quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O PASSEIO DOS DITADORES

1. Encontrava-me na Costa do Marfim – a participar numa acção de formação promovida pelo Banco Africano de Desenvolvimento – quando o Coronel Lansana Conte tomou o poder na Guiné-Conacry. São já passados 25 anos. Mesmo assim, e com tão longo distanciamento, ainda me recordo da estupefacção que se assolou de mim, quando soube da queda do regime do Presidente Ahmed Sékou Touré, rendido por uma Junta Militar. Na altura, colocava-se ainda a hipótese de ser substituído por um membro da sua família, que estava na forja.

2. Para mim, os regimes militares são sempre uma grande incógnita, mesmo que comecem por prometer mundos e fundos… Fica sempre tudo em aberto. Não há nada que não possa acontecer, até mesmo a instalação de uma ditadura sanguinária e depredadora…

3. Juntamente com Kwame Nkrumah, do Ghana, Leopold Senghor, do Senegal, Ahmed Ben Bella, da Argélia, Julius Nyerere, da Tanzânia, Patrice Lumumba, do Congo Kinshasa, nos finais dos anos da década de 1950, início da década de 1960, Ahmed Sékou Touré ajudou a tingir com cores da esperança o mapa das novas nações africanas independentes. De certo modo, Sékou Touré representava a irreverência de uma nação emergente, confrontado que estava com as pretensões hegemónicas da antiga potência colonial.

4. Para muitos, a figura de Ahmed Sékou Touré tinha um sinal contrário à do então Presidente da Costa do Marfim, Félix Houphouet-Boigny. Houphouet-Boigny era tido como muito subserviente, era visto como a expressão acabada de um certo enfeudamento aos desígnios neo-coloniais franceses. Mas, a esperança que se depositou em Ahmed Sékou Touré mostrou-se um logro, pois, fez questão de criar – e alimentar até ao fim dos seus dias – um regime despótico, que empobreceu ainda mais o seu país, marcando-lhe o destino até hoje.

5. Proveniente do movimento sindical, Sékou Touré poderia ter compreendido e assimilado melhor a cultura do respeito pela diferença e da pluralidade de ideias. Mas, Sékou Touré tornou-se o protagonista de um dos regimes africanos mais implacáveis para com os seus adversários. Durante o seu longo consolado de 27 anos, eliminou-os. Inclusive, mandou matar o seu compatriota Diallo Telli, um diplomata respeitado que se tornou no primeiro Secretário-geral da Organização de Unidade Africana, a OUA.

6. Depois da morte de Sékou Touré, o novo regime de Lansana Conte expôs aos olhos da imprensa e do mundo o campo de concentração de Boiro. Era ali onde os seus esbirros torturavam e assassinavam todos quantos se mostrassem inconvenientes. Os direitos humanos, assim como o direito à diferença não tinham, pois, lugar na pauta dos valores e dos princípios políticos de Ahmed Sékou Touré.

7. Lansana Conte foi outra fraude política. Instalou-se no poder durante 24 anos, e cometeu as mesmas tropelias que o seu antecessor. Reprimiu com inusitada violência os que se lhe opunham, inclusive, muitos dos que o ajudaram na ascensão ao poder. Qualitativamente, os dois eram iguais.

8. Quando pegou a moda da implantação de sistemas multipartidários em África, tal como a maioria dos seus homólogos, Lansana Conte também organizou eleições e ganhou-as sempre. Ganhou as eleições de 1993, também as do ano de 1998, bem como as de 2003. Nestas últimas, teve expressivos 96% dos votos.

9. Infelizmente, esta é a matriz política preferida das lideranças africanas: quem está no poder, invariavelmente, ganha as eleições. De seguida, vêm os aplausos da comunidade internacional, a começar pelas instituições africanas. Afinal, o que interessa é a simples aparência, a legitimação formal dos poderes instituídos. É com quem está no poder que interessa continuar a negociar…

10. As eleições em África, realizadas na maioria das vezes com o suporte financeiro da comunidade internacional, estão a tornar-se um mero teatro, algo cómico, mas pode descambar numa tragédia… As eleições africanas, tidas como “geralmente livres e justas”, estão a ditar o fim dos sonhos democráticos ainda alimentados por muitos. Essas eleições são, afinal, o instrumento apropriado para matar as democracias emergentes. Elas não contribuem para o aprofundamento de regimes democráticos, antes pelo contrário, servem para estreitar o espaço político, para retirar de cena as oposições, até mesmo para as ridicularizar…

11. Como é possível manter activos regimes democráticos, quando os partidos governantes – ou os seus candidatos – recebem votações esmagadoras de 76%, de 82%, de 96%, de 97%? Esta questão deveria merecer uma profunda reflexão entre os políticos, os politólogos, os analistas africanos.

12. Será que os africanos se ajustam melhor ao esquema do pensamento único? Será que os seus líderes governantes são de tal modo esclarecidos e clarividentes que, por artes mágicas, conseguem satisfazer todos os desejos e anseios dos seus povos? E porquê que isso não sucede nos países mais desenvolvidos, onde o nível de satisfação material e espiritual das populações é maior?

13. Tal como aconteceu com Lansana Conte, muito recentemente, o actual Presidente da Guiné-Equatorial, Teodoro Obiang Nguema, venceu as eleições presidenciais com mais de 97% dos votos escrutinados. Será que isto também não quer dizer nada?

14. É bom recordarmos que Obiang Nguema governa o seu país há mais de 30 anos, e que tem imposto o seu regime muito à custa da repressão… Hoje, grande parte da riqueza nacional da Guiné-Equatorial, conseguida pelo “milagre do petróleo”, está nas mãos da sua família.

15. O açambarcamento da riqueza de todos por um punhado de indivíduos ligados umbilicalmente aos poderes instituídos, está a tornar-se uma constante. Esses títeres dominam a economia, dominam os meios de comunicação social, influenciam todas as decisões. Muitas vezes, até as decisões… É lá, é aqui, é em todos os nossos países. Este é um polvo que se alastra. Esta é uma gangrena que destrói as nossas sociedades.

16. Depois da morte de Lansana Conte – vai para perto de 1 ano – sucedeu-lhe, também por golpe militar, o Capitão Moussa Dadis Camara. Como sempre, este prometeu restaurar a democracia, organizar eleições livres e transparentes, e, depois, regressar aos quartéis. Acreditou nele apenas quem é ingénuo, ou quem não conhece a recente história africana. Em 1 ano, Moussa Dadis Camara adaptou-se ao poder, tomou-lhe o gosto… Nos últimos tempos, virou o disco e passou a dizer que iria concorrer às eleições presidenciais. Naturalmente, concorrer para as ganhar, e com a percentagem a que agora a África nos habituou. É isso que nos envergonha…

17. A população da Guiné-Conacry saiu à rua e, como habitual, não se respeitou o direito á liberdade de expressão: as forças militares dispararam indiscriminadamente, matando perto de duas centenas de populares, num acto que causou indignação nacional e internacional.

18. A Guiné-Conacry e outros países africanos continuam numa encruzilhada: ainda estão em busca de um rumo; vivem um processo de auto-flagelação; manifestam completa inadaptação aos valores e aos princípios democráticos. O resultado mais recente foi o atentado agora sofrido por Moussa Dadis Camara. Um subordinado tentou assassiná-lo, possivelmente para ocupar o seu lugar e tentar ele também eternizar-se no poder.

19. A eternização no poder é uma triste vocação dos líderes em África. É, também, a traição ao sonho de uma África livre de ditadores.

20. Os ditadores só largam o poder quando morrem. Umas vezes, eles morrem de causas naturais. Outras vezes, eles são removidos à força por outros candidatos a ditadores, que os matam. É a África que definha, e fica-se com a ilusão de que alguns países se desenvolvem, apenas porque possuem riquezas naturais no seu subsolo.

2 comentários:

  1. Exmo Dr. JPAndrade!
    É com o coração apertado de muita tristeza que acabo de ler este artigo interessante que mostra a realidade africana. É deveras vergonhoso e nada exemplar. Para onde iremos nós? eu lia os exemplos de outros países mas fazendo a analogia com o nosso. Até quando JES se manterá no poder? Até quando os rendimentos públicos serão anarquicamente distribuídos por uma elite gananciosa e corrupta? quem salvará este miserável continente?

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  2. isso intrestesse qualquer africano mas e realidade que temos e que nos segue vamos copiar o caso angolano, guiné equatorial ?

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