quarta-feira, 18 de julho de 2012

TOMBUCTU E O APAGAMENTO DE UMA RICA HISTÓRIA


1.     Um ilustre professor da UCAN aproveitou uma conversa comigo para manifestar a sua indignação pelo facto de estar em curso, no Mali, a destruição dos monumentos mais simbólicos da história cidade de Tombuctu, situada mais ou menos na fronteira entre o norte e a parte sul daquele país.



2.     A destruição dos monumentos de Tombuctu só pode ser classificada como um acto de autêntica barbárie. Ela começou logo após a tomada do norte do país por rebeldes tuaregues ajudados por grupos islâmicos radicais, ao que se diz, ligados à Al-Qaeda do Magreb Islâmico. Mas, agora, com a guerra que estalou entre estes dois grupos outrora aliados, os islamistas radicais decidiram impor a sua ordem e passaram pura e simplesmente a arrasar tudo quanto, para eles, seja tido como atentatório aos seus preceitos religiosos.



3.     Recordei, então, ao professor que, quando os rebeldes se apossaram da parte norte do Mali, eu escrevi um artigo intitulado “Os Tuaregues e o Curdistão”, com o claro e indisfarçável objectivo de chamar a atenção para a relativa similitude que julgo existir entre a dispersão dos povos tuaregues por vários países africanos e o modo como os curdos se disseminam, também eles, pelo continente asiático. Coloquei, sobretudo, o acento tónico na questão das múltiplas identidades que o processo de criação formal de muitos Estados foi gerando, nos curdos e nos povos tuaregues.



4.     Eu sou de opinião que as múltiplas identidades de alguns povos contribuem para fragilizar as fronteiras físicas e geográficas que o processo colonial estabeleceu com uma dose de arbitrariedade, transformando-se, por isso, em factor de perturbação e de instabilidade permanente. O caso do Mali é exemplar, assim como o que se passa no Leste da RDC para a chamada Região dos Grandes Lagos.



5.     Espero, ansioso, que surja uma geração de líderes africanos com larga visão e com capacidade de entendimento dos fenómenos geopolíticos para, assim, darem solução a essas heranças, sob pena de repetirmos permanentemente o regresso ao ponto de partida, ou seja, à condição de países pobres e sem esperança.



6.     Recordo-me que, no texto que escrevi aquando do avanço dos tuaregues e seus aliados islamistas, “en passant”, aproveitei para discorrer um pouco sobre a riqueza do património histórico e cultural de Tombuctu.



7.     A cidade de Tombuctu é uma cidade milenar que, de algum modo, já representou a multiculturalidade africana, assim como a sã convivência possível entre povos songhai, tuaregues e árabes. Tombuctu foi, igualmente, uma expressão de tolerância religiosa envolvendo muçulmanos, cristãos e judeus.



8.     Para ilustrar melhor a histórica dimensão cultural de Tombuctu, falei da célebre universidade corânica de Sankoré e das famosas mesquitas de Djingareyber, Sankoré e Sidi Yahia, hoje feitas alvos privilegiados de fanáticos islamistas que se aproveitaram da fragilidade do poder central em Bamako, e da insipiência das estruturas e das forças de combate dos tuaregues. São, pois, os islamistas radicais, mais fortes e mais organizados, que agora procuram apagar para sempre todos os vestígios de uma civilização africana que entrou, com toda a justiça, nos anais do património material e imaterial da humanidade, reconhecido pela UNESCO, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.



9.     Em 2001, os talibans do Afeganistão decidiram, eles também, destruir as gigantescas estátuas de Buda, no Vale de Bamiyan, assim como outras imagens, considerando-as ofensivas. As estátuas do Vale de Bamiyan datavam de há mais de 1.500 anos, sendo tidas até ao século X como o ponto principal de um dos maiores complexos budistas do mundo. Chamaram, por isso, a atenção dos pesquisadores que procuram estudar os pormenores culturais daquela região, antes da sua conversão ao Islão.



10.                       Afinal, os islamistas radicais malianos e os talibans do Afeganistão não passam de uma mesma espécie gente retrógrada e com espírito medieval, situados embora em continentes distintos.



11.                       As notícias agora chegadas do Mali são, de facto, assustadoras. Dizem, por exemplo, que a aliança entre tuaregues e extremistas islâmicos se quebrou; que os radicais expulsaram os tuaregues de Tombuctu; que, aproveitando o domínio absoluto que têm sobre a histórica cidade, os islamistas partiram para a destruição pura e simples do seu património histórico.



12.                       A sanha destruidora dos radicais recaiu já sobre tumbas centenárias dos santos sufistas da cidade. Isto é importante. Por isso, procuro entender o porquê da destruição de tumbas dos santos sufistas; afinal, também islâmicos como os outros…



13.                       Os sufistas são uma corrente filosófica do Islão, cuja origem se perdeu no tempo. Tida como mística e contemplativa, procura desenvolver uma relação íntima, directa e contínua com Deus, socorrendo-se de cânticos, da música e da dança, práticas consideradas heréticas pelos muçulmanos adeptos da Sharia.



14.                       Os sufistas tanto podem existir dentro do ramo sunita do Islão, como no ramo xiita, até em outros ramos do Islão, ou mesmo em nenhum deles, pois admitem que se pode alcançar Deus fora do próprio islamismo. Daí que sejam, muitas vezes, acusados de blasfémia e perseguidos pelos demais muçulmanos. O que prova que o problema não é o Islão em si mesmo, mas tão-somente o modo como cada um o interpreta. E Tombuctu, a cidade africana símbolo da multiculturalidade e da tolerância religiosa, está hoje transformada no laboratório do ódio e da intolerância. Será que ainda se vai a tempo de parar?

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