quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A PENA DE MORTE. UMA QUESTÃO DO NOSSO TEMPO

1. Muitas das notícias vindas recentemente a público são deprimentes: por exemplo, as várias condenações à morte decretadas contra cidadãos de etnia uigure, envolvidos nos tumultos inter-étnicos de Julho, na província chinesa de Xinjiang; igualmente, as condenações à morte de manifestantes iranianos que contestaram os resultados das eleições de Junho; finalmente, o drama vivido por um cidadão equatoriano que passou três anos no “corredor da morte”, à espera de ser executado, tendo-se, afinal, provado que se tratava de mais um inocente.

2. No mês de Julho, a região de Xinjiang, noroeste da China, viveu dias de grande agitação de rua, com confrontos entre cidadãos de duas comunidades distintas, os han, que são maioritários no conjunto do território chinês – mas, minoritários na província de Xinjiang – e os uigures, amplamente maioritários nesta província. Os uigures são muçulmanos etnicamente aparentados com os turcos.

3. O conflito inter-étnico surgiu depois de dois operários uigures terem sido mortos numa província do sul da China, supostamente por responsabilidade de indivíduos de etnia han, com quem trabalhavam numa fábrica. O facto começou por desencadear manifestações pacíficas, porém, devido ao comportamento repressivo das autoridades, elas evoluíram e degeneraram em motins e pilhagens, tornando alvo, sobretudo, propriedades de membros da etnia han. Os uigures dizem-se discriminados a favor dos han, pretendendo, por isso, separar-se da China. As autoridades chinesas resumem o conflito étnico naquela região às chamadas “três forças”: separatismo, terrorismo e extremismo religioso.

4. Mesmo que aleguem terem sido cometidos actos de pura marginalidade, as condenações à morte agora decretadas surgiram perante o mundo como tendo motivações políticas.

5. É claro que não se deve matar por razões políticas. A política tem que saber buscar outras formas de resolução das suas contradições. Na política, não há verdades absolutas. Por vezes, aquilo que aparenta ser a verdade pode, depois, transformar-se num grande embuste. Aprendi esse princípio com a experiência própria e com a experiência alheia. Vi ao longo da vida demasiados castelos de verdades políticas desmoronarem como baralhos de cartas… Vi fortes convicções evoluírem para dúvidas absolutas, ou então simples dúvidas firmarem-se como convicções seguras. Em política tudo está sempre inacabado, e os edifícios são delimitados por frágeis contornos, nunca por estruturas de betão…

6. As condenações à morte no Irão emergiram no rescaldo do conflito pós-eleitoral que opôs Mahmud Ahmadinejad, declarado vencedor das recentes eleições presidenciais, aos apoiantes do líder reformista Mir Hussein Moussavi. Hoje, juntamente com a China, o Irão lidera a «lista negra» dos países que mais usam a pena de morte como fórmula de punição. Os sucessivos relatórios produzidos pela Amnistia Internacional apresentam dados que juntam a estes dois países também o Paquistão, Arábia Saudita e Estados Unidos da América. Em termos per capita, a Arábia Saudita é o país líder das execuções, seguido do Irão e da Líbia. Nalguns desses países chegam mesmo a ser executados indivíduos por terem cometido crimes quando ainda eram menores. Se olharmos atentamente, veremos que, na sua maioria, não são democracias, com excepção dos Estados Unidos da América. São, sobretudo, países asiáticos, ou então, países africanos, como a Líbia. Porém, o Japão, sendo embora uma democracia, ainda executa pessoas.

7. Nos Estados Unidos da América persiste a prática da pena de morte para punir determinados tipos de delitos, se bem que o processo que conduz à execução da pena seja bastante demorado e obedeça a trâmites apertados. Não poucas vezes, e mesmo que haja maior possibilidade de se garantir transparência, o sistema judicial norte-americano mostra pouca segurança. Contam-se por inúmeros os casos em que foram condenados à morte indivíduos inocentes, o que é grave, pois a pena de morte é um castigo irreversível. Uma vez aplicada a pena, não há hipóteses de recuo.

8. Por exemplo, há poucos dias eu li uma entrevista dada a um jornal português por um imigrante equatoriano, que esteve preso durante 5 anos na Prisão Estadual da Florida, nos Estados Unidos da América. Dos cinco anos de prisão, ele passou 3 longos anos no “corredor da morte”, à espera da hora da execução. Fora acusado de um duplo assassínio. Mas, afinal, tudo não passou de uma tramóia engendrada pela ex-esposa.

9. Joaquim José Martinez tinha então 26 anos de idade. Até ser preso, fora adepto da aplicação da pena de morte, como forma exemplar de punição. Hoje, tem 39 anos. Depois de ter passado tudo o que passou e ter visto tudo quanto viu, Joaquim José Martinez tornou-se activista contra a pena de morte, precisamente porque a sua própria experiência permitiu-lhe perceber que, não poucas vezes, são executados inocentes.

10. A experiência dos três anos no “corredor da morte” foi-lhe traumática: qualquer tilintar de chaves, durante a noite, ainda o assusta… Lembra-se de como as pessoas tremem e choram, até urinam, enquanto caminham para a execução... Perdeu assim o seu melhor amigo, Benny Temps… Antes de tudo acabar, vira Benny Temps com a família, com os seus filhos, a despedirem-se… Depois, Benny Temps caminhou para o local onde estava instalada a cadeira eléctrica.

11. Eram sete horas da manhã. As lâmpadas piscaram três vezes. Apagaram-se e voltaram a acender-se. A execução tinha terminado. Joaquim José Martinez deixou de usar lâmpadas como aquelas que havia na prisão. Hoje só usa lâmpadas de halogéneo. Elas são sinais e lembranças que deseja apagar para sempre da memória.

12. Eu também tenho na memória gente com quem convivi, e que depois foi executada. São, talvez, histórias para as memórias que um dia pretendo escrever – se tiver tempo para tal. Afinal, Angola faz parte do mundo… Angola também teve os seus momentos traumáticos.

13. Por vezes, surpreendo-me a pensar na sensação que se apossa de quem, de repente, vê desmoronar todo o seu projecto de vida – vê ruir tudo, a partir dos alicerces.

14. Eu sei que a pena de morte é demasiado controversa. Mas sei também que a sua utilidade, e, sobretudo, a lógica do seu direito ainda a tornam mais questionável… Vale, pois, a pena reflectirmos sobre as três questões que aqui apresentei. Infelizmente, elas são ainda questões do nosso tempo. Vê-se que a pena de morte não é uma questão do passado – como seria desejável.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A PRISÃO DE IDELPHONSE NIZEYIMANA

1. A prisão no dia 5 de Outubro, no Uganda, de Idelphonse Nizeyimana, é uma boa notícia, sobretudo para mim que tive ocasião de ler, muito recentemente, o emocionante livro escrito pela ruandeza Immaculée Ilibagiza, no qual ela relata, ao pormenor, uma das dimensões mais chocantes do seu drama, do da sua família e também do seu povo, nos conhecidos fatídicos 100 dias do ano de 1994. Nessa altura, perpetrou-se no Ruanda, sem dúvidas, um dos maiores massacres dos tempos modernos.

2. A detenção de Idelphonse Nizeyimana assume justamente a importância que aqui atribuo, pois ele não foi um qualquer peão naquele macabro jogo de morte. Ex-capitão do Exército ruandez, ex-chefe dos serviços de inteligência, Idelphonse Nizeyimana foi tão-somente um dos mais conhecidos chefes operacionais das milícias extremistas hutus, os Interahamwe, responsáveis pela eliminação de cerca de 800 mil tutsis e hutus moderados.

3. Eu penso que todos quantos acompanharam, com algum cuidado, o genocídio que aconteceu no Ruanda, têm hoje uma ideia bem formada sobre o que se passou nos 100 dias que se seguiram à morte do presidente Juvenal Habyarimana. Contudo, se lerem – tal como eu li – o livro de Immaculée Ilibagiza, intitulado “Sobrevivi”, consolidarão a convicção de que, quer os autores directores, quer os mentores do massacre não são homens e mulheres civilizados – são puramente selvagens. Há que ter coragem de o dizer, mesmo que a expressão pareça exagerada. Eles portaram-se como os animais na selva, desventrando, degolando, fazendo pilhas de corpos sem vida, desrespeitando os mais elementares direitos humanos. E, como tal, merecem ser detidos, julgados, e responsabilizados pelos actos bárbaros que cometeram.

4. Em Abril de 1994, o avião em que viajava Juvenal Habyarimana, de regresso da Tanzânia, juntamente como o presidente do Burundi, foi abatido ainda no ar, quando pretendia aterrar no aeroporto de Kigali, a capital do Ruanda. O anúncio da sua morte escancarou, então, as portas do inferno… Caiu sobre os vales e as colinas do Ruanda um dos maiores castigos humanos que a história moderna regista. Aquilo não foi um confronto entre exércitos, nem mesmo uma luta entre homens civis mas munidos cada um de instrumentos de defesa, foi um acto de pura barbárie. No Ruanda aconteceu um morticínio motivado simplesmente por recalcamentos históricos e pelo ódio étnico. Por arrasto, os extremistas hutus eliminaram também os da sua etnia que não tinham relutância em conviver com a diferença.

5. Para entendermos melhor este acto de verdadeira loucura colectiva, ouçamos o modo como Immaculée Ilibagiza descreve a imagem física do seu país: “… um país minúsculo, engastado como uma jóia na África Central. É tão belo e deslumbrante que é impossível não ver a mão de Deus nas suas colinas suaves e exuberantes, montanhas envoltas em nevoeiro, vales verdejantes e lagos cristalinos. As brisas suaves que sopram pelas colinas e vagueiam por entre as florestas de pinheiros e cedros, são perfumadas com o doce aroma dos lírios e crisântemos. E o clima é tão agradável o ano inteiro que os colonizadores alemães que chegaram no final do século XIX a baptizaram com «terra da Primavera eterna»”.

6. Sigamos ainda o modo como ela resume a sua infância e a inocência que povoava o seu pequeno mundo: “As forças do mal que dariam à luz um holocausto que mergulhou o meu amado país num mar de sangue, estavam escondidas de mim quando eu era criança. Enquanto jovem, tudo o que conhecia do mundo era a maravilhosa paisagem que me rodeava, a bondade dos meus vizinhos e o profundo amor dos meus pais e irmãos. Na nossa casa, o racismo e o preconceito eram desconhecidos. Não tinha consciência de que as pessoas pertenciam a diferentes tribos ou raças, e nunca tinha sequer ouvido os termos tutsi e hutu até ter ido para a escola.” Tudo isso, depois, acabou.

7. Quando iniciou o massacre, Immaculée Ilibagiza teve que se refugiar na casa de um pastor hutu, amigo da família, que lhe deu guarida e a mais cinco mulheres de etnia tutsi. Ficaram escondidas numa minúscula casa de banho secreta, durante 90 dias. Eis também o relato dramático que ela faz, de quando a procuravam para a matar: “Havia muitas vozes, muitos assassinos. Conseguia visualizá-los na minha mente: os meus amigos e vizinhos – que sempre me tinham cumprimentado com amor e bondade – a moverem-se pela casa, com lanças e catanas e chamando pelo meu nome.”

8. No Ruanda, foi perpetrado um massacre selectivo pelas milícias Interahamwe de que Idelphonse Nizeyimana era chefe operacional. Esse grupo de extermínio nasceu de um movimento juvenil criado pelo partido do presidente Juvenal Habyarimana e que atraiu para a s suas fileiras milhares de jovens sem-abrigo. Espalharam-se rapidamente por todo o país, tornando-se numa milícia sectária, exclusivamente constituída por membros da etnia hutu. Evoluíram para verdadeiros bandos de rufias sem rei nem roque. Foram eles que executaram o projecto engendrado por Idelphonse Nizeyimana, Felicien Kabuga (ainda a monte), Bagosora, e outros.

9. Como foi possível gente vivendo num meio tão puro e tão belo praticar actos de tamanha barbárie, como os que Immaculée Ilibagiza viu e retrata no seu livro? É isto que me faz acreditar que, por vezes, o demónio pode estar escondido até mesmo por entre as flores mais belas e aromáticas de um jardim… Um desses demónios será, seguramente, Idelphonse Nizeyimana, um dos chefes operacionais do massacre que chocou o mundo e que desnudou ao pormenor os meandros da mente humana.

10. Afinal, quando o ódio se sobrepõe ao amor, quando a insanidade toma o espaço devido à racionalidade, quando os instintos mais primários se sobrepõem à reflexão, todos perdemos a inocência… E até mesmo as crianças deixam de o ser, tornando-se adultos, compulsivamente...

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

UMA NOVA ORDEM MUNDIAL

1. Pelos dados que foram recentemente apresentados sobre o desempenho, no segundo trimestre do corrente ano, das principais economias do mundo, são cada vez mais evidentes os sinais de recuperação da economia mundial. Começam, assim, a ser sinalizados com taxas de crescimento positivas certos indicadores que expressam o seu desempenho. As previsões para os terceiro e quarto trimestres denotam, igualmente, uma recuperação, mesmo que tímida. Porém, para o ano de 2010, os analistas perspectivam mais sólidas melhorias.

2. Quanto ao desempenho de Angola, subsistem dúvidas, face às posições contraditórias assumidas pelas principais agências especializadas, mesmo que se assista a um discurso optimista por parte das nossas autoridades. O último Relatório do Fundo Monetário Internacional, divulgado na Quinta-Feira, dia 1 de Outubro, prevê uma quase estagnação da economia angolana, para este ano, ao apontar para uma taxa de 0,2%. Este valor está muito próximo do avançado pelo Banco Mundial, e fica, porém, demasiado distante dos 6,1% inseridos no Orçamento Geral do Estado revisto. Todavia, o Banco Mundial acredita que a economia angolana ainda assim possa crescer, desde que o sector petrolífero cresça acima dos 10%, o que se afigura pouco provável, se tidos em conta os dados que vêm saindo a público.

3. A actual crise económica éa mais grave, desde a Grande Depressão que teve lugar nos Estados Unidos da América, entre os anos 1929 e 1933. Nessa época, o processo de integração das diversas economias, nem de perto, nem de longe se parecia com o que hoje existe. A ainda pouca integração das economias nessa época explica, pelo menos em parte, que as repercussões além-fronteiras da Grande Depressão tenham sido relativamente reduzidas.

4. A Grande Depressão foi uma crise local. Mas, hoje, fruto das múltiplas interligações financeiras e económicas que se teceram, o descalabro do mercado imobiliário norte-americano e a consequente falência de algumas das suas principais agências financeiras, repercutiram-se, de imediato, quer nas restantes esferas da economia dos Estados Unidos da América, quer sobre o exterior. É caso para dizer que uma maleita americana contaminou a saúde de toda a economia mundial. Logo, a crise actual é global.

5. As crises nas economias de mercado são um fenómeno recorrente e fazem parte da própria essência do capitalismo. No passado, surgiram várias interpretações sobre a essência das crises do capitalismo. Recordo, por exemplo, a visão do economista soviético Nicolai Kondratiev, que atribuía a razão das crises às inovações tecnológicas. Ele chegou mesmo a postular que as depressões económicas prolongadas que acompanham as crises se repetiriam por períodos de 50 a 60 anos. Também o economista austríaco Joseph Schumpeter acompanhou o pensamento de Kondratiev, pormenorizando, porém, ainda mais o modo da repetição das crises. Por sua vez, John Maynard Keynes, talvez o economista mais renomado do século XX, contribuiu, sobretudo, com fórmulas para a sua superação.

6. Foi Karl Marx quem realizou o estudo mais aprofundado sobre o fenómeno das crises capitalistas. Para Marx, o excesso de produção, motivado pela concorrência irracional entre os produtores, estava na base das crises do sistema. A procura desenfreada do lucro por parte dos proprietários e o aumento da miséria das classes trabalhadoras criariam as condições para o desencadear de sucessivas crises. Marx chegou ao ponto de profetizar a emergência de uma Crise Geral capaz de enterrar, em definitivo, o sistema capitalista de produção. É a sua célebre Teoria da Catástrofe Inevitável do Capitalismo.

7. Quando o mundo mergulhou na presente crise global, alguns políticos e analistas terão pensado que, finalmente, acontecera a previsão de Karl Max. Mas, como vemos agora, tal não sucedeu. Felizmente, houve também políticos que perceberam bem a urgente necessidade de uma maior intervenção do Estado nos processos económicos, aumentando o seu poder como agente regulador.

8. Se comparadas também com a presente crise, as crises económicas que ocorreram na década de 1990 não tiveram lugar em economias desenvolvidas. Elas ocorreram, por exemplo, no México, em alguns países asiáticos, na Rússia e no Brasil, com uma repercussão muito menor. Elas nunca puseram em causa a sobrevivência da economia mundial.

9. A presente crise nasceu precisamente na economia mais desenvolvida do mundo, os Estados Unidos da América, e, logo de início, ela abalou praticamente todo o seu sistema financeiro. Pela importância global da economia norte-americana, a crise espalhou-se para a grande maioria dos países desenvolvidos. Depois, chegou a vez das economias emergentes e das economias dos países subdesenvolvidos receberem os seus impactos, evidenciando, pois, o carácter global da crise.

10. Uma pronta resposta dada pelos governos dos países mais avançados, ao cederem liquidez ao sistema financeiro, e ao definirem novas regras de funcionamento desse mesmo sistema financeiro, terá evitado um maior descontrolo ou até mesmo o colapso das economias. O governo dos Estados Unidos da América foi ainda mais longe, ao ponto de interferir directamente no funcionamento de algumas empresas industriais, como aconteceu com a General Motors. Barack Obama não só injectou liquidez pública no gigante do mundo automóvel, como também reestruturou e definiu novos padrões de produção.

11. Hoje, quando já se nota um crescente optimismo quanto às hipóteses de recuperação da economia mundial, é justo assinalar o papel desempenhado pelas principais economias emergentes, nomeadamente a China e Índia, e mesmo até o Brasil. Sem sombra de dúvidas, eles foram os verdadeiros motores da presente recuperação económica. Pelo seu papel crescente, merecerem, pois, um espaço mais alargado nas tomadas das decisões políticas na arena internacional.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O BRASIL PROFUNDO


1. Decorridos 6 anos, regressei ao Brasil, e novamente para participar numa Conferência sobre a problemática dos Direitos Humanos. Desta feita, o palco do encontro foi Belém (uma velha cidade com perto de 400 anos de idade; foi fundada em 1616). Belém é a capital do estado do Pará, norte do Brasil, na região da Amazónia. Reparem que, em superfície, o estado do Pará é tão grande como Angola.

2. Logo ao primeiro relance, um facto despertou a minha curiosidade: em Belém, dificilmente nos deparamos com indivíduos de tez escura. O tom predominante é o do mestiço, porém, um mestiço que se adivinha ser o fruto de muitos antigos cruzamentos, sobretudo, do cruzamento entre índios e brancos. São raros os mestiços produto da ligação de uma negra com um branco, de um negro com uma branca, ou mesmo de laços estabelecidos entre mestiços de múltiplas misturas, tal como é muito habitual em Angola.


3. Pensar que Angola é o exemplo mais acabado da multiplicidade de raças, é um redondo engano. Nós somos apenas uma parte do problema, pois a pluralidade de raças no mundo é muito mais vasta do que o pequeno leque que temos aqui, dentro das nossas fronteiras. A África do Sul, por exemplo, possui uma maior amplitude racial que nós, e essa diversidade assume matizes distintas, sempre que caminhamos de uma região para outra região desse país.

4. É claro que eu acredito que, com a presente confluência de povos estrangeiros para o nosso país, teremos também, no futuro, um mais vasto mosaico étnico e rácico. Daí advirão, seguramente, implicações, umas eventualmente positivas, outras talvez até negativas. Mas, não é propriamente sobre tais implicações que eu quero tratar aqui neste espaço. Eu quero tão-somente falar da diversidade étnica e cultural do Brasil, espicaçado pelo que observei na cidade brasileira de Belém, uma cidade guardiã de uma história centenária, com traços ainda evidentes de um passado de grande actividade comercial.

5. O Brasil tem a diversidade de um país para onde confluíram povos de várias origens, mas o estado da Bahia será, talvez, aquele que apresenta mais semelhanças com o continente africano. São semelhanças na tez dos indivíduos, maioritariamente, negros e mestiços. São semelhanças nas práticas culturais – música, culinária, religião. Há mesmo quem diga que Salvador, a capital do estado da Bahia (ela que foi também a primeira capital do Brasil), representa um misto de Luanda e Benguela da época colonial (mais Benguela que Luanda), sobretudo nas suas zonas históricas – Infelizmente, muitas dessas áreas históricas de Luanda e Benguela estão já a ser sistematicamente demolidas, a mando de quem desvaloriza a história dos povos e menospreza o seu património. Salvador da Bahia guarda também vestígios de outros povos do Golfo da Guiné. Diz-se que na Bahia podemos cruzar-nos, a qualquer instante, com alguém parecido connosco, com os nossos familiares, com os nossos amigos.

6. Há anos, por exemplo, o meu filho Justino (o “Pinto”, como é mais conhecido) visitou o estado brasileiro da Bahia. Ao percorrer a cidade capital, Salvador, o “Pinto” “viu” semelhanças entre as pessoas com quem se cruzava e muitos daqueles de que se lembrava de Angola. Entusiasmado, ligou-me do seu telemóvel, para me dizer que me estava a “ver”, em vários pontos daquela cidade brasileira... Também “via”, nas ruas e em outros locais, a mãe, os irmãos, os tios, os primos e mais parentes. “Via” até pessoas que já tinham morrido… Estava maravilhado com tantas parecenças … Naquele momento, para o meu filho “Pinto”, o mundo tornara-se um espaço muito pequeno, e a raça humana era, afinal, única, mesmo que espalhada por várias partes do nosso planeta...

7. Porém, se o meu filho “Pinto” tivesse estado, como eu estive há pouco tempo, no estado brasileiro do Pará, seria certamente muito mais difícil ele “ver” lá alguém da nossa família, muito menos os seus amigos de infância e adolescência... E os mortos, claro, esses tinham morrido definitivamente… Na cidade de Belém do Pará, circulam predominantemente outros sangues. Os nossos sangues são uma excepção. Prevalece, sim, o sangue de índio, mas misturado com o de europeus de múltiplas proveniências. Afinal, isso é um dos frutos históricos da colonização do Brasil. No Brasil entrecruzam-se sangues de todas as origens, e tal como os Estados Unidos, o Brasil transformou-se num dos laboratórios da humanidade.

8. Mesmo que eventualmente não tenham atingido a “dimensão laboratorial” desses dois grandes países, quase todas as colónias são, afinal, tributárias do seu passado colonial. Mais ou menos evidentes, guardam as marcas da história.

9. Não tenho receio de errar, ao afirmar que, se é verdade que os ciclos económicos determinaram a direcção das migrações, não é menos verdade que eles influenciaram também a composição demográfica das localidades. Como é lógico, o Brasil é um dos espelhos desse “fatalismo”. É um país muito distinto de uma região para outra região, de um estado para outro estado. E cada um desses espaços reflecte os ciclos económicos e, consequentemente, as migrações.

10. Podemos dizer que o Brasil é um verdadeiro mosaico cultural e étnico, que é dos países que melhor reflecte a pluralidade da espécie humana, salvaguardando, claro, os seus evidentes desequilíbrios.

11. No contexto da sua expansão colonial, foram os portugueses os primeiros povos estrangeiros que demandaram o Brasil. Depois, levaram consigo escravos provenientes de África, num processo migratório forçado que se prolongou por cerca de três séculos. Esse processo migratório forçado custou ao nosso continente a perda de milhões de habitantes: entre os que foram mortos aquando da apanha dos escravos, também os que morreram durante o seu transporte, e entre aqueles que, finalmente, chegaram aos pontos de destino. Não há números seguros sobre quantos africanos escravos morreram, sobre quantos chegaram ao destino, mas sabe-se que o número se saldou por dezenas de milhões. Foram apanhados e transportados, afinal, para criarem e desenvolverem uma agricultura de exportação nesse outro continente, as Américas.

12. No século XVIII, a economia de mineração intensificou o fluxo de força-de-trabalho escrava para o Brasil. Aí misturaram-se os interesses de portugueses, franceses, também de holandeses. O século XIX produziu outros fluxos migratórios, com o aparecimento de alemães, austríacos e até mesmo suíços, idos para regiões situadas mais ao sul, como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Santa Catarina.

13. O ano de 1888 foi o ano em que se libertaram os escravos. Em consequência, intensificou-se o movimento migratório internacional para o Brasil, com destaque para imigrantes provenientes da Europa e de algumas regiões da Ásia, muito em especial, fruto das grandes transformações sócio-demográficas que ocorriam nessas áreas. Assim, o Brasil conseguia resolver dois problemas: foi-se povoando e conseguiu mão-de-obra para o seu desenvolvimento. O “ciclo do café” acentuou ainda mais a entrada de estrangeiros de diversas nacionalidades, alguns saídos até da Europa Oriental.

14. A paralisação do envio de escravos de África e o aumento do fluxo de força-de-trabalho proveniente da Europa e de outras paragens determinou, pois, uma alteração sensível na composição étnica do Brasil, alteração que também obedeceu uma estratégia de “branqueamento”.

15. Segundo sei, o grande fluxo de imigrantes brancos para a região da Amazónia (incluindo, portanto, o estado do Pará) teve muito a ver com o “Ciclo da Borracha”, e a exploração da madeira. Foi mais difícil recrutar um grande volume de força-de-trabalho negra, pois tal “Ciclo” tem lugar quando já não vigorava o trabalho escravo. Talvez, então, daí, essa percentagem menor de sangue negro que se nota entre os povos paraenses.

16. Nas próximas viagens do meu filho “Pinto” ao Brasil, caso ele queira continuar a “ver” nas ruas a nossa família e até mesmo muitos dos seus amigos de infância e adolescência, aconselho-o a percorrer o Nordeste brasileiro. Talvez seja bom dar mais umas voltas pela Bahia. Que vá também ao Piauí e ao Maranhão. E porque não também, a Pernambuco, Paraíba, ou mesmo o Rio Grande do Norte? No Pará, não me “verá”, seguramente… Disso tenho eu a certeza. Pois, sendo, embora, um fruto de múltiplas misturas, pelo menos que eu saiba, não me corre nas veias qualquer gota de sangue de índio…