terça-feira, 21 de agosto de 2012

A RAÇA NOS JOGOS OLÍMPICOS


  1. Há poucos anos, mais concretamente em 2008, um professor brasileiro chegado recentemente a Angola, manifestou junto de mim a sua enorme estupefacção pelo facto de os negros em Angola beberem regularmente água, como o fazem os brancos. Coube-me, pois, o direito de me surpreender, dado que nunca tinha imaginado alguém a associar o consumo de água a um qualquer grupo racial. Devo dizer-vos que o professor brasileiro era negro.

  1. Passados os poucos segundos que reservei para alguma reflexão, resolvi pedi que ele me explicasse o porquê (ou os porquês) da sua surpresa. Mas, antes de o deixar falar, tomei a dianteira, para lhe dizer que, para mim, o acto de beber água, quer para os negros, quer para os brancos, não passava de dar satisfação a uma normal necessidade fisiológica.

  1. A justificação que ele, então, me deu foi, no mínimo, caricata: i) um afro-descendente não precisava de beber água, devido às suas características fisiológicas que ele achava serem distintas nos afro-descendentes e nos brancos; ii) Como era a primeira vez que ele pisava solo africano, tivera então a possibilidade de verificar que havia diferença de comportamento entre os afro-descendentes e os negros africanos; iii) e que tudo isso sucedia porque os afro-descendentes provinham dos negros que haviam sido levados, no tráfico negreiro, entre a África e o continente americano. Por isso, eram os mais fortes, eram os que se mostraram mais resistentes às adversidades desse tráfico.

  1. E passou a descrever a sua tese. Segundo ele, no decurso do transporte dos escravos saídos de África e idos para o então chamado Novo Mundo (incluindo, portanto, o Brasil), em várias ocasiões, no alto mar, faltaram mantimentos dentro das embarcações, ficando nas mãos dos chefes das embarcações a possibilidade de tomarem decisões sobre como reduzir o efectivo de pessoas a bordo: i) a primeira opção era, naturalmente, lançar para o mar os mais frágeis e os doentes (os que, teoricamente, teriam menos probabilidades de sobreviver); ii) caso prosseguisse a penúria de mantimentos, a repartição do pouco que houvesse era feita de um modo desigual: privilegiavam-se os tripulantes brancos, deixando para os negros o pouco que restasse; iii) em situação de extrema carência, a opção era parar de fornecer água e outros mantimentos aos poucos negros que ainda estivessem nos navios.

  1. Os negros sobreviventes de uma tão longa e tão penosa caminhada eram, sem sombra de dúvidas, os mais fortes, os mais saudáveis, os que possuíam extraordinárias capacitados para consentir sacrifícios. Após um último processo de selecção, já em terra, eram então escolhidos os que iam trabalhar, e trabalhar duro, nas plantações de algodão, de cana-de-açúcar ou, talvez, nas minas.

  1. Terão sido esses povos negros que deram origem a actual diáspora negra no Novo Mundo: os afro-americanos, os afro-caribenhos, os afro-latino-americanos, os afro-canadenses. Seriam, pois, na opinião do académico brasileiro, portadores de uma herança genética bastante rica. Eram, geralmente, gente pujante, gente resistente.

  1. Eu não tenho dúvidas de que sobreviveram os mais fortes. Não tenho também dúvidas que o tráfico negreiro provocou uma sangria de homens e mulheres africanos que começaram por morrer no processo da apanha do escravo; na sua caminhada para a costa; no seu acantonamento na costa até à chegada das embarcações que os levariam; durante a travessia do Oceano Atlântico; na caminhada já dentro do continente americano; depois, finalmente, nas plantações.

  1. Mas, segundo também sei, os negros africanos foram transportados para variadas partes do mundo. Diz-se que, entre 1500 e 1900, foram cerca de 4 milhões os negros escravizados transportados para as ilhas no Oceano Índico; cerca de 8 milhões os enviados para os países da área mediterrânica; aproximadamente 11 milhões os que sobreviveram a travessia até ao Novo Mundo. Em 4 séculos de tráfico negreiro, a África foi subtraída e perto de 100 milhões de homens e mulheres e, grande parte deles, morreu antes de chegar ao destino. Um desses destinos foi, naturalmente, o Brasil.

  1. Embora fosse relativamente baixo e pouco corpulento, o professor brasileiro dizia-se descendente desses negros africanos que sobreviveram às piores peripécias e aos mais dramáticos episódios.
  2. A teoria que ele me apresentou é engenhosa mas… esquisita. E ainda acrescentou mais um quesito à sua teoria: em média, a compleição física dos negros norte-americanos é maior, se os compararmos aos negros africanos. Respondi-lhe, dizendo que vi em países da África Ocidental por onde passei, verdadeiros gigantes, quer homens, quer mulheres negros: “autênticas torres” e “autênticos armários”. E ele contra atacou, com a afirmação de que, mesmo assim, os afro-descendentes são, geralmente, os maiores praticantes do boxe, os velocistas mais rápidos, os grandes saltadores de barreiras, os basquetebolistas mais dotados, etc.

  1. É verdade que, nos últimos anos, durante os torneios olímpicos, se assiste a uma preponderância dos afro-descendentes em determinadas modalidades desportivas: os norte-americanos, os jamaicanos, os afro-descendentes das Bahamas, de Trinidad e Tobaco, todos da diáspora negra americana. Não é possível ficar indiferente ao seu brilho, à extraordinária performance desses atletas. Mas, não será que esses campeões beneficiam do facto de viverem em países com melhores condições de saúde, de alimentação e até mesmo de treinamento? Seria bom analisar-se as condições gerais de vida nos países citados.


  1. Como explicar, a seguir, o facto de os negros africanos com origem no Quénia, na Etiópia, na Somália ou no Uganda apresentarem um potencial reconhecido para as provas de atletismo de fundo e meio-fundo? E porquê ainda que os seus rivais são geralmente marroquinos e argelinos? Como, então, explicar este último fenómeno, se eles não são descendentes dos escravos que cruzaram o Oceano Atlântico?

  1. A teoria defendida pelo professor brasileiro cai logo por terra, se nos lembrarmos que os competidores dos afro-descendentes do continente americano nos torneios olímpicos são, muitos deles, também afro-descendentes, mas de nacionalidade francesa, britânica e até mesmo de outros países europeus. Que eu saiba, estes afro-descendentes não são filhos dos escravos transportados nos navios negreiros.

  1. Será, mesmo assim, justo dizer que existe uma maior propensão de determinados grupos raciais para certas disciplinas desportivas? É que já vemos hoje, e cada vez mais, negros, brancos, chineses, japoneses e australianos a disputarem medalhas olímpicas em modalidades como salto em altura ou salto com vara, lançamento de peso e de dardo, salto em comprimento, etc. Este resultado aconselha-nos, pois, a ir à busca de outras explicações, talvez mais lógicas e consistentes.

  1. Justificar um fenómeno social, como o desporto, a partir da raça pode conduzir-nos a caminhos ínvios, ou até mesmo, fazer-nos desaguar no racismo.

  1. A ciência admite diferenças físicas mínimas entre os seres humanos, fruto, talvez, do processo de adaptação ao meio. O mesmo sucede no restante meio animal e até no vegetal. Mas isso não permite o estabelecimento de escalões, indo ao ponto de se definir superioridades ou inferioridades em função da raça.

  1. Ao longo da História, houve mesmo quem tenha usado as diferenças biológicas para justificar certas práticas discriminatórias. Houve até quem tenha colocado questões como o carácter e a inteligência para justificar uma hierarquização entre os seres humanos. São exemplo a escravidão e até mesmo certos genocídios. Recordo que foi o racismo contra os negros e os índios que justificou a escravidão dos primeiros e o confinamento dos segundos em reservas nas Américas. Serviu, igualmente, para sustentar as teses do Apartheid na África do Sul.

  1. A análise dos fenómenos sociais a partir das raças pode conduzir a um certo darwinismo social. O ensaio do Conde de Gobineau sobre a desigualdade das raças humanas, ou os escritos do inglês Houston S. Chamberlain, ou ainda as teses de Alfred Rosemberg serviram de muleta ao nazismo, com base na ideia da superioridade da raça ariana, identificada com o povo alemão.

  1. Como reacção à abolição da escravatura, nos EUA, o Ku Klux Klan usou a teoria da superioridade branca para justificar os seus assassinatos. A ideia da raça desenvolveu-se também em grupos negros na América, apelando a uma suposta supremacia da raça negra, como o fizeram os mentores do movimento “Black Power” e a “Nação do Islão”.

  1. Por isso, sou levado a concluir que a raça apenas serve pouco, ou mesmo até não serve nada, para justificar determinados fenómenos sociais. Para esses, há, pois, que encontrar teorias mais consistentes.

1 comentário:

  1. A ciência diz que raça é um conceito taxonômico que embora válido em outras espécies, não pode ser aplicada a humanos. Como o senhor mesmo cita no seu texto a Ciência afirma que as diferenças físicas entre os seres humanos são mínimas. Assim, do ponto de vista biológico, raças humanas não existem. O termo tem um significado cultural e político o que pode ativar alguns preconceitos.

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