quinta-feira, 29 de abril de 2010

UMA MÁSCARA…

1. Há dias, fiz-me à estrada, em direcção ao Sumbe e Benguela, por solicitação da Associação Chá de Caxinde. O objectivo foi o de proferir duas palestras, uma em cada localidade, tendo como público-alvo a comunidade académica das duas províncias, numa iniciativa denominada “Chá nas Universidades”.

2. Senti-me muito honrado pelo convite vindo de uma das mais dinâmicas e prestigiadas associações que o nosso país possui. Não posso também deixar de agradecer à Universidade Rei Katyavala pela colaboração que estabeleceu com aquela associação cultural e recreativa, criando as condições para o êxito do empreendimento.

3. Mais uma vez, a Associação Chá de Caxinde saiu do seu espaço de nascimento, demandando outras paragens do nosso país. Isso empresta-lhe uma dimensão mais abrangente, indo para além da nossa capital.

4. O tema escolhido para as minhas duas palestras adequa-se perfeitamente ao perfil da Associação Chá de Caxinde: “A Sociedade Civil em Processos de Transição Democrática”. Digo isto porque as associações de carácter recreativo e cultural podem jogar um papel de destaque na luta pela pluralidade de ideias e pela liberdade de expressão, dois dos condimentos essenciais para as transições democráticas. Daí que eu tenha aceite, sem hesitações, o convite que me foi formulado pelo Jacques dos Santos, ele que foi o inspirador, que é o principal animador, e é também o rosto mais visível dessa associação que já se tornou num dos principais emblemas do movimento associativo angolano.

5. Em Benguela e no Sumbe falei sobre as transições democráticas, começando por descrever algumas das questões ligadas à “transitologia”, uma área relativamente recente ao nível da Ciência Política.

6. Para falar de “transitologia” é preciso esmiuçar alguns conceitos teóricos ligados ao fenómeno democrático, procurando observar as questões que geralmente lhe vêm atrelados. A “transitologia” preocupa-se, muito em especial, com o estudo dos movimentos sociais e do eleitorado ali onde desmoronaram regimes ditatoriais, ou regimes autoritários. O seu principal “laboratório de estudo” tem sido alguns países da América Latina, como o Brasil, Argentina, Chile, mas, igualmente, as antigas Repúblicas Populares do Leste, incluindo a Rússia.

7. Eu penso que também já é altura de nos debruçarmos sobre esse fenómeno político e sociológico nos nossos próprios países, para lhe definirmos os contornos e para vislumbrarmos as suas debilidades.

8. Não tenho dúvidas de que ainda estamos a pagar uma velha factura. Não tenho dúvidas de que ainda somos tributários do regime de partido único sob o qual vivemos durante mais de uma década e meia. Estando, embora, no quadro de um sistema político multipartidário, seria precipitado e mesmo incorrecto dizer que somos já uma democracia. O nosso é ainda um processo de transição que poderá, ou não, desembocar numa democracia.

9. Há alguns anos atrás, eu escrevi que Angola era um caso de transição sem mudança, muito embora tenhamos, formalmente, adoptado um sistema político multipartidário. Fiz igualmente alusão a países que tiveram êxito nessa transição, ou seja, a países que são hoje democracias, mesmo que em processo evolutivo. Disse, ainda, que o bom êxito da transição dependerá da dinâmica interna das forcas políticas e sociais, mas, igualmente, da sua envolvente externa.


10. Não obstante o discurso teórico dos nossos parceiros internacionais, o facto de sermos um país rico em petróleo e em outros recursos, faz com que as forças internas relapsas à mudança democrática resistam aos aparentes condicionalismos externos. Por isso, é bem visível o modo como não se aplicam entre nós os princípios da boa-governação, transparência e respeito pelos direitos humanos.

11. Presentemente, temos uma oposição político-partidária muito fraca. Todavia, mesmo que se reconheça existirem enormes debilidades por parte da nossa sociedade civil, são, porém, as suas acções que mais têm prendido a atenção da sociedade e da comunidade internacional.

12. Como podemos, então, compreender o processo de transição angolano? Façamo-lo em termos comparativos com o que sucedeu nos países da Europa do Leste.

13. O que sucedeu, pois, nalguns desses países após a queda do Muro de Berlim, em 1989:

i) Não só ocorreram profundas transformações políticas, mas, também, transformações no campo económico.

ii) Abriu-se o espaço de intervenção a novos actores, e os antigos Partidos Comunistas ou se metamorfosearam em Partidos Socialistas, ou em Partidos Social-Democratas. Mas o que é importante reter aqui, é que eles deixaram de ser partidos únicos e até deixaram mesmo de ser partidos hegemónicos.

iii) Do ponto de vista económico, consolidaram-se as regras do mercado. Penso que a proximidade à Europa democrática contribuiu muito para essa evolução. De tal modo que alguns de entre eles são hoje parte integrante da União Europeia. Houve, assim, uma transição com mudança.

14. Com a Rússia, deu-se uma transição para o multipartidarismo, mas sem mudança. Senão, vejamos:

i) Teoricamente, abriu-se o espaço político ao sistema multipartidário. Contudo, a antiga oligarquia comunista, ou os seus representantes, procuraram repartir entre si o poder económico, enriquecendo à custa da apropriação ilícita do património público.

ii) O facto de a Rússia possuir enormes quantidades de recursos naturais permite-lhe assumir alguma autonomia económica e política no contexto internacional. A Rússia não está sujeita aos condicionalismos que geralmente as agências de financiamento internacional impõem aos países com menos recursos. O pacote constituído pela boa-governação, transparência e respeito pelos direitos humanos não faz parte do “menu” tradicionalmente servido pelos países ocidentais e pelas agências financeiras.

15. Nas minhas palestras, alguém referiu que o caso angolano está muito mais próximo do que sucedeu na Rússia, do que do modelo seguido pelos restantes países da Europa do Leste. Por isso, temos a germinar entre nós (e sem limites) oligarquias que fazem lembrar as que hoje imperam na Rússia. Eu não contestei.

16. Nós não trilhámos, também, os caminhos do Brasil, da Argentina ou do Chile. Daí a que se assista, de um modo, à permanente perseguição aos movimentos sociais que não são “correias de transmissão” do partido no poder.

17. O modelo que seguimos não nos conduzirá à criação a uma sociedade verdadeiramente democrática. Quando muito, ficaremos, sim, pela sua máscara…

1 comentário:

  1. obrigado amigo Justino por mais esse subsídio à percepção da dita "transição para a democracia" que nos vem sendo imposta e que até tem beneficiado da cumplicidade de governos de países cujos regimes são democráticos mas que se rendem aos interesses económicos que motivam as suas relações com Angola.

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