quarta-feira, 25 de maio de 2011

A UNIÃO AFRICANA E OS CONFLITOS EM ÁFRICA

  1. Os desaires sofridos pelos países mais desenvolvidos na resolução dos conflitos em África, Somália (1992) e Ruanda (1994), fizeram com que se reduzisse substancialmente a participação directa de militares europeus e norte-americanos. Hoje tal participação resume-se praticamente aos casos em que há acordos bilaterais, ou a missões de carácter muito específico e com duração limitada.

  1. Em 1991, 8 dos 10 maiores contribuintes para as missões de paz da ONU eram países desenvolvidos. Para além da Ucrânia (que é um país de desenvolvimento médio), quem mais contribui com efectivos militares são países de baixo nível de desenvolvimento, incluindo 4 países africanos: Ghana, Quénia, Nigéria e África do Sul.

  1. Porém, têm-se desenvolvido Programas de Apoio à Capacitação das organizações africanas no campo de segurança e da paz. São exemplo:
  • ACRI (Africa Crisis Response Initiative), criado pelos EUA em 1995;
  • RECAMP (Renforcement de la Capacité de Maintien de la Paix), implementado pela França.
  • África Peace Facility” (2004), apoiado pela União Europeia.

  1. No quadro da luta contra o terrorismo, os EUA vão apoiando algumas acções regionais, treinando e equipamento diversos países para o controlo das suas fronteiras e detecção de movimentos suspeitos. Um exemplo é a “Iniciativa Pan-Sahel”, dirigida às forças de segurança do Mali, Níger, Chade e Mauritânia.

A PREVENÇÃO E RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

  1. A União Africana (UA) elegeu a “Prevenção e a Resolução de Conflitos” como um campo privilegiado da sua acção, na perspectiva de que só se alcançará o desenvolvimento se houver estabilidade política e social.

  1. Pelo menos, teoricamente, a UA adoptou uma posição pragmática, tendo mesmo desenhado um mecanismo de “revisão pelos pares”, para a promoção da transparência ao nível das políticas públicas e da credibilidade dos regimes políticos, com o Ghana a ser o primeiro país a submeter-se ao mecanismo.

  1. Foram também criados outros instrumentos como o Parlamento Pan-Africano e o Conselho para a Paz e Segurança (CPS) da União Africana. Neste último organismo nenhum dos 15 Estados integrantes possui direito de veto. Porém, a real funcionalidade destes órgãos pode ser posta em causa por questões que têm muito a ver com a sua sustentabilidade financeira.

  1. Ao Conselho para a Paz e Segurança (CPS) da UA está incorporado um Sistema Continental de Alerta Prévio (CEWS) estritamente ligado às unidades de observação e monitorização das organizações sub-regionais, como a CEDEAO e a SADC. Compete às unidades de observação e monitorização coligir e processar os dados a nível sub-regional e transmiti-los para a sala do CEWS. O grande objectivo é simplificar e reduzir os esforços.

  1. No quadro da Mediação e Resolução de Conflitos, a intervenção africana teve lugar, por exemplo, no Burundi (com mediação sul-africana), RDC, Somália e Sudão (através do IGAD – Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento), Libéria, Serra Leoa, Costa do Marfim.

O PAPEL DA CEDEAO

  1. Presentemente, a CEDEAO é a única organização sub-regional africana com capacidade para fazer intervenção militar, dado que funciona como um sistema de defesa integrado, através do seu braço armado, o ECOMOG (Ecowas Monitoring Group). Contudo, a CEDEAO possui uma grande dependência externa em meios logísticos e financeiros. Ela já interveio na Libéria (1990-1997), Serra Leoa (1993-2000) e na Guiné-Bissau (1998-1999), com resultados que foram objecto de fortes críticas, pois de missões de paz evoluíram para campanhas militares, com a Nigéria a colocar-se a favor de uma das facções ou defendendo os seus interesses nacionais.

  1. Em 1999, CEDEAO criou o Conselho de Mediação e Segurança, como mecanismo para a resolução de conflitos na sub-região. O Conselho de Mediação e Segurança permite a intervenção militar desde que a resolução seja aprovada por uma maioria de 2/3 dos votos.

  1. A CEDEAO criou igualmente uma unidade contra a proliferação de armas ligeiras e constituiu um Fundo para a Paz (2003), com vista a financiar as intervenções militares e assim diminuir a dependência das contribuições financeiras feitas pelos países ocidentais.

  1. Ela dispõe também de centros de treinamento regionais para a formação específica de militares para as missões de paz, além das academias militares da Nigéria, Mali e Ghana (Kofi Annan International Peacemaking Training Centre - 2004), com vista a formação de uma futura força permanente. Dessa organização sub-regional, a Nigéria é ainda o único país com uma substancial capacidade militar em termos aéreos e navais.

  1. Em 2003, a Nigéria voltou a intervir militarmente na Libéria recorrendo ao destacamento militar que tinha na Serra Leoa. Desta forma, a CEDEAO contribuiu para o alcance de um acordo de paz entre o governo e os dois principais grupos rebeldes.

  1. A posição assumida pela CEDEAO no conflito da Costa do Marfim, tentando evitar o conflito militar pós-eleitoral, demonstrou a intenção de a organização jogar um papel mais pró-activo. Contudo, não foi coroada de êxito.

  1. Com vista a antecipar-se aos acontecimentos, estão em curso Centros de Alerta nalguns países da África Ocidental, coordenados pelo Centro de Observação e Monitorização sedeado em Abuja.

O PAPEL DA SADC

  1. À semelhança do Conselho de Mediação e Segurança da CEDEAO, a SADC possui o chamado Órgão de Política, Defesa e Segurança (criado em meados da década de 90), para a prevenção e resolução de conflitos. Tal órgão tem sido praticamente inoperante, devido:

i) Ao seu carácter intergovernamental, a querelas políticas entre os Estados-membros;

ii) À ausência de valores comuns (coexistem regimes autoritários e democráticos);

iii) À disparidades entre os elementos orientadores das várias políticas externas (pacifistas e militaristas);

iv) E uma fortíssima disputa pela afirmação do poder e influência regionais.

  1. No quadro da SADC, a África do Sul interveio no Lesotho, colocando-se claramente ao lado de uma das partes.

  1. Contudo, quando ocorreu o conflito na RDC, posicionaram-se dois campos: África do Sul, Tanzânia e Zâmbia optaram por uma posição mais neutral; Angola, Zimbabwe e Namíbia tornaram-se adeptos da intervenção militar. A SADC tem, pois, uma grande dificuldade em manter alguma equidistância face aos beligerantes.

  1. Em 2001, a SADC assinou um Pacto de Defesa Comum que permite a intervenção não só contra agressores externos, mas também em conflitos intra-estatais que representem uma ameaça potencial à segurança regional.

O PAPEL DA UNIÃO AFRICANA

  1. A União Africana perspectiva criar uma Força Militar própria composta pelas chamadas Brigadas Stand-by nas 5 sub-regiões africanas: África do Norte, Central, Oriental, Ocidental e Austral. Tais Brigadas ficarão sob supervisão máxima da União Africana, como foi decidido pelos líderes africanos em 2004. Porém, a intervenção unilateral de países vizinhos em alguns conflitos tem complicado o papel da UA.

  1. A “African stand-by force”, teria cerca de 15.000 efectivos distribuídos em 5 brigadas de forças militares, policiais e observadores. Tal força poderá ser mandatada por decisão do Conselho de Paz e Segurança (CPS) da UA, através de uma maioria de 2/3.

  1. A missão de paz da UA no Burundi, em 2003/2004, foi um primeiro exercício nesse sentido. Tratou-se do envio de um efectivo de cerca de 2.600 militares oriundos da Etiópia, Moçambique e África do Sul, para supervisionar o cessar-fogo e contribuir para a estabilização política do país. Teve, porém, enormes dificuldades financeiras que acabaram por minar e prejudicar a sua acção. O efectivo africano acabou por ser “absorvido” pelas forças da ONU.

  1. Ainda prevalecem conflitos em África como o do Darfur e da Somália, onde existem forças de manutenção de paz para apoio ao Governo Federal Provisório.

  1. Nos últimos dias, agudizou-se a situação no Sudão, com a disputa entre forças do Norte e do Sul. Pelo menos do ponto de vista teórico, estará em vias de solução o problema do Sudão, com a perspectiva de criação do Estado Independente do Sul do Sudão (9 de Julho de 2011). Mas, a África continuará a suportar por mais algum tempo os regimes autoritários do Zimbabwe e do Madagáscar, até mesmo o da Eritreia.

  1. Fala-se cada vez mais insistentemente na realização, neste ano, de 17 actos eleitorais no nosso continente, com destaque para o que terá lugar na RDC.

A IMPORTÂNCIA DA ONU

  1. Ainda é a ONU que continua a jogar um papel crucial nos diversos processos de paz africanos, por razões práticas, e como factor de legitimação das intervenções regionais.

  1. Muitas vezes, assiste-se a uma “absorção” das forças africanas no contingente das Nações Unidas (Em 2004, por exemplo, as forças da CEDEAO foram integradas nas forças da ONU na Costa do Marfim - ONUCI).

  1. O grande risco que correm estas acções de intervenção militar é a possibilidade de permanecerem ainda no terreno muitos dos factores que foram determinantes para o despoletar da violência. Daí que seja fundamental a implementação de mecanismos e instrumentos de prevenção dos conflitos, ainda inexistentes na maior parte das organizações regionais de África.

UMA AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DA OUA

  1. No dia 25 de Maio de 1963, constituiu-se, em Addis Abeba, a Organização de Unidade Africana (OUA). São já passados 48 anos desde essa data que é memorável e de grande simbolismo para o nosso continente, cujo acto constitutivo contou com a participação de representantes de 32 países africanos independentes, assim como diversos movimentos de libertação.

  1. Do documento constitutivo da Organização de Unidade Africana constavam 6 grandes objectivos:

· Promoção da unidade e solidariedade entre os estados africanos;

· Coordenação e intensificação da cooperação entre os estados africanos, com vista a garantir uma vida melhor para os seus povos;

· Defesa da soberania, integridade territorial e independência dos estados africanos;

· Erradicação de todas as formas de colonialismo em África;

· Promoção da cooperação internacional, respeitando a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos do Homem;

· Coordenação e harmonização das políticas dos estados membros nas esferas política, diplomática, económica, educacional, cultural, da saúde, bem-estar, ciência, técnica e defesa.

  1. Ao longo desses 48 anos, foram inúmeros os conflitos internos nos nossos estados e ocorreram até mesmo conflitos violentos envolvendo estados africanos. É isso que me leva a afirmar que a unidade e também a solidariedade entre os estados africanos nem sempre foram um facto. Eis, pois, um dado que ilustra a nossa afirmação: mais de metade dos conflitos produzidos no mundo tiveram lugar em solo africano.

  1. Dos inúmeros conflitos internos que a África registou, os da Serra Leoa, Libéria, Argélia, Angola, Ruanda, Congo, e da Somália foram, sem sombra de dúvidas, os que mais mancharam a imagem do nosso continente. Eles e outros conflitos contribuíram – e de que maneira – para o actua estado de empobrecimento e de subdesenvolvimento que nos caracteriza. Muitos desses conflitos vestiram roupagem étnica, mas outros ganharam também contornos religiosos. Na maior parte dos casos, quer a OUA, quer o seu sucedâneo, a União Africana, mostraram-se incapazes de os prevenir ou de lhes dar solução.

  1. Os conflitos entre estados africanos não foram muitos, mas foram em número e com gravidade suficientes para serem menosprezados. Recordo, por exemplo, as guerras travadas entre a Etiópia e a Eritreia, entre o Ruanda e a República Democrática do Congo, entre o Senegal e a Guiné-Bissau.

  1. Outro dos objectivos inscritos na Constituição da OUA – a cooperação entre os estados africanos – deve igualmente merecer a nossa atenção. É que, não obstante hoje existirem espaços de cooperação para os países africanos, e até mesmo com tendência para aumentarem, todavia, o seu grau de desenvolvimento, na maioria dos casos, é incipiente. Senão, vejamos:

i) O processo de integração das economias africanas efectua-se ainda no quadro sub-regional, mais concretamente nas 5 sub-regiões em que o nosso continente de subdivide;

ii) O grau de maturação desses espaços de integração sub-regional tem profundas diferenças, pois, em alguns domínios, há um claro avanço (África Ocidental e África Austral), mas, noutros domínios, os desenvolvimentos são somente uma miragem.

  1. Um dos problemas com que se debate o processo de integração das economias africanas tem a ver com a participação de alguns países em mais de um espaço de integração. Tal multiplicação de esforços confunde os processos e reduz a sua eficácia.

  1. Mesmo que, por vezes, se manifestem tendências centrífugas, a integridade territorial dos estados africanos não foi severamente molestada. Porém, a nossa história recente regista já o surgimento de novos estados fruto de rupturas internas, como foi o caso da Eritreia, que se desanexou da Etiópia, após uma longa guerra. Deu-se, ainda, a pulverização da soberania nacional na Somália, um estado que passou à condição de um leque de pequenos territórios dominados por grupos clânicos.

  1. A Líbia está a ser objecto de fortes ataques militares levados a cabo por forças da NATO e de alguns países ocidentais, sem que a nossa organização continental, a União Africana, mostre competência para ajudar o alcance de uma paz justa e duradoura.

  1. O contributo da OUA para a erradicação do colonialismo, o quarto objectivo definido em 1963, é uma das suas principais bandeiras. A pressão política exercida pela OUA e demais formas de ajuda que prestou aos movimentos de libertação tornaram-se cruciais para a libertação total dos nossos povos do colonialismo. Contudo, ainda subsiste a chaga da ocupação por Marrocos do território do Sahara Ocidental, situação que é tida por muitos como uma espécie de colonialismo intra-africano.

  1. O desrespeito pelos direitos humanos no nosso continente é uma péssima imagem que passamos ao mundo. Em África, mantêm-se irredutíveis regimes políticos que atropelam descaradamente os mais elementares direitos humanos. Somos também o espaço privilegiado para medrarem poderes autocráticos e até mesmo regimes ditatoriais. Prevalecem ditaduras mais ou menos explícitas que são, sobretudo, garantidas pelos recursos naturais abundantes que alguns estados possuem e que, foram branqueados pelos nossos parceiros ocidentais, em nome dos seus interesses egoístas.

  1. Desponta, porém, uma nova era com o alastramento das reivindicações populares por mais liberdade e por verdadeiras democracias. Os ventos que hoje sopram a partir do norte de África terão, a prazo, repercussões sobre a totalidade do nosso continente. E então estará cumprida uma parte do quinto objectivo definido na Constituição da OUA.

  1. O último grande objectivo definido no projecto constitutivo da OUA, a coordenação e harmonização de políticas, é um percurso que se vai fazendo, de um modo gradual e muito lentamente. Em algumas áreas, registam-se avanços. Mas há ainda, também, demasiadas hesitações, o que pode dificultar a nossa caminhada para nos tornarmos um continente mais unido e mais próspero.

  1. Por fim, e em homenagem ao simbolismo da data que agora se comemora, eis, em resumo, um quadro nada abonatório sobre a África que hoje temos e que compete a nós melhorar:

i) A grande maioria dos países africanos ocupa os lugares menos honrosos no que diz respeito ao bem-estar das populações. Por exemplo, são países africanos os 3 pior colocados no ranking da mortalidade infantil no mundo – Serra Leoa, Angola e Níger;

ii) As mais baixas Esperanças de Vida ao Nascer são também de países africanos – Serra Leoa (38 anos), Malawi (39), Uganda (40), Zâmbia (40), Ruanda (41), Burundi (43), Etiópia (43), Moçambique e Zimbabwe (44), Burquina Fasso (45);

iii) O mesmo quadro repete-se no que concerne à Taxa de Analfabetismo – Níger (86%), Burquina Fasso (79%), Gâmbia (67%);

iv) Existem no nosso continente inúmeras crianças-soldados, em países como: Argélia, Ruanda, Burundi, Congo Brazzaville, RDC, Serra Leoa, Sudão, Uganda. Infelizmente, Angola não escapou a este flagelo;

v) O trabalho infantil é uma gritante e revoltante realidade, sendo muito expressivo em países como o Benin, Ghana, Togo e Nigéria;

vi) Actualmente, a África regista o maior número de crianças órfãs por causa da SIDA: acima de 14 milhões. Tem também a maior percentagem de refugiados que, na sua grande maioria, são crianças.

vii) Presentemente há 14 mulheres Chefes de Estado no mundo, e somente uma delas é africana: Ellen Jonhson Sirleaf, da Libéria, desde 2005.

viii) Desde 1995, o número de mulheres parlamentares em África duplicou ou mais do que duplicou, mas ainda é na Europa Ocidental que existem mais mulheres parlamentares (acima de 30%). Um dado positivo a reter: em 2008, no Ruanda, o número de mulheres parlamentares (56%) ultrapassou o número dos homens. As mulheres também estão muito bem representadas no Parlamento da África do Sul, bem como no de Angola, onde ainda pode e deve melhorar.

ix) Contudo, no nosso continente, ainda se pratica a mutilação genital feminina, mesmo que tal prática esteja a diminuir.

x) É na África Sub-sahariana que morrem mais mulheres por causa do parto.

xi) 60% dos seropositivos em África são de sexo feminino.

xii) Não poucas vezes, as mulheres auferem salários inferiores aos dos homens pela prática dos mesmos trabalhos (70% a 80%).

  1. É esta e as próximas gerações de africanos que terão de alterar o quadro que acabei de traçar, o que só sucederá se os processos democráticos em curso forem concluídos com êxito.

  1. Sem liberdades democráticas acentuar-se-ão as clivagens étnicas, e as disputas religiosas assumirão contornos cada vez mais perigosos. A centralização dos poderes – característica essencial dos regimes autocráticos e ditatoriais – aprofundará ainda mais as nossas assimetrias regionais. E, assim, veremos permanentemente adiado o nosso sonho de competirmos em pé de igualdade com os países mais avançados do mundo.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O TERROR DOS TALIBÃ

  1. A notícia surgiu chocante, mas não surpreendeu: “Talibã realizam ataque no Paquistão, com um saldo de, pelo menos, 80 mortos e centena e meia de feridos. Dizem querer vingar a morte de Osama Bin Laden.” Era previsível que tal aconteceria, porém, com a seguinte incógnita: quando e onde? Pois é, a carnificina ocorreu numa academia paramilitar do Paquistão que adestra recrutas para a guarda fronteiriça. Chegaram ainda mais pormenores: a academia localiza-se em Charsadda, no norte do Paquistão – uma cidade rodeada de campos de trigo, a 135 quilómetros de Islamabad, a capital do país, na fronteira com o Afeganistão, a 35 quilómetros de Peshawar.

  1. Tive também a oportunidade de ler parte das palavras do porta-voz dos talibã, na mensagem telefónica que transmitiu à agência noticiosa britânica Reuters: “Esta é a primeira vingança pelo martírio de Bin Laden. Vai haver mais e maiores no Paquistão e no Afeganistão”. Está, pois, tudo dito, sem quaisquer reticências: a sanha assassina está à solta; e, novamente, sem controlo.

  1. Digo que a sanha assassina está sem controlo, porque a vingança pela morte de Bin Laden será praticada, pelo menos, por dois grupos: os talibã, que obedecem a um comando centralizado, e a Al-Qaeda que, depois da ofensiva americana que pôs fim ao poder talibã no Afeganistão, evoluiu para uma estrutura com células a operarem com demasiada autonomia. Por isso, vão espalhar o terror um pouco por todo o lado, sem obedecerem a um comando único. Será a pulverização do terror.

  1. Foi essa a explicação – ainda que demasiado simplificada – que prestei a um amigo que me questionou sobre o significado e o alcance do recente ataque do grupo talibã no norte do Paquistão. Prometi-lhe também que o resto, sobretudo o pano de fundo de tudo isso, eu tentaria explicar mais minuciosamente na minha próxima crónica. Portanto, nesta que aqui vos apresento. Creio ser melhor assim, pois, eventualmente, poderei ajudar mais pessoas a compreenderem o que se passa naquela parte do mundo.

  1. O movimento talibã nasceu no Paquistão, aquando da invasão soviética ao Afeganistão. Surgiu com um forte suporte norte-americano e também dos serviços secretos do Paquistão, aliados dos EUA. Apareceu como um movimento fundamentalista islâmico, munido de estrutura política e militar. O recrutamento das suas bases faz em especial no seio do grupo étnico pashtun, disseminado pelo Paquistão e pelo Afeganistão. Os talibã eram chamados “Estudantes de Teologia”, e provinham de campos de refugiados, sendo, sobretudo, formados ideologicamente nas madrassas, as escolas islâmicas, onde também recebem treino militar.

  1. O êxito inicial do movimento talibã deveu-se à desorganização dos grupos que se instalaram no poder no Afeganistão, depois da derrota soviética. Tais grupos protagonizaram inúmeras e constantes lutas internas que lançaram o país no caos e facilitaram a entrada em Cabul dos talibã, mais estruturados, organizados e mais coesos. Pretenderam estabelecer um Estado teocrático, de acordo com os princípios do Islão, nas vertentes, política, cultural, social económica e jurídica.

  1. Os talibã derrubaram o Presidente Rabbani e o chefe militar, o lendário Comandante Massoud. Senhores da capital do país, passaram a implementar a sua lei, a ferro e fogo, cometendo inúmeros assassinatos, inclusive, o do ex-presidente Najibullah.

  1. Chamou especialmente a atenção do mundo a destruição, em Março de 2001, das estátuas milenares dos Budas de Bamiyan, consideradas Património da Humanidade pela UNESCO. Para os talibã, tais estátuas seriam ídolos, e os ídolos são contrários aos preceitos do Alcorão.

  1. O ataque às Torres Gémeas de Nova York, perpetrado por homens da Al-Qaeda, a mando de Osama Bin Laden, ditou a sorte dos talibã que foram desalojados do poder pelos norte-americanos.

  1. Hoje os talibã levam a cabo actos de guerrilha que se estendem por toda a sua zona de influência, no Afeganistão e no Paquistão. Contam ainda com a solidariedade militante de outros extremistas islâmicos idos de todo o mundo, mas, muito em especial, da Chechénia, Uzbequistão, Tajiquistão, de vários países árabes.

  1. O Mullah Omar, o líder dos talibã, vive escondido. Suspeita-se que no Paquistão – tal como estava Osama Bin Laden – de onde dirigirá a acção do movimento.

  1. O ex-presidente dos EUA, George W. Bush, pretendeu derrotar no terreno os insurgentes do Iraque e do Afeganistão. Não conseguiu, nem com uns, nem com outros. Deixou, sim, a “batata quente” nas mãos do seu sucessor, Barack Obama que, reformulando a estratégia, deu um tratamento diferenciado aos dois cenários de guerra: intensificação da acção militar no Afeganistão e a busca de um desengajamento progressivo das forças militares do seu país do teatro de guerra do Iraque.

  1. Porém, Barack Obama ter-se-á posteriormente apercebido da dificuldade de vencer a guerra no Afeganistão e, por isso, exercita uma nova estratégia que passa pela busca de um entendimento capaz de levar à participação dos próprios talibã na vida política interna. Será, julgo eu, um exercício demasiado difícil, pelo carácter extremista desse grupo, que é incapaz de coexistir com a diferença e um figadal inimigo de toda diversidade.

  1. Quando se luta pela imposição de um Estado teocrático, por definição, não se aceita a pluralidade religiosa ou outra qualquer pluralidade. Nos tempos modernos, a laicidade do Estado é um dos pressupostos basilares da democracia, e esta funda-se, como é lógico, na multiplicidade de ideias e na rotatividade do poder.

  1. Desconfio que, depois de Bin Laden, talvez o Mullah Omar venha a ter o mesmo destino.

Sem comando único e de cabeça perdida, talvez o grupo talibã se dissemine, passando, então, a empreender actos suicidas até que, finalmente, desapareça para sempre. Nessa altura, terão já semeado a dor e o luto por toda a parte por onde passarem. Eu desejo que esse seu percurso seja o mais curto possível, para o bem da humanidade!

HISTÓRIAS DE SINAL CONTRÁRIO

1. Aprendi que não nos devemos congratular com a morte de alguém e mantenho-me fiel ao princípio, não propriamente por motivos religiosos mas, sim, por razões de ordem ética e moral. Mas, na vida política, a morte de alguém pode mesmo causar reacções inesperadas, por vezes, até de tons distintos: por exemplo, há quem festeje, há quem apenas aplauda, há também os que se mantêm circunspectos e praticamente indiferentes, e até os que lamentam ou choram copiosamente. É verdade, somente a política é capaz de gerar reacções tão contraditórias.

2. Por exemplo, as mortes de Joseph Stalin, Malcolm X, Patrice Lumumba, de modo algum provocaram os mesmos sentimentos de pesar que as de Ernesto Che Guevara ou Martin Luther King. Eu tenho memória de algumas dessas reacções, excepto no caso de Joseph Stalin.

3. Hoje, aponta-se Joseph Stalin como responsável pelo cometimento dos crimes mais hediondos, embora haja quem o veja apenas como um dos grandes vencedores da luta contra o nazismo.

4. Quando Stalin morreu, no dia 5 de Março de 1953, o movimento comunista em todo o mundo sentiu como que uma grande perda, ao ponto de, na União Soviética, os operários o terem tributado com uma homenagem de 5 minutos de profundo silêncio. Nas outras partes do mundo, muitos operários também se solidarizaram com os congéneres soviéticos. Foram aos milhões os que acompanharam o enterro de Stalin. Contudo, se nos debruçarmos com atenção sobre a história, veremos também que foi Joseph Stalin quem mandou assassinar Trotsky – o seu principal opositor interno, morto a machadada quando se encontrava exilado no México.

5. Joseph Stalin fez sucessivas purgas no seu partido e no exército soviético, e deslocou, compulsivamente, dos seus lugares de origem milhões de pessoas. Pelo menos em parte, foi ele que criou o quadro demográfico de que muitos países ainda hoje se ressentem e que explica determinados conflitos de difícil solução. Todavia, confere-se, igualmente, a Joseph Stalin o mérito de ter feito da União Soviética uma superpotência mundial, com um Império ao seu redor de proporções extraordinárias.

6. Durante o XX Congresso do Partido Comunista, o sucessor de Stalin, Nikita Khrushchov, apontou-o como o responsável pela morte de milhões de pessoas, ele que era, até então, tido por muitos como “O Pai dos Povos”.

7. Malcolm X foi dos mais controversos líderes negros norte-americanos. Teve uma infância problemática e uma adolescência prenhe de episódios chocantes. Quando se encontrava preso, converteu-se ao islão, passando a seguir o pensamento de Elijah Muhammed, líder da Nação do Islão e a dedicar-se, com enorme tenacidade, à luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos.

8. Inicialmente, Malcolm X apostou na separação das raças e na criação de um Estado independente destinado aos negros. Entrando em contradição com o seu mentor, Elijah Muhammed, e tendo rejeitado o projecto inicial, é assassinado com 13 tiros, na presença da mulher – que estava grávida – e das quatro filhas. A morte de Malcolm X despoletou reacções de sinal contrário, fruto da sua trajectória e do seu discurso empolgante. Homem controverso, ele inspirou alguns movimentos negros como, por exemplo, os Panteras Negras.

9. Patrice Lumumba teve também uma existência relativamente efémera e, tal como Malcolm X, cheia de episódios marcantes. Morreu aos 35 anos de idade. Foi, sem sombra de dúvidas, o mais conhecido lutador pela independência do Congo do julgo colonial belga e um inequívoco defensor da unidade dos povos africanos contra o colonialismo. Ainda hoje, é visto como um dos grandes símbolos do período áureo das independências africanas.

10. Em pouco tempo, Lumumba transformou-se no alvo privilegiado dos seus adversários internos que o derrubaram do cargo de primeiro-ministro ao cabo de 10 semanas de mandato. Aprisionaram-no e assassinaram-no, com a cumplicidade e o apoio dos governos belga e norte-americano – para gáudio dos colonos sedentos de vingança pela sua popularidade junto dos povos negros. Patrice Lumumba tem hoje o seu nome imortalizado numa Universidade na Rússia.

11. Inspirando embora um aceso ódio nos sectores mais conservadores dos Estados Unidos da América, Martin Luther King é um dos grandes ícones desse país, graças ao seu papel inigualável na luta pelos direitos cívicos dos negros norte-americanos.

12. À semelhança dos líderes negros que antes citei, Martin Luther King é assassinado ainda relativamente jovem, um ano antes de completar 40 anos de idade, em 1968. Pastor protestante, vigoroso tribuno, intelectual de múltiplas facetas, foi, ara todos efeitos, o grande impulsionador de uma campanha de transformação social por métodos não violentos e de amor ao próximo. O seu percurso ganhou relevância logo após o episódio que envolveu Rosa Parks, a mulher negra que negou obediência às regras discriminatórias que vigoravam nos transportes norte-americanos.

13. É famoso o papel do Dr. King no boicote aos transportes de Montgomery por si co-liderado e tido como o ponto de partida para a longa marcha pela igual de direitos dos negros. A trajectória de luta seguida pelo Dr. King foi distinta da de Malcolm X, mesmo que a reivindicação fundamental dos dois fosse a mesma: os direitos civis.

14. Há já unanimidade em torno da figura do Dr. King e do seu papel na história, e a América rende-lhe todos os anos a mais elevada homenagem: desde 1993, e na terceira segunda-feira de Janeiro, a América pára e faz feriado nacional: é o Dia de Martin Luther King.

15. Como Martin Luther King, “Che” Guevara também morreu aos 39 anos de idade, depois de uma vida aventureira. Morreu na selva boliviana. Em poucos anos de vida, “Che” Guevara foi tudo isto: médico, guerrilheiro, escritor, jornalista. Abraçou e amou duas pátrias: Cuba e Argentina. “Che” queria abraçar todo o mundo no projecto de transformação social que animou a sua curta vida. O campo privilegiado da sua acção foi a América Latina, mas as lutas independentistas africanas também lhe mereceram a atenção e o alento. Inclusive, a nossa luta.

16. Ernesto “Che” Guevara tornou-se o símbolo mundial da rebeldia, mesmo que se lhe apontem erros na condução das lutas em que se envolveu e até durante o período revolucionário em Cuba, de que foi um dos máximos dirigentes. O retrato de “Che” Guevara, colhido por Alberto Korda, tornou-se uma das imagens mais disseminadas pelo mundo. E o seu assassinato ainda emociona muita gente.

17. A morte de Osama Bin Laden, líder da Al-Qaeda, no dia 1 de Maio, gerou a soma de todos os sentimentos que as figuras antes citadas recolheram – pela complexidade da sua personalidade e pela sua trajectória de vida. Cada um de nós poderá mesmo invocar razões suficientes para justificar o comportamento que teve face à notícia da sua morte.

18. Ao tomarem conhecimento do resultado da operação que acabara de ocorrer no Paquistão, milhares de norte-americanos saíram à rua, rejubilando. Finalmente, soldados especiais norte-americanos haviam caçado e eliminado o homem que ordenara o ataque às Torres Gémeas de Nova York, no dia 11 de Setembro de 2001, e de que resultara a morte de cerca de 3.000 indivíduos de várias nacionalidades, muitos deles tão muçulmanos como Osama Bin Laden.

19. Antes desse ataque traiçoeiro, Osama Bin Laden ordenara outros ataques igualmente mortíferos a embaixadas norte-americanas no Quénia e na Tanzânia, matando e ferindo centenas de pessoas. Corria então o ano de 1998. Fê-lo, também, relativamente ao navio dos Estados Unidos USS COLE, que se encontrava atracado no Yémen, no ano 2000.

20. Mesmo que se tenha baseado no Afeganistão e, depois, refugiado no Paquistão, a acção de Osama Bin Laden tornou-se transfronteiriça e privilegiou sempre o terror. Osama Bin Laden não pretendeu governar um qualquer Estado ou impor uma ordem mundial mais justa e mais inclusiva. Perseguiu uma acção vingativa contra quem não se identificasse como muçulmano; e mais ainda, quem não se identificasse como um muçulmano radical. Por isso, esse homem nunca será capaz de gerar emoções maioritariamente positivas, mesmo que tenha seguidores fiéis por quase todo o mundo.

Depois da sua morte, uma parte do mundo respirou de alívio – creio que a maior parte. A outra parte – minoritária – vai continuar a chorá-lo como mártir, como se o radicalismo e o fanatismo religioso fossem compatíveis com a modernidade e, em especial, com as liberdades, elas que são as causas mais saudáveis para os grandes homens abraçarem.