segunda-feira, 7 de maio de 2012

O JOÃO SÁ – MEU AMIGO


  1. Pelo modo como conduzi a minha vida, a sociedade conhece-me mais pela intervenção social que faço, ou como político. Por essa razão, serão poucos os que conseguirão ver-me como o cidadão simples que eu também sou.



  1. Por detrás do activista social e do homem político, está ainda a minha outra face, a outra dimensão da vida que eu muito prezo: o homem de carne e osso como os outros.



  1. Eu tenho a perfeita dimensão da dor, emociono-me e deleito-me com a singeleza e a beleza da vida, sei rir e sei observar, aprecio a boa música e sigo apaixonado o ritmo da dança. Gosto de acompanhar um bom jogo ou outra qualquer competição desportiva, e não consigo conter as lágrimas quando o sofrimento da minha alma se sobrepõe à força da minha razão. Sobretudo, eu não tenho vergonha de chorar quando perco um Bom Amigo.



  1. Aprecio muito a minha condição de ser humano normal, tal como a maioria de vocês que me ouvem ou que me lêem. Para mim, a política e o activismo social têm um forte sentido ético, mas não são tudo na vida. A política e o activismo social são apenas e tão-somente uma simples consequência do firme compromisso que assumi com a história. Sou fiel aos meus afectos, e procuro diariamente apurar todos os meus sentidos.



  1. Ausentei-me do país por poucos dias e recebi, como uma autêntica pedrada, a notícia da morte de um Amigo de uma vida, numa amizade que começámos a construir ainda na nossa infância. Morreu o meu Amigo João Baptista Cirilo de Sá – sim, o João Sá do Bairro Indígena!



  1. Pelo que consegui apreender ao longo da vida, são poucas as amizades que se constroem na infância e que não perduram. Na maioria das vezes, essas amizades são perenes.



  1. A minha amizade com o João Sá venceu as turbulências da vida, sobrepôs-se às intempéries de todo o tipo que foram ocorrendo, transformou numa simples migalha a grandeza do tempo – venceu o tempo e a distância. A nossa amizade foi se edificando a partir da estaca zero, quando ainda éramos simples cidadãos sem bens nem títulos, sem cargos nem funções, quando a amizade assentava na pureza do sentimento. Estudámos juntos, durante um ano lectivo, no Colégio 28 de Maio, o Colégio da Dona Berta.



  1. O João Sá fez toda a instrução primária no Colégio 28 de Maio. Eu frequentei-o durante a preparação para o Exame de Admissão ao ensino secundário, e apenas no período da tarde porque, no período da manha, estudava na escola pública – na Escola 83.



  1. O João Sá entrou precoce para o Liceu Salvador Correia, com cerca de 9 ou 10 anos de idade. Eu era um pouco mais velho que ele e, por isso, assumi instintivamente a missão de o proteger.



  1. Recordo sempre o episódio da nossa primeira aula no Liceu: o João Sá a sair a correr e a chorar da aula de Matemática. Ficou com medo do aspecto duro, do ar carrancudo, e da voz sonora do professor de Matemática, o Glú-Glú.



  1. Ao vê-lo sair da sala e a chorar no corredor, eu também saí, para o acalmar... Disse-lhe que o professor não fazia mal, que agora já não era como no Colégio 28 de Maio, onde o tratamento era personalizado. Ali éramos tratados familiarmente, como se fôssemos filhos dos professores e, sobretudo, filhos da Dona Berta que era como se fosse a mãe de todos nós.



  1. E lá fomos nós estudando e fazendo o que todos os jovens fazem: fomos, em conjunto, descobrindo os segredos e os prazeres da vida. Crescemos unidos. Lá fomos alargando o nosso círculo de amizades: o Gigi e o Tilú Mendonça, o Manuel Jorge, o Juca Romero (amigo de infância e vizinho no Bairro Indígena), o Jaime Faria, o Nandito Pacheco, o Zé Van-Dúnem, o Fernando Graça (o “Capim”), o Raul Neto Fernandes, o Elisiário Vieira Lopes, o Carlitos Alonso Bastos, o Toni Filipe, o Sérgio Azevedo Braz. Tantos amigos e tantas amizades… Pelo meu lado, fui também fazendo outras coisas como, por exemplo, política, com alguns desses e com outros… Não me arrependo nada do que fiz. Talvez até pudesse ter feito mais e melhor.



  1. Estudávamos nos bares, tomando cafés e cariocas, para não dormir. Nos períodos que exigiam maior concentração, estudávamos em casa, ou na minha ou na do João Sá. A casa do João Sá tinha um caramanchão onde estudávamos mais à vontade.



  1. Tal como eu, o João perdeu o pai muito cedo. Recordo-me de ter acompanhado os seus derradeiros dias de vida. Quando o Velho Sá adoeceu, revezámo-nos para que ele tivesse sempre alguma companhia ao seu lado.



  1. Eu, em casa da família Sá, era tratado como um filho. Era o melhor amigo do João Sá. Era o seu companheiro do dia-a-dia e de todos os dias – éramos como se fôssemos irmãos. Talvez por isso, instintivamente, a sua filha mais nova, que foi minha aluna na Universidade, me trata hoje por Tio – o que eu aprecio bastante.



  1. No último ano do Liceu, o João deixou por fazer algumas disciplinas e, por isso, não entrou comigo para a Universidade. Nesse ano, entrei eu, o Manuel Jorge (que foi para Direito, em Coimbra), o Nandito Pacheco (que foi para Agronomia, no Huambo), o Sérgio Braz (para Medicina). O Gigi já lá estava, mais adiantado, assim como o Elisiário e o Raul Neto. O João Sá e o Juca Romero entraram no ano seguinte – foram também para Medicina, por isso, foram meus caloiros. O Toni Filipe, nosso amigo e colega de Liceu, natural de Ndalatando, morreu nesse ano, electrocutado. Sentimos muito a sua morte, pois nem teve tempo de viver a juventude.



  1. Quando regressei do Tarrafal, o João Sá já ia adiantado no Curso e eu mudei de rumo. O João tornou-se médico, militar e fez carreira nessa dupla condição. Atingiu a patente de General. Serviu a Pátria com dedicação e com inteligência – o que não lhe faltava.



  1. Uma das maiores satisfações que tive foi ser, por diversas vezes, visto, medicado e curado pelo meu Amigo João Sá. Graças a ele deixei de ter constantes crises de paludismo.



  1. Quando a sua filha caçula entrou para a Universidade, o meu Amigo João Sá telefonou-me para me pedir conselho sobre o rumo a dar aos estudos da filha. Senti, então, muito profundamente o prazer da nossa longa e sincera amizade. Percebi a mensagem que ele queria passar à filha: Aqui está o Tio Tininho, com quem podes contar para a vida!... O João já estava, então, debilitado pela doença que o acometera e que já o impedia de trabalhar. Era a passagem de um testemunho – o testemunho da Amizade.



  1. Sinto dificuldade em prosseguir o meu relato, pela forte emoção de ter perdido um dos meus mais queridos Amigos. Agradeço a vossa indulgência por terem acompanhado este meu relato, que é pessoal, que a vocês poderá não dizer nada mas que, para mim, diz muito.



  1. Foi esta a forma mais simples, a mais singela que encontrei para homenagear o João Sá, um irmão de uma vida. O Dr. Cirilo, como era, seguramente, mais conhecido.

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