeira Alternativa é esta que está em curso e que “tem sido geradora de conflitos insanáveis”. É a que “se sustenta no uso da soberania nacional por quem detém o poder, não importa sobre que base, de o suster a qualquer preço e sem ter que apresentar grandes justificações, para fazer dele o que entender, dentro das possibilidades que os adversários políticos permitem”. E depois acrescenta: “”Uma alternativa baseada em filosofias maquiavélicas, hobbianas e evolucionistas sociais, que encarnam o ser humano como um animal irracional em cujo reino vencerá o mais forte e dos restos seja “o que Deus (deles) quiser””. Nesta Primeira Alternativa, “os políticos, especialmente os estadistas usam sem limites o dinheiro para vigiar, intimidar ou torturar e matar – se necessário – os seus concidadãos, em quem não confiam, vendo em cada um deles um inimigo, já para não falar dos seus reais ou imaginários adversários políticos”. Eles ouvem apenas o que entendem ser-lhes favorável e deleitam-se “com manifestações a seu favor, investindo, porém, contra qualquer tipo de manifestação legítima e legal de quem deles tem necessidade efectiva”.[8]



  1. Para Marcolino Moco, o que presentemente se esboça em Angola é uma espécie de Segunda Alternativa, não mais do que uma mera reacção às excentricidades e abusos dos crentes e militantes da Primeira Alternativa. Diz mesmo que é uma alternativa revolucionária no pior sentido, do tipo “estes tipos não mudam, só à pancada”, ou então “olho por olho, dente por dente”, a destruição total da herança do anterior regime, para se “reconstruir tudo depois”.[9]



  1. A emergência da Segunda Alternativa seria, pois, uma consequência do carácter irredutível da Primeira Alternativa, de que, recentemente, a Líbia é um exemplo. A frustração, a saturação e a raiva geradas e concentradas pela Primeira Alternativa despoletam a Segunda Alternativa, dando lugar à substituição de um mal por outro mal, com a prevalência da lógica do “agora chegou a minha vez”. Em resumo, crê que, por essa via, a violência e a destruição ainda são possíveis.



  1. A Terceira Alternativa, aquela que o autor defende, e de que eu também partilho em grande medida, assenta nos pressupostos de que o homem evolui tanto biologicamente como socialmente, cabendo a nós, pois, confiarmos na razão humana e na sua capacidade de retirar bons ensinamentos do passado. “A evolução social deve ser conseguida através de um balanceamento de interesses e da cooperação entre os seres humanos”.[10]Nega, pois, os pressupostos em que se baseia tanto a Primeira como a Segunda Alternativas.



  1. Para o autor, a construção da Terceira Alternativa pode ser feita apelando a vários protagonistas alternativos ou cumulativamente, reservando ainda um eventual papel para o actual Presidente da República, não obstante os seus longos 33 anos de poder. Diz, porém, Marcolino Moco que ele já não tem nada a perder e sim, muito a ganhar. Para a Terceira Alternativa, também deve contar-se com os partidos políticos, com as autoridades morais da sociedade, com apoio da comunidade internacional, etc.



  1. “Angola: a Terceira Alternativa”, escrito por Marcolino Moco, é uma reflexão pessoal de um homem experiente, honesto e determinado. Aconselho-vos, pois, a lerem este verdadeiro Manifesto Político. Muito Obrigado!



[1] Marcolino Moco – “Angola: A Terceira Alternativa” – pag. 9
[2] Marcolino Moco – “Angola: A Terceira Alternativa” – pag. 10
[3] Marcolino Moco – “Angola: A Terceira Alternativa” – pag. 10
[4] Marcolino Moco – “Angola: A Terceira Alternativa” – pag. 10
[5] Marcolino Moco – “Angola: A Terceira Alternativa” – pag. 70
[6] Marcolino Moco – “Angola: A Terceira Alternativa” – pag. 15
[7] Marcolino Moco – “Angola: A Terceira Alternativa” – pag. 17
[8] Marcolino Moco – “Angola: A Terceira Alternativa” – pag. 65
[9] Marcolino Moco – “Angola: A Terceira Alternativa” – pag. 66
[10] Marcolino Moco – “Angola: A Terceira Alternativa” – pag. 67