terça-feira, 16 de outubro de 2012

O MEU PROFESSOR NUNO GRANDE


  1. Estou seguro que quase todos nós fomos, de algum modo, marcados pelos nossos professores, especialmente, por professores que tivemos no ensino primário. Foram eles que nos puseram em contacto com os segredos elementares da ciência, daí que lhes devamos um grande reconhecimento. Mas, também guardamos bem na memória certos os professores com quem convivemos ao longo do ensino secundário.

 

  1. Por exemplo, ainda hoje me recordo com saudades dos tempos do Liceu Salvador Correia. Esse foi, por excelência, o período da irreverência, da contestação a valores e regras sociais que tínhamos como retrógrados. Queríamos quase sempre substitui-los, nem que fosse com o recurso a alguma força.

 

  1. Infelizmente, já não me lembro bem de como se chamava a professora com quem aprendi a ler, que me ensinou a tabuada, com quem dei os primeiros passos na escrita, nas operações aritméticas, no estudo da natureza. Mas, lembro-me que foi em Cabinda – já lá vão muitos anos. Eu tinha, então, em simultâneo, pai e mãe. Depois, aos 7 anos de idade, fiquei órfão. Mesmo assim, guardo na memória praticamente todo o espaço da minha escola, a disposição das salas de aula, o grande quintal que circundava, os campos para a prática desportiva, uma vista agradável de muitas árvores… Quando me vem à memória esse conjunto de imagens, associo-as logo ao dia em que o meu pai morreu.

 

  1. Recordo-me de ver o Sr. João Serrano a ir buscar-me à sala de aula; depois a partirmos, eu e os meus irmãos, no seu carro, a caminho da nossa casa, sem sabermos o que realmente se passara. O Sr. João Serrano disse-nos apenas que o nosso pai não se estava a sentir bem, por isso, pedira que nos fosse buscar à escola, para estarmos junto dele. Afinal, o nosso pai tinha acabado de morrer, subitamente. Dia triste. Dia inesquecível.

 

  1. Chego à casa e deparo-me com o cenário da morte…Percebi, de imediato, o porquê do rosto sofrido da minha professora, depois de ela ter falado com o Sr. João Serrano. Afinal, a minha professora, de cujo nome não me recordo, recebera disfarçadamente a informação, pelo Sr. João Serrano, de que, naquele momento, eu e os meus irmãos passáramos à condição de crianças órfãs. É verdade, há certos factos que balizam as nossas vidas… E há professores que nos marcam para sempre… Acredito também que haja alunos que, por alguma razão particular, marcam as vidas dos professores.

 

  1. Há anos, por exemplo, o meu falecido e querido familiar, Joaquim Pinto de Andrade, interpelou-me dizendo que tivera em mãos uma caderneta escolar do meu tempo de estudante do Liceu. Que vira aí a minha foto de jovem adolescente. Que lera as anotações escritas na minha página da caderneta. O Joaquim falou de mim com propriedade, dessa época da minha adolescência. No final, disse-me que toda essa informação obtivera da esposa do amigo e seu advogado, o Dr. Brochado Coelho. Falara demoradamente sobre mim com a minha antiga professora do Liceu Salvador Correia, esposa do Dr. Mário Brochado Coelho.

 

  1. A mulher do Dr. Mário Brochado Coelho guardara durante a vida inteira as cadernetas escolares com as fotos e referências dos seus alunos. As cadernetas escolares e outros documentos eram um espaço privilegiado da sua memória.

 

  1. Eu era, naturalmente, um dos alunos de que ela se recordava bem, e de que acompanhava os passos. Afinal, fiquei a saber, a minha professora seguira com interesse o meu percurso de vida. Fiquei muito sensibilizado por tanto carinho vindo de alguém que me conhecera muito jovem e que ainda nutria tanta estima por mim. Mesmo distante, na cidade do Porto, a minha antiga professora mantinha viva a chama dos tempos do Liceu.

 

  1. Tive professores excepcionais, quer como pessoas, quer como docentes. Não tenho razões de queixas. Fui sempre acarinhado. Não tenho traumas nem sou apoquentado por fantasmas do passado. Fiz as minhas opções políticas e sociais, despido de emoções. Durmo, pois, em paz com a minha consciência.

 

  1. Mas, ontem, dia 10, dormi triste. Ao princípio da noite, tinha lido uma notícia que me abalou. Na página da necrologia do Jornal de Angola estava estampada a notícia da morte, na cidade do Porto, do meu querido professor do Curso Médico-Cirúrgico dos Estudos Gerais Universitários de Angola, o Professor Doutor Nuno Grande.

 

  1. O Professor Nuno Grande foi um grande referencial para os estudantes de medicina do período colonial. Não só pela sua competência como docente, mas também pela sua valia como médico. Era ainda um grande humanista. Tenho do Professor Doutor Nuno Grande a melhor memória.

 

  1. Recordo-me bem do dia em que o conheci. Foi o Gigi Mendonça que me levou ao Teatro Anatómico, para eu tomar contacto com o Curso que decidira seguir, logo que acabasse o Liceu. Depois, o Professor Doutor Nuno Grande deu-me aulas de Anatomia Descritiva. O seu Assistente era o Doutor Cadete Leite, de quem também fiquei amigo. Professores de prestígio no meio académico da época. O Doutor Eira Rebelo. O Doutor Sodré Borges. O velho Professor João de Oliveira e Silva (o Bló), e outros.

 

  1. Fiquei amigo do Professor Doutor Nuno Grande. Partilhávamos a mesmo visão negativa contra o regime colonial e fascista da época. Com o Professor Nuno Grande, no seu gabinete, no Pavilhão de Anatomia, conversei algumas vezes sobre o regime de Salazar, e do fim inelutável que teria. Um regime fora do tempo que era necessário extinguir. Recebi palavras de solidariedade. Manifestou carinho por mim, quando já me encontrava preso, na cadeia de São Paulo, antes de partir para o Tarrafal.

 

  1. O Professor Nuno Grande era não só um homem de saber, era também um homem de causas. Sempre ao lado das boas causas – até ao fim da sua vida.

 

  1. Quando regressei do Tarrafal, passados os anos de afastamento, o Professor Nuno Grande recebeu-me novamente no seu gabinete, e pediu-me que retomasse o meu percurso académico. Disse-me que a Faculdade de Medicina me recebia de braços abertos – que eu passara a ser uma referência para aquela geração. Pensei, repensei… Mas eu já não era o mesmo Justino… Achei que o espaço dos hospitais passaria a ser muito restrito para mim. Eu precisava de mais espaço para fazer intervenção social. Não voltei. Mudei de rumo. Mudei de ciência.

 

  1. O Professor Nuno Grande foi brilhante como estudante e como professor. Fez tudo com média de 19 valores. Mas era simples e de fácil relacionamento. Veio para Angola como Médico militar e notabilizou-se no Curso Médico-Cirúrgico em Luanda. Chegou a ser Vice-Reitor da Universidade de Luanda – sucedâneo dos Estudos Gerais Universitários de Angola. Quando regressou a Portugal, ao seu querido Porto, fundou o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar.

 

  1. O Professor Nuno Grande também se engajou na política, como um dever de cidadania. Foi mandatário da candidatura da Dr.ª Maria de Lourdes Pintassilgo à Presidência da República Portuguesa em 1985. Foi fundador e presidente da Associação de Desenvolvimento Regional e Intervenção Cívica. Teve um grande empenho no movimento pela despenalização do aborto. Ao nível da acção partidária, esteve muito ligado ao Bloco de Esquerda, mobilizando apoios às suas candidaturas.

 

  1. Recuando agora aos velhos tempos dos Estudos Gerais Universitários de Angola e à Universidade de Luanda, apetece-me dizer que perdi um professor que soube ser solidário e mestre na intervenção social. É verdade, era mesmo “Muito Grande” o meu Professor Nuno Grande.

1 comentário:

  1. De facto foi um grande homem ,médico e humano. Era o medico de família da minha avó, com quem, eu vivia. Por diversas vezes deslocava-se na sua viatura a nossa casa e não cobrava um tostão, sabendo que eramos uma família pobre.A mim pessoalmente descobriu que não tinha bronquite asmática, como pensava e era tratado por médicos especialistas na altura /Dr. Damas Mora, Dr. Salvador Rodrigues e outros, mas sim laringite e faringite.Nunca esquecerei a medicação por ele dada que até hoje utilizo.Era sim "Muito Grande".

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