quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A PENA DE MORTE. UMA QUESTÃO DO NOSSO TEMPO

1. Muitas das notícias vindas recentemente a público são deprimentes: por exemplo, as várias condenações à morte decretadas contra cidadãos de etnia uigure, envolvidos nos tumultos inter-étnicos de Julho, na província chinesa de Xinjiang; igualmente, as condenações à morte de manifestantes iranianos que contestaram os resultados das eleições de Junho; finalmente, o drama vivido por um cidadão equatoriano que passou três anos no “corredor da morte”, à espera de ser executado, tendo-se, afinal, provado que se tratava de mais um inocente.

2. No mês de Julho, a região de Xinjiang, noroeste da China, viveu dias de grande agitação de rua, com confrontos entre cidadãos de duas comunidades distintas, os han, que são maioritários no conjunto do território chinês – mas, minoritários na província de Xinjiang – e os uigures, amplamente maioritários nesta província. Os uigures são muçulmanos etnicamente aparentados com os turcos.

3. O conflito inter-étnico surgiu depois de dois operários uigures terem sido mortos numa província do sul da China, supostamente por responsabilidade de indivíduos de etnia han, com quem trabalhavam numa fábrica. O facto começou por desencadear manifestações pacíficas, porém, devido ao comportamento repressivo das autoridades, elas evoluíram e degeneraram em motins e pilhagens, tornando alvo, sobretudo, propriedades de membros da etnia han. Os uigures dizem-se discriminados a favor dos han, pretendendo, por isso, separar-se da China. As autoridades chinesas resumem o conflito étnico naquela região às chamadas “três forças”: separatismo, terrorismo e extremismo religioso.

4. Mesmo que aleguem terem sido cometidos actos de pura marginalidade, as condenações à morte agora decretadas surgiram perante o mundo como tendo motivações políticas.

5. É claro que não se deve matar por razões políticas. A política tem que saber buscar outras formas de resolução das suas contradições. Na política, não há verdades absolutas. Por vezes, aquilo que aparenta ser a verdade pode, depois, transformar-se num grande embuste. Aprendi esse princípio com a experiência própria e com a experiência alheia. Vi ao longo da vida demasiados castelos de verdades políticas desmoronarem como baralhos de cartas… Vi fortes convicções evoluírem para dúvidas absolutas, ou então simples dúvidas firmarem-se como convicções seguras. Em política tudo está sempre inacabado, e os edifícios são delimitados por frágeis contornos, nunca por estruturas de betão…

6. As condenações à morte no Irão emergiram no rescaldo do conflito pós-eleitoral que opôs Mahmud Ahmadinejad, declarado vencedor das recentes eleições presidenciais, aos apoiantes do líder reformista Mir Hussein Moussavi. Hoje, juntamente com a China, o Irão lidera a «lista negra» dos países que mais usam a pena de morte como fórmula de punição. Os sucessivos relatórios produzidos pela Amnistia Internacional apresentam dados que juntam a estes dois países também o Paquistão, Arábia Saudita e Estados Unidos da América. Em termos per capita, a Arábia Saudita é o país líder das execuções, seguido do Irão e da Líbia. Nalguns desses países chegam mesmo a ser executados indivíduos por terem cometido crimes quando ainda eram menores. Se olharmos atentamente, veremos que, na sua maioria, não são democracias, com excepção dos Estados Unidos da América. São, sobretudo, países asiáticos, ou então, países africanos, como a Líbia. Porém, o Japão, sendo embora uma democracia, ainda executa pessoas.

7. Nos Estados Unidos da América persiste a prática da pena de morte para punir determinados tipos de delitos, se bem que o processo que conduz à execução da pena seja bastante demorado e obedeça a trâmites apertados. Não poucas vezes, e mesmo que haja maior possibilidade de se garantir transparência, o sistema judicial norte-americano mostra pouca segurança. Contam-se por inúmeros os casos em que foram condenados à morte indivíduos inocentes, o que é grave, pois a pena de morte é um castigo irreversível. Uma vez aplicada a pena, não há hipóteses de recuo.

8. Por exemplo, há poucos dias eu li uma entrevista dada a um jornal português por um imigrante equatoriano, que esteve preso durante 5 anos na Prisão Estadual da Florida, nos Estados Unidos da América. Dos cinco anos de prisão, ele passou 3 longos anos no “corredor da morte”, à espera da hora da execução. Fora acusado de um duplo assassínio. Mas, afinal, tudo não passou de uma tramóia engendrada pela ex-esposa.

9. Joaquim José Martinez tinha então 26 anos de idade. Até ser preso, fora adepto da aplicação da pena de morte, como forma exemplar de punição. Hoje, tem 39 anos. Depois de ter passado tudo o que passou e ter visto tudo quanto viu, Joaquim José Martinez tornou-se activista contra a pena de morte, precisamente porque a sua própria experiência permitiu-lhe perceber que, não poucas vezes, são executados inocentes.

10. A experiência dos três anos no “corredor da morte” foi-lhe traumática: qualquer tilintar de chaves, durante a noite, ainda o assusta… Lembra-se de como as pessoas tremem e choram, até urinam, enquanto caminham para a execução... Perdeu assim o seu melhor amigo, Benny Temps… Antes de tudo acabar, vira Benny Temps com a família, com os seus filhos, a despedirem-se… Depois, Benny Temps caminhou para o local onde estava instalada a cadeira eléctrica.

11. Eram sete horas da manhã. As lâmpadas piscaram três vezes. Apagaram-se e voltaram a acender-se. A execução tinha terminado. Joaquim José Martinez deixou de usar lâmpadas como aquelas que havia na prisão. Hoje só usa lâmpadas de halogéneo. Elas são sinais e lembranças que deseja apagar para sempre da memória.

12. Eu também tenho na memória gente com quem convivi, e que depois foi executada. São, talvez, histórias para as memórias que um dia pretendo escrever – se tiver tempo para tal. Afinal, Angola faz parte do mundo… Angola também teve os seus momentos traumáticos.

13. Por vezes, surpreendo-me a pensar na sensação que se apossa de quem, de repente, vê desmoronar todo o seu projecto de vida – vê ruir tudo, a partir dos alicerces.

14. Eu sei que a pena de morte é demasiado controversa. Mas sei também que a sua utilidade, e, sobretudo, a lógica do seu direito ainda a tornam mais questionável… Vale, pois, a pena reflectirmos sobre as três questões que aqui apresentei. Infelizmente, elas são ainda questões do nosso tempo. Vê-se que a pena de morte não é uma questão do passado – como seria desejável.

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