1. Escrevo esta crónica precisamente no dia em que a minha mãe, Maria Luzia, faria 100 anos de idade. Faço-o com o carinho de um filho que lhe ficará eternamente grato, por tudo quanto aprendeu com ela ao longo da vida. Aqui, neste espaço, resumirei somente uma das suas belas facetas, das muitas que poderei narrar um dia, talvez, em memórias. Se tiver tempo para as escrever…
2. A minha mãe nasceu no Golungo Alto, no dia 13 de Fevereiro de 1911, quando o Golungo Alto era uma área do nosso país que se afirmava como das mais prometedoras para a produção agrícola.
3. Foi no Golungo Alto que despontou também, ainda na primeira metade do século XX, uma vasta plêiade de individualidades que marcou, de um modo indelével, o nosso percurso político. De certa forma, alguns desses homens deram-se o rumo e marcaram-lhe o compasso. Competirá, pois, aos historiadores, em conjunto com os sociólogos, pesquisarem ate que descubram o porquê de uma terra tão pequena e tão distante da capital ter gerado gente tão ilustre para o processo da nossa libertação.
4. Há cerca de uma semana, em Lisboa, eu dei uma longa entrevista de uma hora a uma emissora de rádio, num programa especialmente destinado a recuperar diversos caminhos da memória.
5. Comecei, então, por falar sobre a terra onde nasci, Calulo. Pelo que o jornalista me questionou, decididamente: “Porquê Calulo? Porque não Golungo Alto, a terra da sua mãe? Porque não Luanda, a terra do seu pai?”. Socorri-me da dinâmica da sociedade colonial da época, para explicar o porquê de ter nascido em Calulo: “O filho do funcionário público nascia lá para onde o pai fosse transferido.”
6. O entrevistador entrou em outros meandros muito interessantes da minha memória histórica: os múltiplos cruzamentos produzidos pelos meus antepassados mais remotos, criando uma complicada geografia de sangues e de culturas de que sou, afinal, um fruto.
7. O Paulo Salvador – o meu entrevistador – quis também mergulhar na geografia do meu percurso académico, desde quando entrei pela primeira vez numa escola. Foi em Cabinda. Desse marco, caminhámos para lembrança de algumas pessoas: os colegas, os professores.
8. O desporto também fez parte do recheado menu da entrevista. Foi aí que então entrou o meu inevitável Sporting Clube de Luanda, cuja camisola enverguei em infantil. Guardo ainda uma fotografia dessa época, como uma espécie de talismã. Falámos dos meus gostos musicais, dos sabores que mais aprecio. E, finalmente, entrámos, ligeiramente, no meu percurso cívico e político.
9. O meu percurso cívico e político não se pode esgotar em poucos minutos de rádio, por mais que eu o queira concentrar e resumir, já porque é bastante multifacetado. Ele manifesta a forma intensa como me tenho inserido na sociedade: sempre presente e activo.
10. Estando a ser entrevistado em Lisboa – mesmo que num programa específico de memória – era inevitável que se quisesse saber a minha visão sobre questões importantes do momento político nacional e, em especial, as minhas previsões para o futuro mais próximo. É que estamos num período de grande aceleração da história, com desenvolvimentos demasiado dinâmicos e, muitas vezes, até mesmo inesperados.
11. Era dia 4 de Fevereiro e o Paulo Salvador não quis perder aquela oportunidade para ouvir a minha opinião, recolher o meu testemunho e, sobretudo, a avaliação que eu faço sobre a importância desse grande momento da nossa história. Respondi desabridamente, destacando, inclusive, memórias da minha intimidade que, não sendo parte da história do país são, contudo, uma parte importante da minha história familiar.
12. Contei-lhe, pois, pormenores íntimos desse período glorioso, com a minha mãe a portar-se como um verdadeira heroína. A minha mãe, que faria hoje, dia 13 de Fevereiro, 100 anos de idade, acolheu corajosamente em nossa casa um dos valiosos combatentes que atacou um dos objectivos visados pelo 4 de Fevereiro.
13. Esclareço, pois, muito resumidamente, esse pormenor da nossa vida familiar, ele que ilustra a valia, a coragem e a determinação dessa mulher que foi a minha mãe, Maria Luzia da Costa Pinto de Andrade.
14. Ao lado da nossa casa, no Marçal, viviam algumas famílias saídas do Icolo e Bengo. Recordo, em especial, as famílias do senhor Francisco da Costa e do senhor Sebastião. Penso que este último se chamaria Sebastião Adão.
15. Um dado importante: os filhos dessas duas famílias foram praticamente dados a baptizar aos elementos mais crescidos da minha casa: à minha mãe e às minhas irmãs e irmãos mais velhos – julgo que devido ao respeito e consideração que os pais nutriam por nós, muito em especial, pela minha mãe, sempre cordial, solidária e atenciosa. Os pais desses meninos e dessas meninas passaram a ser tratados por nós por Compadres e Comadres.
16. Referimo-nos sempre ao “Compadre Francisco” e ao “Compadre Sebastião” com intimidade que ultrapassava a diferença das idades. Quis, pois, o tempo e, sobretudo, as circunstâncias da vida que nos tivéssemos tornado cúmplices desses homens de origem modesta, mas determinados nacionalistas.
17. Nas suas casas, ao lado da nossa, eles faziam reuniões políticas encapotadas sob o véu de reuniões religiosas… A minha mãe percebia, ajudava a disfarçar e a encobrir, para passarem desapercebidas aos olhos das autoridades coloniais e dos colonos que também eram nossos vizinhos. Até que um dia se dá o ataque do 4 de Fevereiro de 1961… E, posteriormente, o do 11 de Fevereiro. Portanto, uma semana depois…
18. Na madrugada do dia 11 de Fevereiro bateu-nos a porta o “Compadre Sebastião”. Ele vinha ferido, com uma bala encravada no ombro, pedindo ajuda e protecção à Comadre Maria Luzia.
19. A minha mãe não só o acolheu como, também, lhe retirou a bala, desinfectou e suturou a ferida. Fez-lhe o penso. Administrou-lhe antibióticos. Tratou o Compadre como se de um filho ou de um irmão se tratasse. A minha mãe ia fazer 50 anos e ele tinha 30 anos, a idade da minha irmã mais velha.
20. A minha mãe, Maria Luzia, era potente, corajosa e solidária. Cedeu o seu quarto pessoal ao “Compadre Sebastião”. Passou a dormir no quarto das minhas irmãs. Atendia pessoalmente aos cuidados do “Compadre Sebastião”, curando-o e alimentando-o. Nenhum de nós estava autorizado a entrar naquele quarto que albergava um dos atacantes daqueles dias de grande glória e simbolismo. Apenas ela podia lá entrar.
21. Refeito, numa manhã, o “Compadre Sebastião” pediu autorização à minha mãe para sair do quarto, indo não sabemos aonde… Poucas horas depois, voltou dizendo que tinha que sair de nossa casa ainda naquele dia… A minha mãe quis dissuadi-lo da ideia, alegando que só deveria abandonar a nossa casa depois de estar completamente curado, pois corria o risco de apanhar uma infecção. Então, as consequências seriam graves.
22. Cortês, mas muito emocionado, o “Compadre Sebastião” agradeceu à minha mãe o bem que lhe tinha feito. E a nós também, os seus “compadres” miúdos... Porque todos, afinal, éramos seus cúmplices.
23. Nessa noite, a nossa casa foi assaltada pelas autoridades coloniais. Passaram a casa a pente fino, sem dizerem ao que vinham nem o que procuravam… Encontraram lá apenas uma família angolana, dirigida por uma viúva zelosa na sua missão de criar os filhos, menores e órfãos. Mesmo que tenham mostrado saber o nosso sobrenome, os militares ficaram, talvez, convencidos que se haviam enganado…
24. Se o “Compadre Sebastião” tivesse ficado mais esse dia escondido em nossa casa, creio que hoje eu não estaria aqui a escrever esta crónica de memória. A minha mãe teria seguramente sido fuzilada ali mesmo, diante de todos nós. E, de seguida, alguns de nós seríamos também encomendados, …
25. Porém, ainda nesse mês de Fevereiro, foi morto à pancada pelos portugueses o meu tio Carlos Costa, o irmão mais novo da minha mãe, que era secretário do Cónego Manuel das Neves, na Igreja dos Remédios.
26. Oito anos depois, eu e o meu irmão Vicente éramos já companheiros de processo político, de cadeia e de degredo de dois dos actores desse “4 de Fevereiro”: o Augusto Kiala Bengue, o “Makiala”, e o Paiva Domingos da Silva, o “Kassissa”. Nessa época, a história tão aumentou muito de velocidade…
27. Foi em Cabo Verde, e pelo “Kassissa” que soubemos, mais tarde, que o nosso “Compadre Sebastião” se tinha entrincheirado na mata, que fora continuar a lutar… E mais: que ele era conhecido por Sebastião “Badiaba”.
28. Os filhos do “Compadre Sebastião”, e também os do “Compadre Francisco da Costa”, continuaram durante muito tempo a ser acarinhados no seio da minha família. Por isso, até hoje nos tratamos como irmãos… E os seus filhos chamam-me “Tio Justino”. Não temos qualquer sangue que nos una, mas na dor, na luta, na solidariedade, nós forjámos uma família...
29. Na entrevista que o jornalista Paulo Salvador me fez em Lisboa – como disse de início, uma entrevista virada, sobretudo, para a memória – no final, ele perguntou: “Da sua memória, o que é que lhe deixou mais saudade?”. A resposta saiu-me rápida, limpa, sem ruído, sem qualquer hesitação: “Tenho muita saudade da minha mãe, Maria Luzia!”.
30. Se ela estivesse viva, e se eu lhe recordasse esse episódio, ou outros de que foi protagonista, seguramente que a sua resposta sairia também rápida, limpa, sem ruído, sem hesitação: “Filho, eu apenas cumpri o meu dever!...”
Filho és pai serás! A maior riqueza que nos podem deixar são as memórias, as boas memórias, são a elas que nos guiam e fazem de nós o que somos!
ResponderEliminarEu sei que é um comentário que vale o que vale, mas ainda tenho mãe e também gosto dela.
Bem haja.
Fernando Tomas
Muito Interessante...Serão notas para um futuro livro de memórias?
ResponderEliminarPaulo Inglês