sexta-feira, 29 de abril de 2011

O DISCURSO DE JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS

  1. No dia 14 deste mês, na reunião do Comité Central do MPLA, o presidente José Eduardo dos Santos proferiu um discurso que suscitou desapontamento em certos sectores da nossa sociedade. Houve mesmo quem o tenha considerado um verdadeiro insulto à sua inteligência.

  1. Neste espaço não me é possível analisar a totalidade da intervenção de José Eduardo dos Santos, pelo que vou apenas limitar-me a uma das questões económicas, e que é também eminentemente social, que me pareceu ser a mais sensível: a problemática da pobreza em Angola.

  1. Sobre esta matéria, foram, pois, as seguintes as palavras do presidente do MPLA: “Dizem, por exemplo, que há pobreza no país. Nunca ninguém disse que não há e esta situação não é recente. Quando eu nasci e mesmo quando os meus falecidos pais nasceram já havia muita pobreza na periferia das cidades, nos musseques, no campo, e nas áreas rurais.

Agostinho Neto falou nos seus versos da miséria extrema dos musseques, das casas de lata sem água nem luz eléctrica. António Jacinto, outro poeta proeminente, falou do contratado, cujo pagamento era fuba e peixe seco e ‘porrada’ quando se refilava.

Foi no musseque e no campo, nesse mundo de pobreza, que a maior parte de nós nasceu, cresceu e forjou a sua personalidade.

Conhecemos a origem da pobreza em Angola. Não foi o MPLA nem o seu Governo que a criou. Esta é uma pesada herança do colonialismo e uma das causas que levou o MPLA a conduzir a nossa luta pela liberdade e para criar o ambiente político necessário para resolver esse grave problema.

Infelizmente, as guerras que assolaram o país agravaram a situação, mas se consultarmos as estatísticas veremos que, com a conquista da paz em 2002 e graças ao trabalho do nosso Governo, os índices de pobreza que estavam em cerca de 70 por cento em 2002, baixaram oito anos depois, em 2010, para cerca de 37 por cento, quase metade!

Temos um programa de luta contra a pobreza e, se continuarmos com esse ritmo de redução, esse problema deixará de existir dentro de alguns anos.”

  1. Estou de acordo com o presidente do MPLA quando ele diz que no período colonial já havia pobreza em Angola e que tal pobreza era bem visível nos musseques e nas áreas rurais. Estou também em sintonia com o discurso de José Eduardo dos Santos quando ele invoca os testemunhos inseridos nos versos de dois dos mais consagrados poetas angolanos: Agostinho Neto e António Jacinto. O primeiro referia-se poeticamente às casas de lata sem água e sem energia eléctrica, e o segundo ao trabalho contratado cujo pagamento, por vezes, era feito com fuba podre e peixe pobre, e até mesmo “porrada” se refilassem…

  1. Para alguns, foi esse estado de coisas que os motivou a aderirem ao projecto da luta de libertação nacional. Para outros terá sido, talvez, mais a consciência de que a relação colonial era uma aberração e, por isso, não se adequava aos novos tempos. Houve mesmo quem tenha participado na luta com o objectivo de criar um país novo, livre da opressão colonial, mas, onde também viesse a imperar a justiça social e em que as liberdades civis, políticas e económicas não passassem de retórica ou de meras intenções.

  1. Enfim, cada um de nós teve as suas motivações particulares e foi no conjunto dessas motivações particulares que conseguimos a proeza de libertar o nosso país do jugo colonial. Mas, depois, revelaram-se as personalidades de cada um e, sobretudo, as ambições subjacentes.

  1. Infelizmente, o presidente do MPLA não teve a coragem de assumir a sua quota-parte de responsabilidade no processo de empobrecimento do nosso país. Ele limitou-se a recuar à miséria que os angolanos herdaram do período colonial – que ninguém, em sã consciência, pode negar – assim como ao contributo da guerra civil para o aprofundamento dessa miséria. Mas o presidente do MPLA equivocou-se redondamente quando retirou de cima do seu partido o peso da responsabilidade pela persistência da pobreza em Angola.

  1. É bom recordar que, em 1975, todos foram culpados pela guerra que sobreveio, já que não foram capazes de criar uma plataforma de entendimento que nos permitisse ascender à independência unidos na nossa diversidade. No fervor das opções políticas e convicções ideológicas de cada um, os protagonistas angolanos socorreram-se dos seus aliados para mais facilmente chegarem ao poder e, se possível, usufruírem dele sozinhos. Foi assim que arrastaram o povo angolano para uma guerra civil que durou décadas.

  1. A guerra civil angolana de modo algum pode ser apenas atribuída às potências externas que nela intervieram. Nós, os angolanos, fomos parte activa e consciente. Nós, os angolanos, não funcionámos como meros autómatos, como alguns agora preferem fazer parecer.

  1. Se é verdade que a guerra civil contribuiu para tornar muitos angolanos ainda mais pobres do que já eram no tempo colonial, como disse o presidente do MPLA, deixar de reconhecer que as opções políticas que se fizeram, e a que José Eduardo dos Santos aderiu entusiasticamente e até aprofundou, são hoje a principal causa da persistente pobreza que o povo angolano conhece.

  1. O modelo de economia por que o MPLA optou, logo depois da independência, desgraçou, por exemplo, a vida de muita gente. Para o MPLA, o Estado seria, tendencialmente, o único proprietário, e a propriedade privada seria um mal a ser extirpado.

  1. Hoje, o presidente do MPLA utiliza como bandeira dados estatísticos que foram obtidos por metodologias diferentes, logo não comparáveis, para se vangloriar dos méritos da acção do seu governo no combate à pobreza. Disse, por exemplo, que depois do final da guerra os índices de pobreza se reduziram substancialmente de cerca de 70% para perto de 37%. Já o mesmo tinha sido afirmado não há muito tempo pelo Coordenador Residente das Nações Unidas em Angola, Koen Vanormelingen, em conferência de imprensa realizada em Luanda, fazendo, contudo, referência ao facto de essa avaliação ter sido feita com base nas receitas monetárias.

  1. Na altura, o Coordenador Residente das Nações Unidas atribuiu a responsabilidade de tais avanços ao facto de sermos um país que exerce uma forte atracção para o investimento estrangeiro, estarmos em fase de reabilitação das infra-estruturas económicas e sociais, haver um sensível recuo nos níveis de mortalidade materna e infantil, por estarmos a aumentar de forma significativa a taxa de escolarização primária e a expandir a nossa rede sanitária, e por se verificar um crescente número de quadros técnicos.

  1. Porém, o Coordenador Residente das Nações Unidas em Angola fez ainda referência ao facto de prevalecerem entre os angolanos grandes disparidades que, no médio e no longo prazo, podem pôr em causa o próprio desenvolvimento económico e social. E ilustrou o seu pessimismo com a existência de 7 milhões de angolanos a viverem com menos de 1.75 usd, cerca de 1 milhão de crianças fora do sistema nacional de ensino primário, e milhões de pessoas sem acesso a serviços de saneamento adequados.

  1. É bom dizer que, modernamente, o rendimento monetário não é argumento suficiente para exprimir devidamente o estado de pobreza. Uma concepção moderna da pobreza tem de atender ainda a outros aspectos para além do rendimento monetário. Por exemplo, à dificuldade de acesso aos bens e a determinados serviços básicos, como água, luz, saúde, educação e habitação, o que dá uma ideia multifacetada da condição de vida dos pobres.

  1. No caso de Angola, a lógica do rendimento monetário falece imediatamente, se tivermos em linha de conta o valor do dinheiro e o nosso custo de vida – que é um dos mais caros do mundo. O que são, afinal, 2 usd/dia numa sociedade em que até um pequeno balde de água custa os olhos da cara?

  1. O economista do Bangladesh e Prémio Nobel da Paz 2006, Muhammad Yunus, vai ainda mais longe quando diz que pobre é “quem está inseguro quanto ao futuro e sem previsão dos rendimentos que terá para sobreviver”.

O presidente do MPLA ignorou estas abordagens mais realistas, apegando-se apenas a números que não espelham bem a realidade do nosso país, e, muito em especial, dos musseques e das nossas áreas rurais.

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