terça-feira, 10 de novembro de 2009

POSTAL DA COREIA DO SUL (I)

1. Estou na Coreia do Sul e escrevo-vos a crónica desta semana sob a forma de um Postal de Viagem. É um pouco original, mas conto com a voz do Manuel Vieira para a fazer chegar até vós, na devida forma. Achei esta a via mais adequada para prosseguirmos o nosso diálogo semanal, um diálogo que já dura 10 anos e que muito prezo. Pelas vossas manifestações de carinho, sei que vos agrada este contacto, esta interacção permanente. No meu regresso, terão de novo a minha voz, esta voz a que já se habituaram e que vos é fiel às Segundas e Terças-Feiras.

2. Sei desde muito pequeno que a Península Coreana foi historicamente um alvo privilegiado da cobiça estrangeira, ou por parte da China, ou por parte do Japão. Se o Japão dominasse a Coreia, mais facilmente chegaria à China, afinal, a sua grande ambição. Se a China a subjugasse, ficaria com o Japão de frente, à sua mão de semear, como dizia repetidamente a minha mãe. A Península Coreana chegou a ser anexada pelo Japão, no ano de 1910, numa altura em que, fruto do processo de industrialização e desenvolvimento capitalista, aquele país pretendeu transformar-se na principal potência oriental. A Península Coreana pagou, assim, o tributo devido à sua localização entre as duas potências asiáticas com vocação mais hegemónica.

3. Para além das destruições e mortes causadas pela invasão japonesa, os coreanos lamentam ainda hoje as suas diversas tentativas de assimilação. Para além do esforço de integração da economia coreana na japonesa, os japoneses tentaram ainda impor-lhes a sua língua, também os seus hábitos e costumes, inclusive, os seus nomes. Eu penso que a posterior influência cultural e económica norte-americana, terá ajudado, por exemplo, a Coreia do Sul a transformar-se naquilo que é hoje: uma economia moderna dando corpo a um país de progresso.

4. Quando cheguei, no dia 5, ao aeroporto de Incheon, situado a uma razoável distância de Seul, a capital da Coreia do Sul, foi fácil entender como um acontecimento desportivo da dimensão do Campeonato de Mundo de Futebol de 2002, realizado conjuntamente pela Coreia e o Japão, pôde estimular a modernização de uma região do país outrora retardada. O novo aeroporto internacional de Incheon e a auto-estrada que lhe dá acesso criaram as condições para urbanizações modernas, valorizando assim largas superfícies de terra. É aquilo que podemos chamar de investimento virtuoso, gerador de sinergias.

5. Porém, pelo menos até agora, e no ponto em que me encontro desta primeira visita à Coreia do Sul, o que mais me impressionou foi ver o esforço que as autoridades locais realizaram para despoluir e reaproveitar o velho e antes muito poluído rio Cheong Gye Cheon, que corta praticamente ao meio a cidade de Seul. Assim, reurbanizaram uma boa parte da cidade, num esforço tão simbólico e gigantesco, que o governo da cidade mandou edificar um museu, apenas com o objectivo de preservar a história desse grandioso projecto.

6. Até ao ano de 2005, o rio Cheong Gye Cheon era extremamente poluído, por causa da falta de saneamento numa parte da cidade. Em 2 anos e 3 meses, com início em 2003, procedeu-se à sua transformação radical. Começou por se retirar um viaduto construído sobre o rio em 1958. Reabilitou-se o canal, melhorou-se a qualidade da água, reintegrou-se no ecossistema espécies animais e vegetais outrora desaparecidas. Hoje, onde antes havia degradação e caos, há um lindo espaço de recreação e turismo, com o comércio ordenado. A reabilitação do rio Cheong Gye Cheon produziu, igualmente, efeitos sobre a temperatura ambiente. A temperatura média diminuiu alguns graus centígrados. O clima ficou mais ameno. É acção positiva do homem sobre o meio em que se insere, pondo-o ao seu serviço, no seu interesse e das futuras gerações.

7. Este primeiro contacto com Seul colocou-me de frente com a triste realidade da nossa Luanda. Em Luanda, insistimos em destruir o nosso património histórico e cultural, e faz-se um esforço notável para a desarborizar a cidade – uma cidade que já está praticamente careca... A perceptível que a nossa cidade está cada vez mais quente, e mesmo assim, os sucessivos governadores mostram-se insensíveis e incapazes de compreender os impactos ambientais resultantes da destruição das árvores e da eliminação de poucos espaços de recreação que restaram do período colonial.

8. Quando hoje percorria as estradas que ladeiam o rio Cheong Gye Cheon, deu-me para perguntar a quem me acompanhava sobre o que seria feito das casas antigas que ainda já se vêem. Responderam-me que algumas delas seriam preservadas, permanecendo como um testemunho para a posteridade. A municipalidade manterá o conceito da Cidade Velha, como sucede em qualquer grande cidade que tenha história e que a preze.

9. Infelizmente, em Luanda, estamos a matar a nossa Cidade Velha, estamos deliberadamente a sepultar a sua história. As antigas edificações que testemunhavam a história da nossa cidade, da nossa economia e da nossa sociedade tornaram-se o alvo preferencial do camartelo demolidor e da especulação imobiliária. Nos espaços assim criados, edificam-se agora instalações sem qualquer originalidade, visíveis em qualquer parte do mundo.

10. À medida que em Luanda se derrubam as nossas casas centenárias, perco a possibilidade de revisitar a história que aprendi nos livros, bem como aquela que entendi nos ensinamentos dos mais-velhos.

11. Ver o rio Cheong Gye Cheon, de Seul, reabilitado, purificado e ordenado, ele que era caótico e poluído, hoje purificado e ordenado, dá-me a sensação da utilidade desta visita à Coreia do Sul. Resta-me, porém, ainda, a esperança de ver alguém fazer qualquer coisa para salvar a nossa Luanda, modernizando-a, sim, mas preservando os vestígios da sua história, ela que se orgulhava de ser a cidade mais antiga da costa ocidental de África. Hoje, Luanda está demasiado exposta à sanha destruidora dos que só sonham com betão e com espelhos de várias cores. Luanda está feita uma cidade extremamente quente e sem história.

12. Mais uma coisa: acabo de visitar o Palácio Chang Deok Gung, o antigo palácio dos Reis da Coreia. Está preservado e aberto ao turismo. Aqui ninguém o transformou num local de farras, ou em espaço para se festejarem os casamentos da nomencklatura.

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