quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O “ANÁTEMA” DE FREDERICK CHILUBA


  1. O afastamento do poder do Presidente do Burquina Faso, Blaise Campaoré, tornou-se, seguramente, o facto mais marcante da política africana da última semana, relegando mesmo para plano secundário a morte, por doença, na Inglaterra, do Presidente da Zâmbia, Michael Sata que, com isso, se tornou o segundo Presidente daquele país a morrer na vigência do seu mandato, depois de Levy Mwanawassa.

 

  1. Se é verdade que a morte de Michael Sata chocou a opinião pública africana – já que notícias como esta passam quase sempre desapercebidas no resto do mundo – não é, porém, menos verdade que ela estimulou um outro motivo de atenção e interesse: a probabilidade de Michael Sata vir a ser substituído, mesmo que interinamente, pelo Vice-Presidente, Guy Scott, cidadão zambiano branco, filho de pais escoceses.

 

  1. Foi assim despoletada a histórica “armadilha constitucional” montada, em 1966, pelo também já falecido Presidente zambiano Frederick Chiluba, que a engendrou para limitar o raio de acção do seu antecessor, Kenneth Kaunda, que mostrava uma aparente vontade de se candidatar, tão logo terminasse o mandato presidencial de Frederick Chiluba.

 

  1. De acordo com a “armadilha constitucional” de Chiluba, só poderia concorrer à Presidência da República quem pudesse provar ter ascendência “zambiana genuína” de, pelo menos, duas últimas gerações. Ou seja, quem fosse sucessivamente neto e filho de “zambianos puros”… Com esse verdadeiro “garrote constitucional” Chiluba apertou o “pescoço” de Kenneth Kaunda, filho de pais originários do Malawi e, seguramente, de avós com a mesma origem, ou coisa parecida.

 

  1. O Presidente Kenneth Kaunda foi quem mais se destacou no processo de luta – não armada, pois esta não houve – pela independência da Zâmbia, através do partido político por si fundado, a União Nacional para a Independência, que ganhou as eleições realizadas na então Rodésia do Norte (o nome que antecedeu a Zâmbia, sob domínio colonial britânico), em 1962. Dois anos depois, em 1964, veio a tornar-se Presidente da Zâmbia.

 

  1. Antes de fundar a União Nacional para a Independência da então Rodésia do Norte, o Presidente Kenneth David Kaunda ainda militou no ANC (Congresso Nacional Africano) da Rodésia, de Harry Nkumbula, de quem divergiu e se separou.

 

  1. A batalha pela separação relativamente ao Reino Unido iniciou ainda no quadro da Federação da Rodésia e Niassalândia, uma entidade política semi-autónoma instituída em 1953, sob a forma de Federação, tutelada pelo Reino Unido até 1963. A Federação da Rodésia e Niassalândia incluía quer a Rodésia do Norte (actual Zâmbia), quer a Rodésia do Sul (Zimbabwe) e a Niassalândia (Malawi).

 

  1. O estatuto dessa Federação de estados face ao Reino Unido não era nem de colónia, nem de domínio, embora tivesse como representante do Reino Unido um Governador-Geral, tal como sucede com os domínios.

 

  1. Kenneth Kaunda terá nascido num território hoje integrado no Malawi, e foi isso que serviu de argumento político para o seu sucessor o assinalar com essa espécie de “anátema geracional”.

 

  1. O “garrote constitucional” de Frederick Chiluba serve agora para apertar o “pescoço político” do Vice-Presidente Guy Scott, elevado já à condição de Presidente Interino do país, mas sem hipóteses de concorrer à Presidência da República, pelo facto de ser filhos de país britânicos, mais concretamente, escoceses.

 

  1. A “maldição de Chiluba” lançada contra Kenneth Kaunda continua a produzir vítimas, mesmo depois da sua morte em 2011. Caso não se lhe dê um outro destino – ou melhor se, a seu tempo, não for retirada da Constituição zambiana – as ondas de choque que desencadeou propagar-se-ão por muito mais tempo, podendo, inclusive, atingir descendentes mais próximos da actual classe política daquele país, seguramente ela já entrecruzada com pessoas originárias de outros países, africanos ou não.

 

  1. Se essa “norma chilubiana” tivesse sido imitada, por exemplo, no Botswana, o seu actual Presidente da República (reeleito nos últimos dias), Ian Khama, nunca o poderia ser, pois é filho de mãe britânica. O que sucede igualmente com o Presidente Kabila da RDC, filho de mãe Tutsi não congolesa.

 

  1. As normas jurídicas – sobretudo, as de implicações essencialmente políticas – não podem ser pensadas numa perspectiva de mero curto prazo, muito menos para atingir interesses políticos imediatos. Elas devem ser elaboradas com base na boa-fé, atendendo as diversas dinâmicas, inclusive, as dinâmicas humanas, neste mundo cada vez mais globalizado.

 

  1. Mantendo na Constituição a “norma chilubiana”, um dia talvez seja necessário o recurso a uma qualquer “lupa política” para se encontrar um “zambiano genuíno” que possa, “sem mácula”, tornar-se Presidente da República.

 

  1. Seria bom que todos aprendêssemos esta lição vinda de fora. De não muito longe…