quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O MUNDO ÁRABE EM CHAMAS

1. Dois acontecimentos internacionais marcaram a agenda política da última semana: o internamento hospitalar do primeiro Presidente negro da África do Sul, Nelson Mandela, acometido de uma infecção respiratória aguda, e o alastramento da contestação política e social, iniciada na Tunísia, para outros países do Magrebe, com destaque para o Egipto e, também, para países do Médio Oriente, como o Iémen e a Jordânia.

2. O débil estado de saúde de Nelson Mandela, hoje com 92 anos de idade, causou consternação em todo o mundo, tal o carinho e a admiração com que toda a gente o rodeia. O mundo ficou de novo em suspenso, com o anúncio de que algo preocupante se passava com o grande ícone da luta anti-apartheid, ele que é ainda o símbolo maior do desprendimento pelo poder e o grande exemplo da capacidade de se perdoar os adversários e de harmonizar os povos, quando estava em causa o futuro do seu país.

3. Ligar os dois factos referidos de início, o estado de saúde de um homem e a contestação política que sacode alguns países do chamado mundo árabe, parece um exercício raro, porém, não impossível. E vou mostrar-vos porquê. É que, ao contrário de Mandela, os líderes daqueles países hoje em crise não souberam corresponder às expectativas neles depositadas, tendo sido protagonistas de regimes que nada têm que os assemelhe à herança política que Mandela irá deixar para toda a humanidade. Têm sido homens com um grande apego ao poder e agentes destacados de processos de corrupção e de falta de transparência na gestão da coisa pública, além de que pisotearam os direitos mais elementares dos seus povos. Daí as dificuldades políticas que hoje conhecem, espelhadas em manifestações populares de desafio e de contestação aos seus longevos e intermináveis mandatos.

4. Ben Ali, ex-ditador da Tunísia, atravessa agora um dos piores momentos da sua vida, tendo-se exilado (fugindo ao ódio do seu povo) e ser já objecto de um mandato internacional emitido pela Interpol, para a sua captura, da sua mulher, e dos familiares mais próximos, todos acusados de apropriação ilícita de recursos públicos e do cometimento de outros crimes durante o regime que instalaram.

5. No passado recente, Ben Ali era ainda visto pelo Ocidente como um aliado natural no processo de travagem à expansão do fundamentalismo islâmico. Hoje é um pária internacional que quase ninguém quer acolher ou fazer-se acompanhar. Ditador por um longo período de 23 anos, Ben Ali está a ter o fim que merecem todos os ditadores: andarem por aí em busca de quem os acolha, até que os dias das suas vidas terminem – tal como sucedeu com Mobutu Sesse Seko, do Zaire, enterrado, sem pompa nem honra, num cemitério de judeus, em Marrocos.

6. O Presidente Hosni Mubarak, do Egipto, com 30 anos de poder ditatorial, tem também, agora, um osso muito duro para roer: tem o povo nas ruas a enfrentar o seu regime. Socorrendo-se das novas tecnologias de informação e comunicação, os jovens convocam sucessivas e cada vez mais concorridas manifestações de protesto. Está, assim, condicionado o desejo de Mubarak transformar a sucessão presidencial numa sucessão monárquica, com o filho a ocupar o espaço que irá deixar.

7. A problemática do Egipto é, de facto, mais complicada que a da Tunísia, uma vez que Mubarak e o Egipto foram peças essenciais na estratégia ocidental (em especial, norte-americana) para o encontro de uma solução política para a questão palestiniana. Essa disponibilidade do Egipto constituiu-se num mecanismo de protecção para Mubarak, tornando-o o aliado de conveniência mais protegido pelo Ocidente contra todas as adversidades. E ele soube, até agora, tirar as devidas vantagens.

8. O fantasma da Irmandade Muçulmana – o maior e mais organizado grupo de oposição no Egipto – ensombra a perspectiva de mudança, lançando dúvidas sobre um eventual novo poder no Egipto. Porém, a recente entrada em cena de Mohamed El Baradei, ex-presidente da Agência Internacional de Energia Atómica e Prémio Nobel da Paz, confere uma maior confiança ao processo de mudança. Caso Mubarak perca esta batalha política crucial que se trava no Egipto, creio que os norte-americanos não hesitarão em albergá-lo e protegê-lo. Contudo, Hosni Mubarak, mesmo que não se transforme num foragido ou num pária internacional, jamais terá o reconhecimento universal que é tributado a um Nelson Mandela, o maior símbolo político que ainda vive.

9. É também demasiado complicado fazer uma leitura da actual situação no Iémen, um dos países mais complexos da Península Arábica – terra de origem de Bin Laden, o líder da Al-Quaeda – onde, igualmente, se levantam vozes contra o poder ditatorial de Ali Abdullah Saleh, no poder há 31 anos, de quem se suspeita estar também a preparar um dos filhos para operacionalizar outra sucessão do tipo monárquico numa república.

10. Essa é, afinal, a tentação que sentem os ditadores modernos. Além de se apropriarem, por tempo indeterminado, do poder, apropriam-se também da fatia mais suculenta da riqueza nacional – que partilham, em partes desiguais, com os familiares mais próximos e os apaniguados – criando a falsa ideia de que são insubstituíveis. Por isso, se forem eles a governar, ou quem eles mandatam, o futuro será… o dilúvio.

11. Também no Iémen são, sobretudo, novamente jovens a pôr em causa mais uma ditadura, precisamente ali onde o fundamentalismo islâmico atingiu a sua expressão mais crucial. Daí que eu tenha começado por dizer que a problemática do Iémen é ainda mais complexa, igualmente pelas razões que aduzo de seguida.

12. O derrube de Ali Abdullah Salleh é crítico, uma vez que ele tem dado apoio oficial ao combate contra a Al-Quaeda. Coloca-se também a dúvida sobre o que poderá suceder face a uma eventual substituição do poder de Ali Abdullah Saleh, não se descartando a possibilidade de o enfraquecimento do actual regime vir a desencadear tendências secessionistas.

13. De recordar que a República do Iémen é uma consequência da união, relativamente recente, da ex-República Árabe do Iémen (também chamada Iémen do Norte, com capital em Sa’ana) com a ex-República Democrática do Iémen (também chamada Iémen do Sul, com capital em Aden), com passados coloniais diferentes: o Norte foi dominado pelo Império Otomano (de quem se libertou em 1918) e o Sul foi colónia britânica, tornada, porém, independente em 1967.

14. A complexidade do futuro do Iémen agrava-se ainda mais pelo facto de ser um país produtor de narcóticos e ser, também, uma espécie de guardião do Golfo de Aden, onde se desenrola a maior pirataria marítima que hoje apoquenta o mundo, tendo do outro lado do Golfo a Somália. Não será, pois, muito fácil gerir processos tão complicados como os que se desenrolam nessa parte demasiado importante do mundo que é o mundo árabe.

15. Não possuo espaço nem tempo para abordar a questão da Jordânia, e talvez, da Argélia, onde também incubam energias capazes de gerar conflitos de difícil solução. Faço-o depois, com mais profundidade e munido da informação que os conflitos que abordei irão produzir. Até lá, então!

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