quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O BRASIL PROFUNDO


1. Decorridos 6 anos, regressei ao Brasil, e novamente para participar numa Conferência sobre a problemática dos Direitos Humanos. Desta feita, o palco do encontro foi Belém (uma velha cidade com perto de 400 anos de idade; foi fundada em 1616). Belém é a capital do estado do Pará, norte do Brasil, na região da Amazónia. Reparem que, em superfície, o estado do Pará é tão grande como Angola.

2. Logo ao primeiro relance, um facto despertou a minha curiosidade: em Belém, dificilmente nos deparamos com indivíduos de tez escura. O tom predominante é o do mestiço, porém, um mestiço que se adivinha ser o fruto de muitos antigos cruzamentos, sobretudo, do cruzamento entre índios e brancos. São raros os mestiços produto da ligação de uma negra com um branco, de um negro com uma branca, ou mesmo de laços estabelecidos entre mestiços de múltiplas misturas, tal como é muito habitual em Angola.


3. Pensar que Angola é o exemplo mais acabado da multiplicidade de raças, é um redondo engano. Nós somos apenas uma parte do problema, pois a pluralidade de raças no mundo é muito mais vasta do que o pequeno leque que temos aqui, dentro das nossas fronteiras. A África do Sul, por exemplo, possui uma maior amplitude racial que nós, e essa diversidade assume matizes distintas, sempre que caminhamos de uma região para outra região desse país.

4. É claro que eu acredito que, com a presente confluência de povos estrangeiros para o nosso país, teremos também, no futuro, um mais vasto mosaico étnico e rácico. Daí advirão, seguramente, implicações, umas eventualmente positivas, outras talvez até negativas. Mas, não é propriamente sobre tais implicações que eu quero tratar aqui neste espaço. Eu quero tão-somente falar da diversidade étnica e cultural do Brasil, espicaçado pelo que observei na cidade brasileira de Belém, uma cidade guardiã de uma história centenária, com traços ainda evidentes de um passado de grande actividade comercial.

5. O Brasil tem a diversidade de um país para onde confluíram povos de várias origens, mas o estado da Bahia será, talvez, aquele que apresenta mais semelhanças com o continente africano. São semelhanças na tez dos indivíduos, maioritariamente, negros e mestiços. São semelhanças nas práticas culturais – música, culinária, religião. Há mesmo quem diga que Salvador, a capital do estado da Bahia (ela que foi também a primeira capital do Brasil), representa um misto de Luanda e Benguela da época colonial (mais Benguela que Luanda), sobretudo nas suas zonas históricas – Infelizmente, muitas dessas áreas históricas de Luanda e Benguela estão já a ser sistematicamente demolidas, a mando de quem desvaloriza a história dos povos e menospreza o seu património. Salvador da Bahia guarda também vestígios de outros povos do Golfo da Guiné. Diz-se que na Bahia podemos cruzar-nos, a qualquer instante, com alguém parecido connosco, com os nossos familiares, com os nossos amigos.

6. Há anos, por exemplo, o meu filho Justino (o “Pinto”, como é mais conhecido) visitou o estado brasileiro da Bahia. Ao percorrer a cidade capital, Salvador, o “Pinto” “viu” semelhanças entre as pessoas com quem se cruzava e muitos daqueles de que se lembrava de Angola. Entusiasmado, ligou-me do seu telemóvel, para me dizer que me estava a “ver”, em vários pontos daquela cidade brasileira... Também “via”, nas ruas e em outros locais, a mãe, os irmãos, os tios, os primos e mais parentes. “Via” até pessoas que já tinham morrido… Estava maravilhado com tantas parecenças … Naquele momento, para o meu filho “Pinto”, o mundo tornara-se um espaço muito pequeno, e a raça humana era, afinal, única, mesmo que espalhada por várias partes do nosso planeta...

7. Porém, se o meu filho “Pinto” tivesse estado, como eu estive há pouco tempo, no estado brasileiro do Pará, seria certamente muito mais difícil ele “ver” lá alguém da nossa família, muito menos os seus amigos de infância e adolescência... E os mortos, claro, esses tinham morrido definitivamente… Na cidade de Belém do Pará, circulam predominantemente outros sangues. Os nossos sangues são uma excepção. Prevalece, sim, o sangue de índio, mas misturado com o de europeus de múltiplas proveniências. Afinal, isso é um dos frutos históricos da colonização do Brasil. No Brasil entrecruzam-se sangues de todas as origens, e tal como os Estados Unidos, o Brasil transformou-se num dos laboratórios da humanidade.

8. Mesmo que eventualmente não tenham atingido a “dimensão laboratorial” desses dois grandes países, quase todas as colónias são, afinal, tributárias do seu passado colonial. Mais ou menos evidentes, guardam as marcas da história.

9. Não tenho receio de errar, ao afirmar que, se é verdade que os ciclos económicos determinaram a direcção das migrações, não é menos verdade que eles influenciaram também a composição demográfica das localidades. Como é lógico, o Brasil é um dos espelhos desse “fatalismo”. É um país muito distinto de uma região para outra região, de um estado para outro estado. E cada um desses espaços reflecte os ciclos económicos e, consequentemente, as migrações.

10. Podemos dizer que o Brasil é um verdadeiro mosaico cultural e étnico, que é dos países que melhor reflecte a pluralidade da espécie humana, salvaguardando, claro, os seus evidentes desequilíbrios.

11. No contexto da sua expansão colonial, foram os portugueses os primeiros povos estrangeiros que demandaram o Brasil. Depois, levaram consigo escravos provenientes de África, num processo migratório forçado que se prolongou por cerca de três séculos. Esse processo migratório forçado custou ao nosso continente a perda de milhões de habitantes: entre os que foram mortos aquando da apanha dos escravos, também os que morreram durante o seu transporte, e entre aqueles que, finalmente, chegaram aos pontos de destino. Não há números seguros sobre quantos africanos escravos morreram, sobre quantos chegaram ao destino, mas sabe-se que o número se saldou por dezenas de milhões. Foram apanhados e transportados, afinal, para criarem e desenvolverem uma agricultura de exportação nesse outro continente, as Américas.

12. No século XVIII, a economia de mineração intensificou o fluxo de força-de-trabalho escrava para o Brasil. Aí misturaram-se os interesses de portugueses, franceses, também de holandeses. O século XIX produziu outros fluxos migratórios, com o aparecimento de alemães, austríacos e até mesmo suíços, idos para regiões situadas mais ao sul, como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Santa Catarina.

13. O ano de 1888 foi o ano em que se libertaram os escravos. Em consequência, intensificou-se o movimento migratório internacional para o Brasil, com destaque para imigrantes provenientes da Europa e de algumas regiões da Ásia, muito em especial, fruto das grandes transformações sócio-demográficas que ocorriam nessas áreas. Assim, o Brasil conseguia resolver dois problemas: foi-se povoando e conseguiu mão-de-obra para o seu desenvolvimento. O “ciclo do café” acentuou ainda mais a entrada de estrangeiros de diversas nacionalidades, alguns saídos até da Europa Oriental.

14. A paralisação do envio de escravos de África e o aumento do fluxo de força-de-trabalho proveniente da Europa e de outras paragens determinou, pois, uma alteração sensível na composição étnica do Brasil, alteração que também obedeceu uma estratégia de “branqueamento”.

15. Segundo sei, o grande fluxo de imigrantes brancos para a região da Amazónia (incluindo, portanto, o estado do Pará) teve muito a ver com o “Ciclo da Borracha”, e a exploração da madeira. Foi mais difícil recrutar um grande volume de força-de-trabalho negra, pois tal “Ciclo” tem lugar quando já não vigorava o trabalho escravo. Talvez, então, daí, essa percentagem menor de sangue negro que se nota entre os povos paraenses.

16. Nas próximas viagens do meu filho “Pinto” ao Brasil, caso ele queira continuar a “ver” nas ruas a nossa família e até mesmo muitos dos seus amigos de infância e adolescência, aconselho-o a percorrer o Nordeste brasileiro. Talvez seja bom dar mais umas voltas pela Bahia. Que vá também ao Piauí e ao Maranhão. E porque não também, a Pernambuco, Paraíba, ou mesmo o Rio Grande do Norte? No Pará, não me “verá”, seguramente… Disso tenho eu a certeza. Pois, sendo, embora, um fruto de múltiplas misturas, pelo menos que eu saiba, não me corre nas veias qualquer gota de sangue de índio…

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