quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

MORREU CODÉ DI DONA

1. Em cerca de três meses, a música e a cultura cabo-verdianas perderam dois grandes vultos: Manuel d’Novas e Codé di Dona.

2. Manuel d’Novas era um renomado poeta e compositor, e faleceu aos 28 de Setembro último, aos 71 anos, no Hospital Baptista de Sousa, na Ilha de São Vicente. Segundo se disse, a sua morte adveio das sequelas de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) que o atingira há três anos, em Portugal.

3. Manuel d’Novas foi dos mais privilegiados compositores de mornas e coladeiras. Nasceu na Ilha de Santo Antão, tendo feito, porém, quase toda a sua vida no Mindelo, a capital da Ilha de São Vicente, que o adoptou como um filho. Foi autor de algumas das mais belas músicas interpretadas por Cesária Évora ou por Bana. Nunca me canso de ouvir, por exemplo, “Apocalipse”, “Cumpade Ciznone”, “Lamento d’um Emigrante”, “Nôs Morna”.

4. Pensar em Manuel d’Novas faz-me também retornar às letras e às músicas de B. Leza, como “Eclipse”, “Noite de Mindelo”, ou mesmo “Lua Nha Testemunha”, esta, um autêntico hino. E porque não as composições de Eugénio Tavares?

5. Dizem os estudiosos da música cabo-verdiana que a morna nasceu na Ilha da Boavista, passando depois para as restantes ilhas do Arquipélago, “adaptando-se e tomando a feição psíquica de cada povo”, como escreveu Eugénio Tavares.

6. Sobre a morna, Eugénio Tavares disse ainda mais: “Na Boavista, a morna não se elevou na linha sentimental; antes, planou baixo, rebuscando os ridículos de cada drama de amor, cantando o perfil caricatural de cada episódio grotesco, ironizando fracassos amorosos, sublimando a comédia gentílica das Moias (naufrágios de navios tão frequentes nas costas da ilha), tudo no estilo leve e arrebitado que afeiçoa a vida despreocupada do povo boavisense, o mais alegre, e o mais amorável de entre as gentes do Arquipélago. Música elegante psicatada de sorrisos finos e harmonias ligeiras. Na Ilha Brava em que os homens casam com o mar, como no poema de Pierre Loti, a dulcíssima estância da saudade, mercê da vida aventureira e trágica do seu povo, a morna fixou os olhos no mar e no espaço azul, e adquiriu essa linha sentimental, essa doçura harmoniosa que caracteriza as canções bravenses. Elevou-se de riso e pranto, e finou, amorosamente, pelo portuguesíssimo diapasão da saudade.” Oh, meu Deus, quão poética é esta prosa de Eugénio Tavares…

7. Desde pequeno, tive o ensejo de ouvir canções de Eugénio Tavares. Muito em especial, e com um tremendo enlevo, eu ouvia “A Canção ao Mar – O Mar Eterno”, de que destaco aqui as primeiras estrofes:

“Oh mar eterno sem fundo sem fim
Oh mar das túrbidas vagas, oh! mar
De ti e das bocas do mundo a mim
Só me vem dores e pragas, oh mar

Que mal te fiz, oh mar
Que ao ver-me pões-te a arfar, a arfar
Quebrando as ondas tuas
De encontro às rochas nuas

Suspende a zanga um momento e
escuta
A voz do meu sentimento na luta
Que o amor ascende em meu peito
desfeito
De tanto amar e penar, oh mar”

Na minha infância, a minha mãe, Maria Luzia, filha de um cabo-verdiano de origem judaica, natural de Santo Antão, cantava esta música, quase em pranto. Era para nós quase uma cantiga de ninar. Esse e outros poemas marcaram-me o sentimento e despertaram a minha curiosidade para a leitura dos livros de Baltazar Lopes, Manuel Lopes, Aurélio Gonçalves, Gabriel Mariano, Onésimo Silveira e outros vates da cultura do Arquipélago.

8. A Morna, tida como o género musical mais representativo do povo cabo-verdiano, foi, por isso, um objecto do mais aprofundado estudo. A Coladeira, mais ritmada que a morna, em alguns casos, tida mesmo como uma aceleração da morna, é hoje também uma fiel companheira das noites cabo-verdianas. Ao longo do tempo, a coladeira foi sofrendo múltiplas influências, quer vindas do outro lado do Atlântico, quer mesmo idas do nosso próprio continente.

9. Coube agora a vez a Codé di Dona, falecido no dia 5 de Janeiro, no principal hospital da cidade da Praia, o Hospital Agostinho Neto. O texto do seu obituário dizia apenas que foi vítima de “doença prolongada”.

10. Quando leio ou escuto a expressão “doença prolongada” ganho inteira liberdade para imaginar qualquer maleita, da mais conhecida e corriqueira até à mais sombria e enigmática. Porém, do que li e, depois, percebi, provavelmente Codé di Dona tenha sido mais uma vítima da muito temida doença pulmonar – a tuberculose. Seja essa, seja outra doença, afinal, o que mais importa é que, no dia 5 de Janeiro, Cabo Verde perdeu um dos seus mais emblemáticos compositores. Codé di Dona foi justamente consagrado como Rei do Funaná.

11. O Funaná é um género musical e uma dança nascidos no interior da Ilha de Santiago, a ilha mais africana das dez ilhas que compõem o Arquipélago de Cabo Verde. Com a adaptação de novos instrumentos musicais electrónicos que se juntaram à gaita (o acordeão) e ao ferrinho, o Funaná ganhou espaço não somente na capital, mas, igualmente, nas outras ilhas.

12. Daí, seguramente, o sentimento colectivo de perda que invadiu todo o Arquipélago de Cabo Verde, quando se anunciou a passagem para a eternidade desse grande músico e compositor, Codé di Dona. É assim que se tece o tempo e se compõe a história, umas vezes com felizes entradas, outras com tristes saídas…

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