1. Na parte final da minha última crónica, intencionalmente,
inseri o seguinte parágrafo: “Uma eventual divisão do Iraque a partir dos seus ramos
religiosos criaria, naturalmente, outros problemas para o seu futuro, e para o
futuro dos restantes Estados da região, sendo o maior de entre eles, o dos
curdos que ainda não abdicaram da constituição do seu próprio Estado, a partir
dos territórios que ocupam no Iraque, na Síria, no Irão, na Turquia, e até
mesmo em algumas das ex-repúblicas soviéticas da Ásia.”
2. Com essa frase,
quis apenas dar início à abordagem de um outro problema de grande complexidade na
geopolítica daquela região do Médio Oriente. Pretendi, pois, dizer que não
basta ver a conflitualidade do Médio Oriente apenas na perspectiva religiosa, numa
lógica de disputa entre judeus e muçulmanos, ou nas fracturas dentro do próprio
campo muçulmano – colocando de um lado, xiitas e, do outro, sunitas – mas,
também, por vezes, numa perspectiva profundamente étnica, como é o caso do
Curdistão, com os seus contornos muitos específicos.
3. A criação do Estado independente do Curdistão é um
desígnio que jamais deixou de alimentar os sonhos da maioria dos curdos. Este é
um facto com condimentos políticos capazes de baralhar ainda mais o já
complicado Médio Oriente.
4. O problema dos curdos consegue mesmo unir facções
políticas, em diversos Estados que, de outro modo, se comportariam tão-somente como
“inimigos de morte”. O pretenso Estado do Curdistão funcionará, assim, como um
verdadeiro “Rubicão” na geopolítica do Médio Oriente.
5. O Curdistão é uma entidade geopolítica sem
características de Estado. Nunca foi possível criar um Estado a partir do
território reivindicado pelos curdos, tidos como a maior etnia do mundo sem
Estado.
6. Supõe-se haver cerca de 30 milhões de curdos
distribuídos pelos países que já citei, para além daqueles que habitam na
Europa – em especial, na Alemanha – e a grande diáspora concentrada nos Estados
Unidos. Porém, a maior aglomeração de curdos no Médio Oriente localiza-se na
Turquia, país onde possuem uma influente organização política com um passado
histórico de guerrilha – o Partido dos Trabalhadores do Kurdistão, PKK.
7. Estranhamente, o PKK, a maior força política (e militar)
do povo curdo, tem alguma cobertura do governo sírio, embora a Síria albergue
também uma comunidade curda, a maior minoria étnica do país. Os curdos da
Síria, tal como a maioria dos outros dividem-se entre duas opções: os que
defendem uma ampla autonomia dentro do território sírio, tal como sucede aos
curdos dentro do Iraque, e os que são apologistas da criação de um Estado
independente no espaço que, historicamente, pertence ao Curdistão.
8. A actual guerra civil prevalecente na Síria fez com
que o Estado tenha perdido capacidade para manter um completo domínio sobre os
curdos que, na realidade, já vão administrando directamente as suas vidas,
mesmo que sem consagração constitucional.
9. Os curdos iraquianos são os que possuem mais autonomia.
Na realidade, vivem praticamente em regime de independência de facto. A queda
do regime de Saddam Hussein, e as consequentes alterações políticas que se
verificaram levaram à definição de uma nova Constituição que consagrou a
criação de uma entidade federal no território habitado pelos curdos iraquianos,
um modo de governação que tem o beneplácito que tem o beneplácito das Nações
Unidas. Fruto, em grande medida, das riquezas naturais da região – rica em
petróleo – o Curdistão Iraquiano exibe o mais elevado padrão de vida do país.
10.
O Curdistão
Iraniano é um caso muito especial neste complexo problema. Por um lado, o
chamado Curdistão Iraniano é somente uma parte minoritária do território
habitado pelos curdos nesse país. Por outro lado, os curdos iranianos são
maioritariamente sunitas e os curdos iranianos que são xiitas não manifestam
qualquer interesse por uma maior autonomia. Penso que isso se deve ao facto de
o governo iraniano ser esmagadoramente dominado por xiitas. Quer dizer então
dizer que, nesta posição, a componente religiosa prevalece sobre a componente
étnica.
11.
A maior
repressão sobre os curdos tem hoje lugar no território da Turquia, cujo governo
ainda não reconhece a identidade cultural do povo curdo.
12.
A Turquia é
um candidato a membro da União Europeia, pela sua dupla inserção – país
essencialmente asiático, mas com uma parte do seu território pertencente à
Europa. Uma das reticências europeias à aceitação da Turquia no seu seio é a
questão curda. É uma das mas não a única.
13.
A existência
da região autónoma curda no Iraque constitui já uma enorme preocupação para o
governo turco, uma vez que, por vezes, a guerrilha curda da Turquia encontra
nesse território uma espécie de “santuário”, depois da realização das suas
incursões. De momento, essa é zona de maior tensão em todo o espaço reclamado
como Curdistão.
14.
Cada um na sua dimensão, todos os países
daquela região têm, pois, um problema curdo para resolver. Todos temem, porém,
que, evoluindo primeiramente para regiões autónomas dentro dos seus territórios,
os curdos possam vir, no futuro, a pretender evoluir para a reivindicação de um
Estado Único.
15.
Há quem diga
que a emergência de um Estado Curdo Único criaria um novo equilíbrio no Médio
Oriente. Ele poderia transforma-se, a prazo, num dos Estados mais poderosos da
região, por causa do seu enorme potencial de riqueza natural, em especial,
petróleo. Não é, pois, por acaso que a Região Autónoma Curda do Iraque já é a
mais rica e com maior padrão de vida do país.
16.
Ficaria ainda
por dar solução a um problema: tal Estado resultante da junção de partes vindas
de outros convívios e de outras vivências, cada uma com as suas
especificidades, a determinada altura, poderia conhecer conflitos,
eventualmente inconciliáveis. Nada disso me espanta.