1. Ao contrário do que sucedeu na Tunísia e no Egipto, na Líbia o derrube do ditador Muhammar Gaddafi está a ser efectuado com um enorme esforço em perda de vidas humanas e destruição de infra-estruturas físicas. Tudo se deve ao facto de o ditador oferecer grande resistência e manifestar uma tremenda insensibilidade face ao sofrimento do povo. Tanto assim é que já se contabilizam por milhares os mortos, os feridos e os desaparecidos, e as cidades mais importantes e estratégicas do país vão caindo sucessivamente nas mãos dos populares insurgentes, aliados a soldados que se bandearam para o seu lado.
2. O que começou sob a forma de uma revolta popular, com manifestações públicas, veio a transformar-se, depois, em verdadeira campanha militar e guerra civil, envolvendo equipamentos bélicos, inclusive, meios aéreos.
3. Estamos, pois, perante uma guerra civil que seria evitada, caso o ditador e seu “núcleo duro” tivessem ouvido a voz da razão e, recorrendo ao diálogo, optassem por minorar os danos do conflito político. Não o quiseram fazer e, agora, estão aí bem visíveis os dramáticos resultados da cegueira política e da ambição de poder: a Líbia, um Estado antes beneficiário do “maná do petróleo”, está hoje em vias de se transformar num “pedinte” da comunidade internacional. De seguida, passará para a condição de um corpo em putrefacção onde todos os abutres irão debicar, retirando a sua lasca…
4. Acredito que, nesta altura, as grandes companhias internacionais – até aquelas que, por precaução e para protegerem os seus trabalhadores se vão retirando – estarão a equacionar esquemas de retoma da actividade económica, tão logo cessem as hostilidades.
5. Como sempre, e inevitavelmente, as empresas petrolíferas retomarão a exploração, assim como as construtoras e as empresas que se dedicam ao fornecimento de bens de consumo essenciais. Trata-se, pois, de uma trajectória lógica, sem alternativa e impossível de contestar, o que não sucederia apenas se o país não dispusesse de recursos para honrar os compromissos. E a Líbia tem essa potencialidade, pois é um dos países africanos mais dotados de petróleo e de gás, gozando, para cúmulo, do privilégio de se situar mesmo defronte de um dos principais mercados consumidores e fornecedores do mundo, o mercado europeu.
6. As grandes obras de infra-estrutura já construídas, e também as que estão em curso, ficarão, assim, prejudicadas por um longo período de tempo, num país que tinha todas as condições para ser próspero.
7. Invariavelmente, os ditadores têm a seguinte característica: edificam, sobretudo, obras faraónicas para alimentar o seu ego e a sua megalomania, mas, depois, não se importam de deixar destruir tais obras, quando chega o momento da contestação, que é quase sempre violenta e traumática. Para os ditadores, o tempo não passa, acham-se eternamente desejados e amados pelos seus súbditos. É o círculo de bajuladores de que se rodeiam que lhes alimenta tal ilusão de que, depois deles, só pode vir algo muito trágico: o dilúvio…
8. Para alimentar a ilusão de uma eterna juventude, os ditadores chegam ao extremo de abusar de intervenções cirúrgicas plásticas para lhes rejuvenescer os rostos, disfarçando as inexoráveis marcas do tempo. Recordo, a talhe de foice, a imagem pública de Hosni Moubarak, ou o ridículo que faz o ditador do Zimbabwe, Robert Mugabe, apresentado pelos jornais, agora, e publicamente, como tendo apenas um papel decorativo na intimidade do lar. Mas, voltemos à Líbia e a Gaddafi, que é a razão de ser deste artigo.
9. Os que o começaram por pretender derrubá-lo foram jovens quadros, muitos dos quais com elevada qualificação académica, porém, mergulhados em dificuldades de toda a ordem. As primeiras imagens editadas eram elucidativas: de modo algum se viram zaragateiros nas ruas, amotinados, e a contestar o regime – viu-se, sim, gente educada e com perfeita consciência de que merece muito mais do que aquilo que o regime lhes oferece.
10. Os civis anti-Gaddafi põem em causa a legitimidade da ditadura e a longevidade do seu poder – um poder que o ditador tinha a intenção de transmitir por via hereditária, como se de uma monarquia se tratasse. Ironicamente, logo o mesmo Kaddafi que derrubou do poder um monarca, o Rei Idris I…
11. De início, na desordem que se instalou não existia um comando centralizador das forças de oposição. Eram apenas os populares revoltosos a assumir a totalidade do ónus, sem que, entre opositores e poder, houvesse uma estrutura política organizada capaz de dar rumo e destino à dinâmica popular. Tal vazio só foi possível porque o actual regime jamais admitiu a constituição de partidos políticos alternativos, muito menos consentiu a emergência, internamente, de figuras políticas de destaque. Até agora, a Líbia era o Coronel Gaddafi e o Coronel Gaddafi era a imagem da Líbia. Mesmo a sua estrutura governativa, baseada em comités populares, é primária e quase artesanal. Os ministros são, como se viu, instrumentos do Chefe, servindo-o sem critério.
12. Na Tunísia, poucos dias antes de a revolução se tornar vitoriosa, houve quem pusesse demasiados pontos de interrogação sobre o seu êxito, destacando os seguintes aspectos: 1) Falta de liderança política da parte da oposição – metade dos opositores políticos ao regime de Ben Ali a viverem no exterior, e não se tendo destacado internamente alguém com força e carisma para conduzir o processo; 2) Falta de entusiasmo por parte dos países ocidentais, dado que Ben Ali constituía para eles um garante na luta contra o radicalismo islâmico na região; 3) A enorme capacidade de sobrevivência, no passado, demonstrada por Ben Ali; 4) A incógnita sobre a posição do Exército.
13. Para dar um certo rumo à revolução, e evitar que as forças do passado se apropriem dela, desvirtuando-a, grupos políticos de esquerda constituíram, já, a “Frente do 14 de Janeiro”, data de referência da fuga para a Arábia Saudita do ditador Ben Ali, uma Frente que integra grupos políticos de esquerda de múltiplos quadrantes, desde “nasseristas” à esquerda operária, democratas nacionalistas, comunistas, etc. Uniram-se todos em oposição ao actual governo de transição, muito marcado por figuras do velho regime do RCD, o partido político que suportou a ditadura de Ben Ali e ao qual pertenceu, igualmente, o até a pouco tempo líder do governo de transição, Mohammed Al-Ghanouchi.
14. Mesmo que Gaddafi se tenha esforçado em acenar com o fantasma da Al-Qaeda e de Bin Laden, fica visível que a revolta popular não possui a marca do líder extremista, nem mesmo até na sua terra de origem, o Yemen.
15. Que lição a tirar, pois, do processo líbio? Os ditadores esquecem-se sempre do que poderá acontecer quando chegar o tempo do render da guarda… A ausência de uma oposição credível dificulta o encontro de equilíbrios e de consensos. Inviabiliza mesmo a busca de uma escapatória para os que são rendidos no poder, e de forma decisiva, pela vontade popular.
16. O que eu vejo hoje na Líbia não é o que eu gostaria de ver um dia no meu país. Como pessoa moderada que me considero, eu gostaria de ver afastadas todas as soluções que impliquem o recurso à violência extrema e que impulsionem angolanos a matarem outros angolanos, ou que se tenham que exilar para ter segurança. Afinal, somos todos filhos deste país e é aqui que devemos viver, mesmo que, em alguns casos, haja, para alguns, contas pendentes com a justiça, fruto da corrupção, do tráfico de influências, do abuso do poder e do enriquecimento ilícito e sem justa causa.
17. O exemplo da Líbia deveria, pois, servir-nos de referência. É tempo de quebrarmos as ilusões da eternidade. Esta é a altura para nos consciencializarmos de que a dinâmica das sociedades leva a que outros valores se levantam. Por isso, elas procuram sempre novas soluções.
18. Depois deste “muro” que foi quebrado e que está a fazer transbordar verdadeiras enxurradas de lama, outros “muros” também cairão, inexoravelmente!
2. O que começou sob a forma de uma revolta popular, com manifestações públicas, veio a transformar-se, depois, em verdadeira campanha militar e guerra civil, envolvendo equipamentos bélicos, inclusive, meios aéreos.
3. Estamos, pois, perante uma guerra civil que seria evitada, caso o ditador e seu “núcleo duro” tivessem ouvido a voz da razão e, recorrendo ao diálogo, optassem por minorar os danos do conflito político. Não o quiseram fazer e, agora, estão aí bem visíveis os dramáticos resultados da cegueira política e da ambição de poder: a Líbia, um Estado antes beneficiário do “maná do petróleo”, está hoje em vias de se transformar num “pedinte” da comunidade internacional. De seguida, passará para a condição de um corpo em putrefacção onde todos os abutres irão debicar, retirando a sua lasca…
4. Acredito que, nesta altura, as grandes companhias internacionais – até aquelas que, por precaução e para protegerem os seus trabalhadores se vão retirando – estarão a equacionar esquemas de retoma da actividade económica, tão logo cessem as hostilidades.
5. Como sempre, e inevitavelmente, as empresas petrolíferas retomarão a exploração, assim como as construtoras e as empresas que se dedicam ao fornecimento de bens de consumo essenciais. Trata-se, pois, de uma trajectória lógica, sem alternativa e impossível de contestar, o que não sucederia apenas se o país não dispusesse de recursos para honrar os compromissos. E a Líbia tem essa potencialidade, pois é um dos países africanos mais dotados de petróleo e de gás, gozando, para cúmulo, do privilégio de se situar mesmo defronte de um dos principais mercados consumidores e fornecedores do mundo, o mercado europeu.
6. As grandes obras de infra-estrutura já construídas, e também as que estão em curso, ficarão, assim, prejudicadas por um longo período de tempo, num país que tinha todas as condições para ser próspero.
7. Invariavelmente, os ditadores têm a seguinte característica: edificam, sobretudo, obras faraónicas para alimentar o seu ego e a sua megalomania, mas, depois, não se importam de deixar destruir tais obras, quando chega o momento da contestação, que é quase sempre violenta e traumática. Para os ditadores, o tempo não passa, acham-se eternamente desejados e amados pelos seus súbditos. É o círculo de bajuladores de que se rodeiam que lhes alimenta tal ilusão de que, depois deles, só pode vir algo muito trágico: o dilúvio…
8. Para alimentar a ilusão de uma eterna juventude, os ditadores chegam ao extremo de abusar de intervenções cirúrgicas plásticas para lhes rejuvenescer os rostos, disfarçando as inexoráveis marcas do tempo. Recordo, a talhe de foice, a imagem pública de Hosni Moubarak, ou o ridículo que faz o ditador do Zimbabwe, Robert Mugabe, apresentado pelos jornais, agora, e publicamente, como tendo apenas um papel decorativo na intimidade do lar. Mas, voltemos à Líbia e a Gaddafi, que é a razão de ser deste artigo.
9. Os que o começaram por pretender derrubá-lo foram jovens quadros, muitos dos quais com elevada qualificação académica, porém, mergulhados em dificuldades de toda a ordem. As primeiras imagens editadas eram elucidativas: de modo algum se viram zaragateiros nas ruas, amotinados, e a contestar o regime – viu-se, sim, gente educada e com perfeita consciência de que merece muito mais do que aquilo que o regime lhes oferece.
10. Os civis anti-Gaddafi põem em causa a legitimidade da ditadura e a longevidade do seu poder – um poder que o ditador tinha a intenção de transmitir por via hereditária, como se de uma monarquia se tratasse. Ironicamente, logo o mesmo Kaddafi que derrubou do poder um monarca, o Rei Idris I…
11. De início, na desordem que se instalou não existia um comando centralizador das forças de oposição. Eram apenas os populares revoltosos a assumir a totalidade do ónus, sem que, entre opositores e poder, houvesse uma estrutura política organizada capaz de dar rumo e destino à dinâmica popular. Tal vazio só foi possível porque o actual regime jamais admitiu a constituição de partidos políticos alternativos, muito menos consentiu a emergência, internamente, de figuras políticas de destaque. Até agora, a Líbia era o Coronel Gaddafi e o Coronel Gaddafi era a imagem da Líbia. Mesmo a sua estrutura governativa, baseada em comités populares, é primária e quase artesanal. Os ministros são, como se viu, instrumentos do Chefe, servindo-o sem critério.
12. Na Tunísia, poucos dias antes de a revolução se tornar vitoriosa, houve quem pusesse demasiados pontos de interrogação sobre o seu êxito, destacando os seguintes aspectos: 1) Falta de liderança política da parte da oposição – metade dos opositores políticos ao regime de Ben Ali a viverem no exterior, e não se tendo destacado internamente alguém com força e carisma para conduzir o processo; 2) Falta de entusiasmo por parte dos países ocidentais, dado que Ben Ali constituía para eles um garante na luta contra o radicalismo islâmico na região; 3) A enorme capacidade de sobrevivência, no passado, demonstrada por Ben Ali; 4) A incógnita sobre a posição do Exército.
13. Para dar um certo rumo à revolução, e evitar que as forças do passado se apropriem dela, desvirtuando-a, grupos políticos de esquerda constituíram, já, a “Frente do 14 de Janeiro”, data de referência da fuga para a Arábia Saudita do ditador Ben Ali, uma Frente que integra grupos políticos de esquerda de múltiplos quadrantes, desde “nasseristas” à esquerda operária, democratas nacionalistas, comunistas, etc. Uniram-se todos em oposição ao actual governo de transição, muito marcado por figuras do velho regime do RCD, o partido político que suportou a ditadura de Ben Ali e ao qual pertenceu, igualmente, o até a pouco tempo líder do governo de transição, Mohammed Al-Ghanouchi.
14. Mesmo que Gaddafi se tenha esforçado em acenar com o fantasma da Al-Qaeda e de Bin Laden, fica visível que a revolta popular não possui a marca do líder extremista, nem mesmo até na sua terra de origem, o Yemen.
15. Que lição a tirar, pois, do processo líbio? Os ditadores esquecem-se sempre do que poderá acontecer quando chegar o tempo do render da guarda… A ausência de uma oposição credível dificulta o encontro de equilíbrios e de consensos. Inviabiliza mesmo a busca de uma escapatória para os que são rendidos no poder, e de forma decisiva, pela vontade popular.
16. O que eu vejo hoje na Líbia não é o que eu gostaria de ver um dia no meu país. Como pessoa moderada que me considero, eu gostaria de ver afastadas todas as soluções que impliquem o recurso à violência extrema e que impulsionem angolanos a matarem outros angolanos, ou que se tenham que exilar para ter segurança. Afinal, somos todos filhos deste país e é aqui que devemos viver, mesmo que, em alguns casos, haja, para alguns, contas pendentes com a justiça, fruto da corrupção, do tráfico de influências, do abuso do poder e do enriquecimento ilícito e sem justa causa.
17. O exemplo da Líbia deveria, pois, servir-nos de referência. É tempo de quebrarmos as ilusões da eternidade. Esta é a altura para nos consciencializarmos de que a dinâmica das sociedades leva a que outros valores se levantam. Por isso, elas procuram sempre novas soluções.
18. Depois deste “muro” que foi quebrado e que está a fazer transbordar verdadeiras enxurradas de lama, outros “muros” também cairão, inexoravelmente!
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