1. Mesmo com algum eventual desacerto no
número de mortos apresentado em Conferência de Imprensa, pelo líder da bancada
parlamentar da UNITA, Raúl Danda, sem sombra de dúvidas que a cruel repressão de
que foram objecto os seguidores da seita religiosa “A Luz do Mundo”, de José
Julino Kalupeteca, configura algo muito próximo do massacre. Quanto mais não
fosse, só por tal facto, ela ficará registado para a história como um dos
dramas humanos mais horríveis ocorridos no Planalto Central angolano, concretamente
na província do Huambo.
2. Matar indiscriminadamente civis
desarmados, de modo algum é um acto militar heroico, muito menos poderá ser
motivo de orgulho ou de honra para unidades policiais, cuja missão é a salvaguarda
da ordem pública, prevenindo o crime ou desarticulando grupos criminosos.
3. A repulsa causada pela morte de polícias,
num confronto atribuído aos seguidores da seita, também não justifica a forma
desproporcionada como se retaliou a seita, matando gente civil, a maioria dos
quais terão cometido apenas o “crime” de seguirem um “profeta” que os atraiu
com base em matéria de fé.
4. É exigível às autoridades firmeza nos
seus actos mas, igualmente, o máximo de ponderação e de sentido de
responsabilidade, já porque tivemos na nossa história recente situações de grande
descontrolo que levaram ao cometimento de verdadeiros massacres.
5. Recordo, por exemplo, os
acontecimentos que sucederam ao “27 de Maio de 1977”, que terão vitimado um
número indiscriminado de angolanos, na sua maioria inocentes, assim como a traumática
“Sexta-Feira Sangrenta” com contornos étnicos perfeitamente identificados.
6. Se é verdade que o massacre que se
seguiu ao “27 de Maio de 1977” entra na “contabilidade” do mandato de Agostinho
Neto, a “Sexta-Feira Sangrenta” e o agora conhecido como “O Massacre da Seita
Kalupeteca” vão entrar no “Livro de Contas” da governação de José Eduardo dos
Santos.
7. Hoje ainda se esgrimem argumentos e
contra-argumentos sobre quem foram os responsáveis morais e materiais
envolvidos na mortandade que se seguiu ao “27 de Maio de 1977”. Ao falecido
Presidente Agostinho Neto, em especial, é atribuída a responsabilidade política
por tudo quanto aconteceu. Sobretudo, pelo modo como ele reagiu – muito a frio
– ao tomar conhecimento da morte de cerca de meia dúzia de responsáveis
políticos a si fielmente vinculados. Terá mesmo pronunciado a seguinte frase: “Não
haverá perdão. E não perderemos tempo com julgamentos…”.
8. Com tal pronunciamento, Agostinho
Neto terá soltado as “feras” escondidas no fígado de muitos dos que o seguiam,
que se sentiram legitimados para atropelar todas as regras prudenciais aconselháveis
em momentos de grande tensão.
9. Caso, eventualmente, não fosse sua
intenção desencadear um morticínio de grandes proporções, a Agostinho Neto
competia fazer todo o esforço possível para esmagar dentro de si a dor que legitimamente
podia estar a sentir pela perda dos seus correligionários. Só Agostinho Neto
tinha poder capaz de travar a sanha assassina que se revelava nos matadores de
serviço. Em nome da defesa da “revolução”, os matadores de serviço foram
descarregando o seu ódio sobre os seus antigos companheiros, de repente,
tornados inimigos… E isto durou muitos meses.
10.
De dentro da cadeia onde me achava preso há já mais de um ano, fui vendo ou
tomando conhecimento, com enorme amargura, do que se passava… O número dos
mortos aumentava em exponencial.
11.
Quem sobreviveu a essa hecatombe, lembrar-se-á, pela certa, da famosa “Noite
de 23 de Março de 1978”, com carros (algumas ambulâncias) a recolherem presos
que seriam levados para a morte. Percorreram a Cadeia de São Paulo e a Casa da
Reclusão, num lúgubre “arrastão”… Misturaram presos de delito comum e de
pequenos delitos, com simples suspeitos, massacrados juntamente com acusados de
envolvimento no “27 de Maio”.
12.
E a famosa “Noite das Facas Longas” também ficará para sempre gravada na
memória…
13.
Muitos dos responsáveis políticos desses tristes acontecimentos já
morreram, outros estão agora envelhecidos ou mesmo incapacitados. Mas os que
sobrevivem dormirão, seguramente, mergulhados nos seus fantasmas… Sei que alguns
se tornaram, inclusive, crentes religiosos, como forma de aspirarem a um perdão
no Céu pelos crimes cometidos na terra…
14.
O agora conhecido como o “Massacre dos seguidores de Kalupeteca” tem que
ser devidamente esclarecido, assim como o modo como morreram os polícias da
Caála, sob pena de, mais uma vez, a culpa morrer solteira…
15.
A directiva de José Eduardo dos Santos de ser urgente “desmantelar a
seita”, pode ter sido interpretada como uma ordem indirecta para se matar
indiscriminadamente, por apenas se ser fiel da seita de Kalupeteca, tal como
sucedeu com o “27 de Maio de 1977”.
16.
Para dissipar dúvidas, José Eduardo dos Santos deveria assumir ele
próprio a responsabilidade de exigir um inquérito exaustivo e rigoroso,
integrando, inclusive, individualidades idóneas, nacionais e internacionais.
Assim se apuraria mais facilmente a verdade e se puniriam os culpados, com base
na Lei. Caso não o faça, José Eduardo dos Santos sujeita-se a carregar sozinho
sobre os ombros a responsabilidade política pelo massacre dos fiéis seguidores
do “profeta” Kalupeteca. Tal com a figura de Agostinho Neto ficou manchada com
os crimes que se seguiram ao “27 de Maio de 1977”.
17.
Faço questão de recordar que a memória histórica não é fácil de apagar e
que há crimes hediondos que não prescrevem. Basta lembrarmo-nos que, ainda há
poucos dias, se sentou no tribunal, na Alemanha, Oskar Groening, conhecido como
o “contabilista” do Campo de Extermínio de Auschwitz, onde pereceram cerca de
300 mil pessoas às mãos dos SS nazis.
18.
Oskar Groening está agora com 93 anos de idade e está perfeitamente
lúcido. Mesmo que não tenha sido acusado por ninguém por envolvimento directo
nas mortes dos prisioneiros, todavia, admitiu publicamente a sua quota de
responsabilidade, relatando ao pormenor o seu papel e, com isso, ajudando a
desmentir aqueles que continuam a negar a existência do Holocausto.
19.
Repito: os crimes hediondos não prescrevem!
Não poderia estar mais de acordo com o testemunho de um momento terrível na história desse País. Na altura era militante do MPLA e pude ver amigos serem sumariamente liquidados sem julgamento só por serem inconvenientes a alguns dos que ansiavam tomar o lugar dos velhos senhores do poder colonial. Senti com tristeza essa tomada de posição de A. Neto apesar de me lembrar do CMdt Dengereu que tombou na sua defesa, este camarada como cmdt da região Leste Moxico sempre protegeu as opções honestas dos militantes que se mostraram isentos no seu trabalho. Cumprimentos e um grande respeito pela coragem dos que como sempre ousam desafiar os poderosos a favor dos direitos dos mais fracos.
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