O NOVO MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES
- A imprensa espanhola
reportou o facto de a filha mais nova do Rei de Espanha, Dom Juan Carlos,
a Infanta Cristina, estar a ser investigada pela justiça fiscal do seu
país por, eventualmente, ter efectuado pagamentos ilícitos com cartões de
crédito de uma sociedade patrimonial que detém conjuntamente com o seu
marido, Iñaki Urdargarin, para onde este terá desviado dinheiros públicos.
Nos últimos tempos, o marido da Princesa tem sido muito seguido pela
justiça por utilização irregular da fundação que detinha e pela qual fazia
passar todo um conjunto de acções irregulares.
- Sobre a Infanta
espanhola pesam suspeitas de ter feito, entre 2007 e 2008, pagamentos com
dinheiros públicos de, por exemplo, 4 livros da saga Harry Porter, ter
comprado alguma roupa, feito assinatura de revistas, adquirido um par de botas
em Nova Iorque, pernoitado num hotel de Moçambique, ter comprado flores, pago
os encargos da estadia de um fim-de-semana em Roma, assim como ter comprado
um chocolate numa passagem pelo aeroporto de Genebra, entre outros gastos.
- Arrolados os custos
dos diversos custos, os investigadores constataram que os gastos dos
duques espanhóis excedem em muito o nível normal dos seus rendimentos. Daí
que Infanta possa vir a ser indiciada por ilicitude na manipulação de
recursos. As autoridades políticas espanholas de forma alguma têm
competência para interferir no processo de investigação. Elas deixam a
justiça realizar a tarefa para que está vocacionada.
- Mesmo que tais
acontecimentos causem um dano de imagem à monarquia, a sociedade espanhola
acompanha os seus desenvolvimentos com serenidade. E o Rei de Espanha não
saiu à rua para dar “um puxão de orelhas” seja a quem for. Essas são as regras
de uma sociedade democrática, inclusive, na monarquia constitucional como
a espanhola.
- Os actos de
corrupção e outros demais ilícitos previstos na lei são perseguidos, com
os órgãos competentes a tomarem conta deles. São investigados e, quando
julgados, recebem a punição equivalente, doa a quem doer…
- No dia 15 deste mês,
o Presidente da República de Angola fez uma intervenção na Assembleia
Nacional, em que discorreu sobre o estado da Nação. Uma das passagens do
seu discurso na Assembleia Nacional que mais prendeu a atenção da
sociedade foi aquela em que reafirmou o empenho do Executivo em promover a
introdução e a adopção de leis internacionais sobre o combate à corrupção,
designadamente a Convenção das Nações Unidas sobre a Corrupção. Porém,
logo de seguida, o PR alertou para aquilo que apodou de uma “confusão
deliberada” feita por organizações de alguns países ocidentais com o
intuito de passar a ideia de que “o africano rico é corrupto ou suspeito
de corrupção”.
- Quer dizer que o
Presidente da República transitou facilmente de uma clara declaração de
boas intenções para a denúncia também clara de haver má-fé por parte de
alguns na compreensão de certo enriquecimento que hoje se verifica no
nosso continente.
- Nesse seu
vertiginosos embalo, o PR procurou teorizar sobre tal enriquecimento, e
socorreu-se da abordagem clássica do fenómeno da acumulação do capital, a
que Adam Smith chamou “previous acumulation” e, depois, Karl Marx
consagrou como a “acumulação primitiva do capital” ou “acumulação
originária do capital”.
- Karl Marx, no seu
trabalho seminal, “O Capital”, analisou o fenómeno na Europa, entre os
séculos XVI e XVIII. Karl Marx tomou a Inglaterra como o seu modelo, concluindo
que foi o processo de acumulação primitiva do capital que originou as grandes
transformações da Revolução Industrial na Europa. Para esse ilustre
estudioso, a acumulação originária decorreu nos seguintes termos: i) uma grande
concentração de recursos (dinheiro, ouro, prata e terra) nas mãos de um
pequeno grupo de proprietários; ii) formação de um enorme contingente de
indivíduos desprovidos de bens e obrigados a trabalhar para outrem, para
os proprietários de terras e donos de manufacturas.
- Essa circunstância
terá resultado, historicamente, das riquezas acumuladas pelos negociantes
europeus com o tráfico de escravos, com o saque colonial e a apropriação
privada das terras comunais dos camponeses, assim como o proteccionismo às
manufacturas nacionais. Um processo em que intervém também o confisco e a
venda a baixo preço das terras pertencentes à Igreja pelos governos
revolucionários. De acordo com Karl Marx, o advento da Revolução
Industrial fez com que a acumulação primitiva fosse substituída pela
acumulação capitalista.
- No seu discurso, o
PR não explicitou o modo como as novas burguesias africanas e, em
particular, a angolana conseguiram a proeza de enriquecer tão rápida e facilmente.
Limitou-se, sim, a dizer que há aqui um modelo próprio de acumulação. Mas
não nos disse nada sobre as consequências económicas, sociais e políticas
desse enriquecimento. Seria interessante se o fizesse, para pudermos,
então, perceber melhor a sua originalidade.
- No modelo original a
que o PR fez referência, já é bem fácil perceber que há, tendencialmente,
grande concentração da riqueza nacional nas mãos de poucos, tal como é crescente
o contingente de desprovidos de bens que já perderam a esperança de vir a partilhar
o bem-estar que o país podia proporcionar aos seus filhos.
- Creio, também, que o
Sr. Presidente da República não desconhece que a acumulação primitiva do
capital que ele glorifica e que se está a processar em Angola não tem por
base o mérito mas, sim, a cor partidária que se veste, as afinidades
familiares, ou cumplicidade com o poder. Sabe ainda que ela não redundará
numa melhoria do bem-estar geral mas, sim, no fausto de uns poucos. E sabe
mais: que esse fausto só se manterá enquanto o poder estiver nas mesmas
mãos. Depois, quando o país se democratizar e os grandes gigantes de pés
de barro se confrontarem com a concorrência leal, tais impérios
desmoronarão, como um baralho de cartas…
- O Sr. Presidente da
República manifestou vontade teórica de ver aplicadas, de modo rigoroso,
as leis angolanas contra a corrupção. Porém, deixou claro que, na sua
perspectiva, o modo como se constituíram os grandes grupos económicos em
Angola nada tem a ver com actos de corrupção, com o desvio de fundos
públicos para fins pessoais, ou com o tráfico de influências.
- Por isso, eu também gostaria
que ele nos ajudasse a perceber como foi possível, em tão pouco tempo,
ter-se assistido a esse verdadeiro “milagre da multiplicação dos pães”… Pois,
de uma forma mais ou menos geral, todos tivemos como ponto de partida a
pobreza... Uma pobreza que até foi aprofundada pelas políticas sociais e
económicas que, sob a sua orientação, foram aplicadas durante muitos anos
e de um modo implacável.
- Recordo, apenas para
avivar a memória de alguns que, há pouco mais de 20 anos, quem guardasse
em casa um saco de açúcar, podia ser preso sob a acusação de
açambarcamento. E quem fosse apanhado com uma nota de 100 dólares no bolso,
era considerado inimigo da revolução e julgado em tribunal popular
revolucionário.
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