terça-feira, 28 de julho de 2009

NOBRE DIAS - DIGNIDADE, LHANEZA DE CARÁCTER

1. Lá se foi mais uma das minhas referências: Nobre Ferreira Pereira Dias. Até Sexta-Feira, dia 17 de Julho, mantinha-se vivo. Era um dos sobreviventes de entre os pouco mais de 100 angolanos que passaram pelo Campo de Concentração do Tarrafal. Agora, já somos menos um, pois está a ser cumprido o sentido inexorável da vida: a morte.

2. Estamos todos de passagem pela vida, mesmo que a vivamos com uma maior ou menor intensidade; mesmo que emprestemos à nossa existência uma cadência mais rápida ou um ritmo mais compassado; mesmo que nos tenhamos tornado actores de grandes feitos ou simples e obscuros figurantes. Estamos sempre em transição a caminho de algo que desconhecemos…

3. Quando cheguei ao Tarrafal, para cumprir pena de prisão, o Nobre Dias tinha saído pouco tempo antes. Os meus dados dão-no como tendo sido libertado no dia 19 de Novembro de 1969. Saíra de Cabo Verde com destino a Benguela.

4. A sua viagem para o Tarrafal foi épica. Com os seus companheiros de caminhada foram instalados em tendas, na Ilha do Sal, enquanto aguardavam o embarque para o Tarrafal. Entrou no Campo a 26 de Fevereiro de 1962. Escutei da sua boca, e também de outros sobreviventes, os pormenores desta narrativa, aquando do Simpósio Internacional sobre o Tarrafal, que decorreu entre finais de Abril e início de Maio deste ano.

5. Nessa altura, convivi de perto com o Nobre Dias, mesmo que já soubesse do seu percurso. Foram o Luandino Vieira, António Jacinto, António Cardoso que me ilustraram sobre o homem que depois vim a conhecer. Eles falavam do Nobre Dias com carinho e admiração. O seu carácter, sobretudo, a sua bondade, o seu espírito apaziguador de conflitos… E assim eu coloquei o Nobre Dias no meu “panteão”, o local da memória onde eu acolho os que contribuíram para a formação do meu carácter, para a criação dos alicerces da minha personalidade. Não muitos, mas são o número bastante para eu sentir que sou um fruto de várias confluências.

6. Quando regressei do Simpósio do Tarrafal – ainda não se completaram 3 meses – eu escrevi um texto onde expus claramente o respeito que nutro por todos os tarrafalistas, o meu carinho e saudade por todos quantos foram para ali mandados como uma sanção pelas suas acções e, sobretudo, pelas suas convicções. Hoje, fazem parte do meu ser e deram sentido à minha existência. Uns foram meus companheiros de tempo, outros meus companheiros sem tempo. Mas fomos todos, mesmo que de várias gerações, actores de um drama que durou, para alguns pelo menos, uma eternidade...

7. Nesse texto, a dado passo, eu dizia: “No Simpósio Internacional sobre o Tarrafal, ainda foi possível conviverem sobreviventes das cinco gerações de tarrafalistas, de diversas adesões políticas, actores plenos do processo de libertação nacional. O grupo que chegou em 1962, aquele que motivou o ataque às prisões de Luanda, em 1961, já tem poucos sobreviventes, muitos deles com enormes debilidades físicas, demasiado vergados pelos longos anos. Mas, foi bom vê-los, recordando o espírito da sua época, as suas epopeias que a história deve registar: João Fialho da Costa, João Lopes Teixeira, Nobre Dias, Manuel Lisboa Santos, Beto Van-Dúnem. Também o eterno jovem Amadeu Amorim, pleno de saúde, prenhe de lembranças dos anos passados entre grades. Revivemos histórias de circunstância… Também o Luandino Vieira, com mais algumas dezenas de anos em cima, mas tão lúcido e bem-humorado como o conheci no Tarrafal”.

8. Nobre Dias foi Pastor evangélico, professor, nacionalista convicto e homem com princípios. Nutria um grande amor pelo nosso povo. Tive a felicidade de conversar com ele, assim como com alguns dos que ainda sobram das cinco gerações de tarrafalistas que se engajaram na nossa luta de libertação nacional. Sinto que o Tarrafal nos uniu de um modo indestrutível. O Tarrafal forjou uma aliança que vence o tempo e derruba todas as barreiras. O Tarrafal foi o espaço da partilha do sonho, de onde não se sabia se, algum dia, sairíamos.

9. O espírito de unidade e solidariedade que prevaleceu no Tarrafal faz-nos hoje, e com enorme facilidade, desvalorizar as origens, remeter para plano secundário as diferenças de pensamento, transforma as filiações partidárias em coisas de somenos importância. Por isso, nós, os tarrafalistas, reconhecemo-nos bem na nossa diversidade. E aceitámo-la com elegância e espírito de irmandade.

10. Em casa, no seio familiar, ouvi falar de muitos desses homens de boa têmpera que hoje fazem o percurso descendente da vida – esses homens que já fenecem a um ritmo que me causa melancolia. Alguns que conheci pessoalmente, eram amigos de casa, eram gente da nossa intimidade, faziam parte da nossa plêiade. Faziam o seu percurso de oposição a Salazar e ao regime colonial. Deles, em parte, herdei o espírito rebelde e a vontade de lutar pelas causas em que acredito. Depois, tomei em mãos as suas referências. Espero não os ter desapontado.

Das duas vezes que tomou a palavra em público – uma dentro da sala do Colóquio, outra num jantar oferecido pela nossa Ministra da Cultura, Rosa Cruz e Silva – o Nobre Dias foi um verdadeiro “nobre”. Falou sempre com moderação e sapiência. Evidenciou regras, valores e princípios. Em África, aos homens assim, chamamos Um Mais-Velho. Tinha, pois, razão Mário Pinto de Andrade quando disse: “Em África, o Mais-Velho é uma autoridade”. O Nobre Dias era, sim, um símbolo de dignidade, lhaneza de carácter. Era uma autoridade…

2 comentários:

  1. O Tio Nobre era assim mesmo. Enquanto víamos os dois, na Torre do Tombo, os seus processos da Pide, os seus comentários eram dignos de nota.
    Viu oito dos doze que lhe eram dirigidos. Os restantes viu-os eu e pedi reprodução para os filhos terem uma recordação.
    Quando um idoso desaparece, é uma livraria que se desintegra.

    José Mantas

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  2. Faz hoje um ano que faleceu o Tio Nobre. Deixou muita saudade.

    Um abraço

    José Mantas

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