quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O HAITI ESTÁ AQUI…

1. A proposta apresentada pelo Presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, a propósito da tragédia que ocorreu no Haiti é, no mínimo, caricata. Abdoulaye Wade avançou a ideia de que se deveria ceder um território no continente africano, para que os haitianos se possam resguardar e encontrar a paz de que necessitam.

2. Apreciada apenas pelo lado sentimental, por ser tão angélica, a ideia do Presidente Abdoulaye Wade poderá até “derreter” o coração do mais coriáceo ser humano. Ela teria o condão de fazer “transportar” Abdoulaye Wade para uma qualquer galáxia situada muito para além do nosso firmamento…

3. Pelo menos em relação aos haitianos, o Presidente da República do Senegal pareceu quase um santo... ou como quem tem a justa pretensão de conquistar um lugar junto dos homens e mulheres que ganharam a mais elevada graça divina…

4. Aparentemente, o Presidente do Senegal regressou a um passado já idoso, de cerca de 200 anos, quando milhares de negros livres ou acabados de ser libertados da escravatura, provenientes da América, foram transferidos para a então chamada “Costa da Pimenta”, um pedaço da terra africana pertencente à Serra Leoa, onde fundaram o país que hoje se denomina Libéria, traduzida como Terra Livre.

5. Ao contrário do que se possa eventualmente pensar, o êxodo de negros americanos para a costa africana não se deveu a um sentimento humanitário. Foi, sim, a materialização do preconceito de determinados sectores da sociedade norte-americana, para quem os negros dificilmente se adaptariam à América e ao nascente desenvolvimento capitalista. Para eles, os negros seriam a causa de quase toda a criminalidade que varria a América. Queriam ainda evitar a mistura de sangues. Os sectores brancos mais conservadores queriam, sim, ver os negros muito distantes… Estimularam, pois, a criação da Sociedade Americana de Colonização, auspiciada pelo Presidente James Monroe.

6. Depois de vários revezes na tentativa de colonização da Costa da Pimenta, em 1847, criou-se o primeiro país africano independente, que adoptou uma Constituição inspirada na Constituição dos Estados Unidos da América.

7. Os negros norte-americanos retornaram à África como colonos, tal como os colonos europeus o haviam sido no continente americano, e ainda o eram no continente africano.

8. Mesmo conservando a cor da pele e outros traços distintivos, os colonos negros norte-americanos haviam perdido muitas das suas raízes: diluíram-se as velhas identidades culturais, falavam inglês, muitos nem estavam em condições de apontar num mapa de África o local de onde os seus antepassados haviam partido. A esponja do tempo enxugara as suas memórias... Restavam-lhes ténues e vagas recordações. Os de ascendência mais remota, nem isso tinham.

9. A África é um continente enorme, não é uma pequena ilha onde todos se conhecem e quase todos se irmanam. Os escravos levados para a América, e para outras partes do mundo, partiram de vários territórios, de múltiplas nações; uns do litoral, outros do interior. Depois, sujeitos a uma nova autoridade, misturaram-se numa terra estranha. O processo histórico fez com que esses negros caldeassem novas culturas, que criassem novas identidades – Em suma, eles que partiram negros africanos, tornaram-se negros americanos.

10. Os que retornaram à África, e fundaram a Libéria estabeleceram um relacionamento conflituoso com as populações autóctones da Costa da Pimenta, a quem, inclusive, negaram a cidadania até ao ano de 1904. Desencadearam ainda acções para retirar território à Serra Leoa, colidindo com interesses franceses e ingleses.

11. Até ao ano de 1980, a Libéria somente teve presidentes descendentes de negros originários da América. Por exemplo, Joseph Jenkins Roberts, o primeiro presidente do país (um mestiço nascido no estado norte-americano da Virgínia), William Tubman, ou mesmo William Tolbert Jr., deposto em 1980, e depois assassinado, ele e o seu staff, pelo chefe da sua guarda, o sargento Samuel Doe, oriundo dos negros autóctones. Pelo menos temporariamente, alterara-se o equilíbrio étnico entre afro-americanos e africanos com todas as suas raízes assentes no continente.

12. A disputa entre descendentes de negros americanos e negros autóctones alimentou os mais profundos conflitos que a Libéria conheceu até hoje. As guerrilhas de Charles Taylor e Roosevelt “Prince” Johnson são um exemplo disso. Descendentes de negros americanos, esses dois homens derrubaram Samuel Doe e “Prince” Jonhson encarregou-se de o executar. Fê-lo com os requintes de malvadez que as câmaras registaram.

13. Cairá, pois, num profundo equívoco quem pensa que a cor da pele é o único factor de identidade. Se a identidade fosse assim tão simples, brancos americanos e brancos europeus seriam uma única e a mesma coisa. Teriam, por isso, os mesmos interesses. A cor da pele pode contribuir para distinguir, mas não forçosamente para identificar. Para criar uma identidade, sólida e coerente, participam outros factores: a língua, a cultura, a religião, o reconhecimento da ancestralidade, a consciência da convergência dos destinos e dos interesses (e estes não podem ser meramente circunstanciais).

14. É por isso que eu penso que é utópico pensar-se no transporte dos haitianos para África. Ainda mais, quando a principal motivação é salvaguardá-los das intempéries. Os haitianos não são africanos que foram passar férias no Haiti, e tiveram o azar de ser apanhados por um terramoto… Muitos deles são descendentes de negros africanos que foram levados há 500 anos.

15. Catástrofes naturais há-as em todas as partes do mundo. E sempre houve. Umas vezes, são tornados, outras são ciclones, erupções vulcânicas, tempestades de gelo…

16. Lembro, por exemplo, que Tashkent, a capital do Uzbequistão, está situada sobre uma zona altamente sísmica. No passado, ela quase foi varrida do mapa. Contabilizavam-se, então, mortos e feridos às centenas, mesmo até aos milhares.

17. No ano de 2008, a imprensa mundial fez manchete com a notícia de que, em 22 Agosto, se havia registado um tremor de terra em Tashkent. Porém, sem sinais de danos ou de incêndios. Não houve desabamentos. E sabem porquê? Porque a cidade está agora preparada para resistir aos abalos telúricos. Os uzbeques prepararam a sua cidade para enfrentar, com relativo êxito, a fúria da natureza. Não transferiram os povos para outro país, ou para outro continente.

18. Na mesma ocasião, Tóquio, uma enorme cidade que é vítima constante de terramotos, sofreu mais um abalo de terra. Também não houve registo de danos ou vítimas humanas. A América Central é outra área com forte propensão para os abanões da terra.

19. Na China, em 12 de Maio de 2008, um tremor de terra causou acima de 8.500 mortes. Constatou-se, depois, que esse elevado número de vítimas se deveu a erros na construção dos edifícios. Aconteceu assim na China, e sucederá, pela certa, na maioria dos países subdesenvolvidos.

20. O subdesenvolvimento amplifica os impactos das fúrias da natureza. Hoje, o cerne da questão é o subdesenvolvimento. A natureza encarrega-se de fazer o seu trabalho. Ela causa mais mal sobre os que estão desprotegidos.

21. Que fique bem claro, e que não restem dúvidas: o Haiti não ficou pobre por causa do último terramoto. O terramoto tornou, sim, ainda mais pobre esse país. Mas ele já era o país mais pobre do Hemisfério Ocidental. No Haiti, vemos agora, e mais uma vez, tudo era precário.

22. E nós, afinal, como estamos? Vale a pena olharmos também para nós, e sem falsos pudores.

23. Somos, sim, um país rico de recursos. Pouco mais do que isso. Temos recursos que o Haiti não possui. Vendo bem, e se atendermos ao modo como o nosso povo vive, garanto-vos que quase somos um Haiti com petróleo... Não fosse o petróleo, e estaríamos na mais dantesca ruína. E o petróleo um dia vai terminar…

24. Não nos iludamos com os edifícios de luzes brilhantes e vidros de múltiplas cores, nem com esses condomínios que nos segregam. Esqueçamo-nos, por momentos, também, dos bólides de alta cilindrada que contrastam com as estradas esburacadas, mal concebidas e de curtíssima duração.

25. Não estamos preparados para nada, nem para receber uma chuva miudinha… Qualquer pingo de água que caia sobre Luanda provoca de imediato uma grande inundação, desaloja gente, mata, arruína famílias, paralisa a cidade… Os nossos bairros estão como o Haiti. O Haiti está aqui bem junto de nós. E não veio de barco ou em ponte aérea. O nosso Haiti não retornou da América. Nunca saiu de África.

26. Abdoulaye Wade propôs aos africanos que recebam e alojem os haitianos, para escaparem à fúria da natureza. Mas a fúria que mais tem fustigado o Haiti, ao longo da sua história, é a sua incapacidade para se desenvolver. Tal como nós, os africanos. Afinal, a África, quase toda a África, é um grande Haiti…

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