quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O TRÁFICO DE SERES HUMANOS

1. O eventual envolvimento de 10 cidadãos norte-americanos (5 homens e 5 mulheres) no tráfico de 31 crianças haitianas ainda faz manchete na mídia internacional. As televisões de todo o mundo têm mostrado os vários ângulos do problema, e nós vamo-nos familiarizando com os rostos de alguns desses cidadãos, tão repetidas são as vezes que os vemos no ecrã.

2. Não é possível garantir, desde já, que se trata de gente bem intencionada que apenas se descuidou, por não ter tomado as medidas mais adequadas para levar consigo as crianças, para depois lhes dar um melhor destino. Igualmente, não é possível afiançar que estamos diante de criminosos disfarçados de religiosos ou de agentes humanitários, apostados apenas em comercializar 31 inocentes que foram apanhados na teia do tráfico internacional de seres humanos. Todas as hipóteses estão em aberto.

3. Perante qualquer justiça civilizada, os 10 cidadãos norte-americanos ainda gozam da presunção de inocência. A presunção de inocência é um instituto jurídico criado para proteger e salvaguardar os direitos de todo o cidadão que ainda não foi condenado pela prática de um acto delituoso. O inocentar e o condenar são prerrogativas dos juízes, embora eu acredite que, para o cidadão comum, os 10 cidadãos norte-americanos tenham ganho já a imagem do vil criminoso. Tráfico de mulheres e tráfico de menores são fenómenos sociais que preocupam cada vez mais a humanidade e, por isso, têm merecido cuidados redobrados por parte das autoridades de muitos países.

4. Nos últimos tempos, temos assistido, na nossa comunicação social, a um aumento do número de referências a situações de maus-tratos infringidos às crianças em algumas das nossas comunidades. Vai crescendo, também entre nós, o temor da existência de gente que apostou em traficar menores, levando-as depois para outros países, onde são sujeitos a práticas arrepiantes. Vamos ainda tendo conhecimento de notícias sobre a tomada de medidas dissuasoras, pelas autoridades, para a prevenção de tais práticas.

5. Depois do tráfico de drogas, o tráfico de seres humanos, sobretudo, aquele que está centrado em crianças e em mulheres, é hoje o negócio mais lucrativo do crime organizado, ao nível mundial. O UNICEF afirma mesmo que, por ano, se traficam acima de 1 milhão de crianças, o que aconselha (e torna mesmo imperioso) uma reacção enérgica e global.

6. O tráfico de seres humanos tem sofisticado os seus métodos e dispõe de meios cada vez mais modernos e tecnologicamente avançados. Os traficantes promovem, por exemplo, a sua expansão com recurso à Internet.

7. O que sucedeu agora no Haiti não é um facto estranho. Muito menos se trata de algo inédito. Não poucas vezes, os haitianos entregam os seus filhos menores para adopção, como a única alternativa para lhes garantir um futuro melhor, livrando-os assim da miséria centenária que assola aquele país caribenho. A entrega voluntária de crianças para adopção, e mesmo até a doação de sangue – não por razões humanitárias, mas como única alternativa para se conseguir alguma receita – são fenómenos recorrentes entre os habitantes mais pobres do Haiti. Porém, a venda de sangue por parte dos pobres começou a ser mais controlada, quando se colocou em pauta a questão da qualidade e da segurança do produto, face às eventuais doenças que ele poderia esconder.

8. Os impactos sociais do sismo que varreu a capital haitiana e seus arredores são da mais variada ordem, e apenas o decorrer do tempo nos poderá mostrar a sua verdadeira dimensão. Mas, uma coisa é certa: choca-nos ver as imagens de devastação, associadas à turbulência e à agitação que se apossaram da cidade, bem como o seu aproveitamento por marginas consagrados e outros oportunistas. Dá-nos, porém, alguma satisfação ver o ainda que tímido regresso da autoridade do Estado, ou até a participação da comunidade internacional no esforço de normalização da vida naquele desgraçado país.

9. A denúncia do possível envolvimento dos 10 cidadãos norte-americanos na retirada ilícita das 31 crianças haitianas e seu transporte para a vizinha República Dominicana funcionou como uma nódoa na imagem pública da comunidade internacional envolvida no socorro ao Haiti. E tal se torna ainda mais chocante quando se ampliam pelo mundo movimentos de solidariedade para com as vítimas do sismo. São actores de cinema e teatro, são músicos, são desportistas, são intelectuais, são instituições religiosas, são grupos humanitários – todos eles a quererem dar o seu contributo para ajudar a minorar o sofrimento daqueles seres humanos que tiveram a desdita de estar no local errado à hora errada…

10. Mais uma vez, a tragédia humana permitiu dar relevo à parte boa do ser humano. Vão se mobilizando meios humanos, materiais e financeiros que são depois canalizados para o Haiti. Houve também pronta reacção de autoridades públicas e governamentais de alguns países, com os Estados Unidos da América a evidenciarem-se entre todos, como é lógico e como seria espectável.

11. Hoje assume-se que o tráfico de menores é um fenómeno global. O UNICEF sinaliza em milhares as crianças que se transaccionam, por exemplo, entre a Europa Oriental e a Europa Ocidental. Daí serem também crescentes as notícias de sequestros que, depois, alimentam as redes de tráfico. Algumas dessas crianças traficadas são transformadas em mão-de-obra barata, outras são forçadas à prostituição, sofrendo ainda várias formas de violência e abusos sexuais. Referem-se casos de crianças forçadas a praticar actividades criminosas, como roubar ou vender drogas. A adopção ilegal é um outro destino de muitas das crianças traficadas.

12. Os grupos mafiosos que actuam no comércio de crianças só têm êxito e prosperam, porque há quem procure e fique com tais crianças. Melhor dizendo, porque há um mercado consumidor. A Internet facilita os contactos além fronteiras, conectando potenciais vendedores com potenciais compradores. O trafico ilícito de crianças prospera ainda porque existem comunidades onde a pobreza impera de um modo asfixiante e avassalador.

13. Não obstante já exista um enquadramento legal e se desenhem estratégias para a protecção das crianças, no nosso país são muito frequentes as notícias sobre abusos sexuais, exploração e até desaparecimentos misteriosos de crianças. Os jornais e revistas de fim-de-semana trazem à luz tais fenómenos, antes pouco conhecidos.

14. A maioria da nossa população, cerca de 68%, vive na pobreza – e 25% vivem em condições de pobreza extrema. O relatório recentemente publicado pelo Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, em colaboração com a ONG “Save the Children”, chama a atenção para a situação social das crianças angolanas.

15. Não me é possível resistir à tentação de inserir como um quadro resumo essa realidade que potencia os fenómenos sociais mais perigosos: “11% das crianças angolanas são órfãs de um ou dos dois pais; 30% das crianças estão envolvidas nas piores formas de trabalho infantil; 44% das crianças não frequentam a escola; 25% das crianças abandonam a escola; são ainda aos milhares as crianças separadas dos seus familiares; é baixa a percentagem de crianças que possuem registo de nascimento; são também aos milhares as crianças órfãs devido ao SIDA; 45% das crianças já sofreram violência física e 48% sofreram violência psicológica em sua própria casa”.

16. Estes são dados que, eventualmente, careçam de alguma correcção. Contudo, a sua ordem de grandeza é bastante para nos aconselhar a olhar também para a nossa sociedade com o cuidado e atenção que hoje merece o Haiti, assim como as sociedades subdesenvolvidas de um modo geral.

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