quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A MÚSICA E A SAUDADE


Não provenho propriamente de uma família de músicos, mas tenho o código genético de gente que sempre gostou de música. De tal modo que a minha memória mais antiga regista ainda a imagem de um piano, na casa do meu avô Vicente Costa, o pai da minha mãe, Maria Luzia.

À medida que o tempo vai passando e que vai aumentando a complexidade do dia-a-dia, recordo-me mais frequentemente da enorme sensibilidade musical da minha mãe. Sobretudo, do seu gosto muito especial pelo canto lírico e pela música clássica.

A minha mãe gostava tanto de música que, no leito do hospital de Santa Maria, em Lisboa, após a amputação a um dos seus membros inferiores, o meu irmão Vicente achou que um modo expedito de ela suportar melhor a dor: encostou-lhe ao ouvido o auricular do rádio sintonizado num canal que passava apenas música clássica. E a nossa mãe, embalada pela música, como se de um bebé se tratasse, voltou então a sorrir… Voltámos a ver naquele seu rosto ainda sofrido o doce sorriso a que nos habituara, desde que viemos ao mundo.

Mas, a nossa mãe também gostava de música ligeira. Tinha um especial carinho pelo fado, valsas, o tango argentino, os grandes tenores da sua época. Tudo quanto engrandecesse o amor, a fraternidade, o afecto entre os seres humanos, era ouvido com prazer e visível deleite. Através da música, ela queria moldar a nossa sensibilidade. Queria humanizar-nos, dar o devido valor aos bons sentimentos.

Fruto de tudo isso, e não poucas vezes, em silêncio, parece que continuo a ouvir os finos acordes de violino do maestro Shegundo Galarza, os fados pungentes da Amália Rodrigues ou, então, os tangos do argentino Carlos Gardel. A nossa mãe ouvia cheia de ternura a voz potente do Mário Lanza, um tenor norte-americano de origem italiana. Se ecoasse na rádio a voz do Mário Lanza, nós sabíamos que o silêncio era obrigatório. A boa música é aquela que se ouve em profundo silêncio – foi isso que eu aprendi.

Tive uma infância e, também, uma adolescência em que ouvir música era uma constante. Ouvir música e cantar era, afinal, uma subtil terapia para reduzir os impactos das angústias da vida... Como éramos órfãos de pai, a música aconchegava-nos mais uns aos outros.

Com o tempo e com o amadurecimento que o tempo induz, descobri que ela pretendia, afinal, passar-nos a mensagem de que não estávamos sozinhos, que a esperança não deve nunca ser perdida, que também era possível viver a vida com alegria, por entre carências e adversidades. A música pode funcionar como um potente lenitivo.

As mornas de Eugénio Tavares e de outros renomados autores e intérpretes da época faziam também parte do nosso cardápio musical – por razões mais do que óbvias…

Recordo-me das bonitas vozes das minhas irmãs, a Nini e a Miza. Elas estabeleciam entre si uma vigorosa e muito saudável disputa. Eu penso que essas minhas duas irmãs tinham realmente boa qualidade musical. Além de serem elegantes no porte e evidenciarem clara beleza juvenil. Queriam ser rainhas a despontar…

Tive um irmão, o Dadinho, que era muito dotado para a música. Era-o, afinal, para quase tudo. Inteligente. O meu irmão Dadinho, quando estivesse entre nós, animava a casa contando anedotas. Cantava canções de outros ou até algumas que ele próprio inventava. Criativo e muito alegre. Mas, morreu demasiado cedo. Em 1962, aos 26 anos de idade, em Novo Redondo (hoje o Sumbe), depois de uma operação ao estômago. Lá se foi o Dadinho, o nosso irmão super simpático. Creio eu que o mais bonito de todos.

Tive um outro irmão, o Nelito, que também tinha muito jeito e gosto pela música. Gostava de imitar o Nat King Cole, e até mesmo o Lewis Armstrong. Ouvia e entoava boleros, rumbas, e outros ritmos latino-americanos da época. Foi ele que me introduziu nas músicas do cantor e compositor dominicano Luís Kalaff, também do Luís Quintero.

Tenho saudades dos tempos em que o Nelito cantava o “Aunque me cuesta la vida”, um bolero de Luís Kalaff. Pelos seus discos (e também do seu grande amigo, o Alcino Naval) conheci a voz da cubana Célia Cruz, na famosa Orquestra Sonora Matancera. E, depois, da Célia Cruz na Orquestra de Tito Puente. Enfim, do Dom Juan Serrano, outro cantor cubano que fez época nessa época…

Como disse, de início, realmente, a música faz parte da minha vida. Só que eu não canto. Mas, já cantei…, na cadeia.

Na cadeia, cantava a pedido de colegas de prisão. Enchia de som o corredor, fazia chegar a minha voz às outras celas individuais, aos restantes colegas.

É verdade, na cadeia, cantava a pedido. Creio que quem mais pedia era o Tito Gonçalves, ou o Manuel Videira, ou outro talvez que já não recordo. Era apenas para ajudar o tempo a passar. Era como que a empurrar o tempo com a música… A ver se o tempo acelerava um pouco mais o seu passo. O preso facilmente adquire a arte de enganar o tempo... Já que não consegue inventar uma arte para alargar o espaço sempre muito limitado.

Estão, pois, a ver como e porque sempre gostei de música. Pelas minhas características pessoais, adapto-me melhor ao género de música mais suave. A música mais suave permite apreciar melhor a letra e a melodia. Faz-me descobrir, afinal, que tenho escondido dentro de mim um poeta algo exigente e melancólico.

O tempo acelerou e a música também ganhou outra aceleração. Os jovens desse tempo passaram então a produzir música mais ritmada e muito acústica. Veio o rock’n roll, com o seu expoente máximo, Elvis Presley. E ainda o twist – um ritmo musical que teve como expoente máximo Chubby Checker – permitindo que cada um pudesse dançar individualmente, sem precisar de parceiro. O twist teve mesmo a particularidade de ajudar até a fazer algum exercício físico.

De algum modo, o rock’n roll, como género musical, e o twist, como tipo de dança, exprimiam a vontade de liberdade de uma nova geração, uma geração a viver num mundo muito marcado pela violência e por constantes revoluções. Era uma geração de utopias e devaneios. Eram imperioso viver aquele momento – porque o futuro estava demasiado inseguro…

Tenho já pouco, embora quisesse continuar a falar de música com vocês. Por isso, vou dar um salto no tempo para puder chegar ao tempo de hoje, que é, afinal, a razão de ser deste rebuscar que fiz no fundo da minha memória.

É verdade, o presente tem sido muito trágico. Em pouco tempo, desapareceram do mundo dos vivos figuras emblemáticas do musical. Por exemplo, no dia 8 deste mês, o Brasil perdeu o músico Wando, vítima de graves problemas cardíacos; há pouco menos de um mês, morreu a cantora norte-americana Etta James, um dos ícones do soul, do blues e do jazz. Ela que vinha já do rock’n roll; há coisa de 6 meses, foi encontrada morta no seu apartamento, em Londres, a cantora britânica Amy Winehouse, aos 27 anos. Amy Winehouse foi vítima dos seus excessos, e morreu tal como tinham morrido, na mesma idade, Jimi Hendrix, Kurt Cobain, e até mesmo a famosa fadista portuguesa, a Severa.

Agora, ainda o ano de 2012 vai dando os seus primeiros passos, e morreu Whitney Houston, a mais premiada cantora de todos os tempos, também vítima dos seus excessos. Diz-se que Whitney Houston só teve paralelo em Frank Sinatra, Aretha Franklin ou Elvis Presley. Muito recentemente, em Michael Jackson.

Com o desaparecimento de Whitney Houston, o mundo da música ficou imensamente mais pobre.

Eu sei que a Whitney Houston era a cantora predilecta da minha filha Katila. Para mim, era também um símbolo da música e da voz. Mas, mesmo assim, e não obstante a dor, eu vou continuar a gostar de música – tal como aprendi com a minha mãe, Maria Luzia.

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