segunda-feira, 10 de agosto de 2009

OS CONTEXTOS POLÍTICOS DA ECONOMIA ANGOLANA E A CRISE*

Dizem os grandes mestres em economia que a actual crise económica é comparável à da década dos anos 30 do séc. XX. Não sei sé é possível compará-las, mas admitamos que sim. O que sei é que a economia ocorre, inevitavelmente num contexto político, caracterizado no caso das crises económicas por guerras. Guerras essas que têm como objectivo o controlo de recursos vitais necessários às economias desenvolvidas.

A Primeira Guerra Mundial, e a já denominada “Guerra Global Contra o Terrorismo”, foram prenunciadoras da Grande Depressão e da crise actual, à qual, na falta de uma designação mais apropriada, dada a sua abrangência, é conhecida por “Crise do Subprime”. Melhor seria que fosse designada por “crise de excesso de capitalismo”.

“A Grande Depressão esteve a um passo de destruir quer o capitalismo, quer a democracia, e conduziu mais ou menos directamente à guerra (Krugman, 2009)”. Após a Segunda Guerra Mundial o capitalismo foi alimentado por guerras localizadas. Guerras pelo controlo dos recursos naturais, instigadas pelos países capitalistas em nome de interesses vitais, sem as quais o crescimento sustentado do mundo industrializado não se teria verificado.

A não participação da ex - União Soviética nas guerras movidas, principalmente em África, deveu-se ao facto de a Rússia dispor de recursos naturais abundantes para prover as suas necessidades energéticas e de matérias-primas.

As recessões económicas, desde os anos 30 do século XX, foram breves, ocorrendo com maior intensidade após as crises energéticas de 1973 e 1979. No entanto foram necessários sessenta anos para salvar o capitalismo e a democracia da destruição que lhes foi provocada pela Grande Depressão de 1929, cuja vitória é simbolicamente marcada com a queda do muro de Berlim em 1989.

Angola torna-se independente no contexto da guerra-fria e em obediência à aliança estratégica que conduziu o MPLA ao poder, negando deste modo o curso do desenvolvimento económico do país, então caracterizado como pré-capitalista.

Angola enquanto país “socialista” teve historicamente uma trajectória idêntica à dos seus “países irmãos”: o desrespeito total pela propriedade privada, a substituição da ditadura colonial pelo “centralismo democrático” exercido por políticos emergentes, o sequestro da liberdade de pensamento, o despojo dos cidadãos dos seus bens pessoais (quem não se recorda das sucessivas trocas de moeda), etc. Estes traduzem bem os pressupostos para a imposição de limites ao desenvolvimento do capitalismo, se não do seu aniquilamento, os quais, no caso de Angola contribuíram para a imposição de uma “economia de guerra”.

Com o fracasso da experiência socialista, é redesenhada a geografia do mundo e a economia move-se, agora, num novo contexto político caracterizado pela existência de um sistema único: o capitalismo. É o triunfo do mercado. A Rússia é agora capitalista. Tem-se a convicção de que o capitalismo dará lugar a outro modo de produção, não se sabe qual, mas crê-se que não será o comunista.

O mercado é enaltecido pelas suas virtudes. Clama-se, cada vez mais, por mais mercado e por menos intervenção do estado na economia. O mercado da economia real tornou-se insuficiente para satisfação da avidez capitalista. Criam-se mercados virtuais – mercado de futuros – cujas necessidades de liquidez são cada vez mais crescentes.

Com o abandono da experiência socialista, assiste-se à auto-regulação dos mercados. Angola tem agora que adaptar a sua economia ao novo contexto político. Para sair do caos económico em que o País se encontra mergulhado é necessário o seu reconhecimento do País pelos EUA, a criação de uma burguesia nacional e o fim da guerra fratricida.

Angola, tal como a maioria das ex-repúblicas socialistas, procede à adaptação do seu sistema político e económico ao modelo capitalista, granjeando, dessa forma, o reconhecimento dos EUA. Os “comunistas” transformam-se em capitalistas, com pretensões a ascender à burguesia, ao herdarem os bens confiscados pelo regime deposto, mas falta-lhes o substrato cultural da classe: agora têm capital mas não sabem geri-lo. É no contexto político da “Guerra Global Contra o Terrorismo” que Angola beneficia do apoio dos EUA e põe fim à guerra civil.

Para consolidar a paz e a estabilidade social Angola necessita urgentemente de apoio financeiro para a sua reconstrução. Apoio esse que lhe chega da China, o que faz despertar o interesse do Ocidente no desenvolvimento económico de Angola para além da exploração petrolífera e diamantífera. Angola é agora o novo eldorado, a pepita que todos buscam. O povo, esse assiste, atónito, à passagem do comunismo para o “capitalismo selvagem”, a par da versatilidade ideológica dos novos-ricos.

A maioria das empresas angolanas, herdeiras das infra-estruturas produtivas herdadas do colonialismo, endinheiradas através do erário público mas desprovidas de know how actuam no mercado como intermediárias de interesses de empresas estrangeiras.

Em nome do desenvolvimento económico, sob a égide do capitalismo, encontram-se justificações para a prática da corrupção, a falta de transparência nas contas do Estado e a falta de reconhecimento dos direitos de propriedade (que em meu entender deveriam estar consagrados na constituição). A moral e a ética não fazem parte da cultura da “burguesia angolana emergente”, o que “legitima” a coarctação da democracia em defesa do status quo da elite reinante!

Tal como a Primeira Guerra Mundial precedeu à Grande Depressão, a “Guerra Global Contra o Terrorismo” precedeu à crise actual. Esta mostra-se, igualmente, inimiga do capitalismo e cuja terapia económica se socorre paradoxalmente dos ensinamentos de Marx, dos quais, na realidade, Angola nunca se libertou.

Não há vários capitalismos mas sim várias fases do seu desenvolvimento. Angola, após dezassete anos de “socialismo”, conhece a fase mais liberal do sistema capitalista – o capitalismo selvagem. Sem que do sistema capitalista se tenha alguma experiência estabelecem-se relações económicas com base no nepotismo e compadrio suportadas por uma economia rendeira e representada por uma elite nacional possidente, mas dominadas por multinacionais que vêem Angola como um país “com uma dotação de recursos obscena”.

A “crise do subprime”, mesmo que faça recordar Marx, não justifica a intervenção do Estado em substituição do seu papel regulador da economia, nem o uso de medidas económicas administrativas discricionárias. A crise não pode servir igualmente de motivo à coarctação da democracia nem ao sequestro de mercados por grupos económicos ligados ao poder. Sem a prática plena da democracia, a livre concorrência de mercado e a existência de uma política equitativa de rendimentos, não haverá capitalismo e consequentemente desenvolvimento económico.

No combate às crises económicas os países deverão ter em conta que as economias ocorrem em contextos políticos a nível mundial, regional e nacional. Não deverão ainda esquecer que à Primeira Guerra Mundial sucedeu a Grande Depressão e por sua vez, a esta, a Segunda Guerra Mundial. À “Guerra Global Contra o Terrorismo” sucedeu a “Crise do Subprime” e a esta o que se seguirá?

Luanda 15/06/09

*JOSÉ DIAS AMARAL (Economista)

terça-feira, 28 de julho de 2009

NOBRE DIAS - DIGNIDADE, LHANEZA DE CARÁCTER

1. Lá se foi mais uma das minhas referências: Nobre Ferreira Pereira Dias. Até Sexta-Feira, dia 17 de Julho, mantinha-se vivo. Era um dos sobreviventes de entre os pouco mais de 100 angolanos que passaram pelo Campo de Concentração do Tarrafal. Agora, já somos menos um, pois está a ser cumprido o sentido inexorável da vida: a morte.

2. Estamos todos de passagem pela vida, mesmo que a vivamos com uma maior ou menor intensidade; mesmo que emprestemos à nossa existência uma cadência mais rápida ou um ritmo mais compassado; mesmo que nos tenhamos tornado actores de grandes feitos ou simples e obscuros figurantes. Estamos sempre em transição a caminho de algo que desconhecemos…

3. Quando cheguei ao Tarrafal, para cumprir pena de prisão, o Nobre Dias tinha saído pouco tempo antes. Os meus dados dão-no como tendo sido libertado no dia 19 de Novembro de 1969. Saíra de Cabo Verde com destino a Benguela.

4. A sua viagem para o Tarrafal foi épica. Com os seus companheiros de caminhada foram instalados em tendas, na Ilha do Sal, enquanto aguardavam o embarque para o Tarrafal. Entrou no Campo a 26 de Fevereiro de 1962. Escutei da sua boca, e também de outros sobreviventes, os pormenores desta narrativa, aquando do Simpósio Internacional sobre o Tarrafal, que decorreu entre finais de Abril e início de Maio deste ano.

5. Nessa altura, convivi de perto com o Nobre Dias, mesmo que já soubesse do seu percurso. Foram o Luandino Vieira, António Jacinto, António Cardoso que me ilustraram sobre o homem que depois vim a conhecer. Eles falavam do Nobre Dias com carinho e admiração. O seu carácter, sobretudo, a sua bondade, o seu espírito apaziguador de conflitos… E assim eu coloquei o Nobre Dias no meu “panteão”, o local da memória onde eu acolho os que contribuíram para a formação do meu carácter, para a criação dos alicerces da minha personalidade. Não muitos, mas são o número bastante para eu sentir que sou um fruto de várias confluências.

6. Quando regressei do Simpósio do Tarrafal – ainda não se completaram 3 meses – eu escrevi um texto onde expus claramente o respeito que nutro por todos os tarrafalistas, o meu carinho e saudade por todos quantos foram para ali mandados como uma sanção pelas suas acções e, sobretudo, pelas suas convicções. Hoje, fazem parte do meu ser e deram sentido à minha existência. Uns foram meus companheiros de tempo, outros meus companheiros sem tempo. Mas fomos todos, mesmo que de várias gerações, actores de um drama que durou, para alguns pelo menos, uma eternidade...

7. Nesse texto, a dado passo, eu dizia: “No Simpósio Internacional sobre o Tarrafal, ainda foi possível conviverem sobreviventes das cinco gerações de tarrafalistas, de diversas adesões políticas, actores plenos do processo de libertação nacional. O grupo que chegou em 1962, aquele que motivou o ataque às prisões de Luanda, em 1961, já tem poucos sobreviventes, muitos deles com enormes debilidades físicas, demasiado vergados pelos longos anos. Mas, foi bom vê-los, recordando o espírito da sua época, as suas epopeias que a história deve registar: João Fialho da Costa, João Lopes Teixeira, Nobre Dias, Manuel Lisboa Santos, Beto Van-Dúnem. Também o eterno jovem Amadeu Amorim, pleno de saúde, prenhe de lembranças dos anos passados entre grades. Revivemos histórias de circunstância… Também o Luandino Vieira, com mais algumas dezenas de anos em cima, mas tão lúcido e bem-humorado como o conheci no Tarrafal”.

8. Nobre Dias foi Pastor evangélico, professor, nacionalista convicto e homem com princípios. Nutria um grande amor pelo nosso povo. Tive a felicidade de conversar com ele, assim como com alguns dos que ainda sobram das cinco gerações de tarrafalistas que se engajaram na nossa luta de libertação nacional. Sinto que o Tarrafal nos uniu de um modo indestrutível. O Tarrafal forjou uma aliança que vence o tempo e derruba todas as barreiras. O Tarrafal foi o espaço da partilha do sonho, de onde não se sabia se, algum dia, sairíamos.

9. O espírito de unidade e solidariedade que prevaleceu no Tarrafal faz-nos hoje, e com enorme facilidade, desvalorizar as origens, remeter para plano secundário as diferenças de pensamento, transforma as filiações partidárias em coisas de somenos importância. Por isso, nós, os tarrafalistas, reconhecemo-nos bem na nossa diversidade. E aceitámo-la com elegância e espírito de irmandade.

10. Em casa, no seio familiar, ouvi falar de muitos desses homens de boa têmpera que hoje fazem o percurso descendente da vida – esses homens que já fenecem a um ritmo que me causa melancolia. Alguns que conheci pessoalmente, eram amigos de casa, eram gente da nossa intimidade, faziam parte da nossa plêiade. Faziam o seu percurso de oposição a Salazar e ao regime colonial. Deles, em parte, herdei o espírito rebelde e a vontade de lutar pelas causas em que acredito. Depois, tomei em mãos as suas referências. Espero não os ter desapontado.

Das duas vezes que tomou a palavra em público – uma dentro da sala do Colóquio, outra num jantar oferecido pela nossa Ministra da Cultura, Rosa Cruz e Silva – o Nobre Dias foi um verdadeiro “nobre”. Falou sempre com moderação e sapiência. Evidenciou regras, valores e princípios. Em África, aos homens assim, chamamos Um Mais-Velho. Tinha, pois, razão Mário Pinto de Andrade quando disse: “Em África, o Mais-Velho é uma autoridade”. O Nobre Dias era, sim, um símbolo de dignidade, lhaneza de carácter. Era uma autoridade…

quarta-feira, 22 de julho de 2009

JORNALISTAS DE INVESTIGAÇÃO

1. Eis aqui mais uma notícia tremendamente chocante: “Activista russa assassinada no Cáucaso”. Coube agora a vez a Natália Estemirova, jornalista r activista dos direitos humanos, engajada numa profunda investigação sobre centenas de casos de raptos, torturas e execuções extrajudiciais levados a cabo contra civis, por militares russos e forças paramilitares na Tchetchénia. Foi raptada junto de sua casa; depois, foi executada. O seu corpo apareceu, com tiros na cabeça e no peito, numa das repúblicas vizinhas, a Ingushétia.

2. Natália Estemirova trabalhava para a ONG “Memorial”. Por diversas vezes, fora distinguida com prémios internacionais, pelo seu labor em favor dos direitos humanos. Recebera, por exemplo, o “Prémio Robert Schuman dos direitos humanos”, atribuído, em 2007, pelo Parlamento Europeu; em 2004, merece o “Prémio Nobel Alternativo”, criado pelo Parlamento Sueco; também o “Prémio Anna Politkovskaia”, criado pelas mulheres laureadas com Prémios Nobel, atribuído a activistas de direitos humanos em áreas de conflito. Natália Estemirova era, pois, uma defensora de causas nobres, era alguém que se preocupava com a existência de um mundo mais justo, mais equilibrado, mais humanizado.

3. Com ela, repetiu-se assim, três anos depois, o destino dado à Ana Politkovzkaia, também jornalista russa, assassinada em 2006, em Moscovo, quando investigava crimes cometidos por militares na Tchetchénia. Natália e Anna trabalharam juntas. Tiveram o mesmo destino que outros seus colegas de investigação, o prestigiado advogado russo Stanislav Markelov e a jornalista Anastácia Barbulova, igualmente abatidos quando saíam de uma conferência de imprensa onde aquele acabara de criticar a libertação de um coronel do Exército russo acusado da violação e morte por estrangulamento de uma jovem tchethena de 18 anos de idade. A jovem jornalista, Anastácia Barbulova, de apenas 25 anos de idade, trabalhava para a mesma publicação de Anna Politkovzkaia, a Novskaya Gazeta, muito crítica em relação a Vladimir Putin e Dmitry Medvedev.

4. Estes são relatos que nos mostram o quão difícil é a profissão de jornalista (e de advogado), sobretudo, quando se investigam casos que põe em causa a imagem e a credibilidade dos poderosos. É assim na Rússia. Mas, será também em outras partes do mundo, lá onde não mora a cultura e a tradição democrática, lá onde os poderes políticos, militares e económicos ainda assentam sobre os alicerces de um passado totalitário e intolerante. Todos estes crimes tiveram um denominador comum: fazia-se investigação jornalística sobre a actuação das tropas russas e paramilitares em território tchetcheno.

5. Natália Estemirova morreu aos 50 anos de idade – foi barbaramente assassinada. O seu caso, e os dos seus colegas, fazem-me agora recuar no tempo, 35 anos na história, quando, a 8 de Agosto de 1974, o então presidente norte-americano, o republicano Richard Nixon, foi obrigado a renunciar ao cargo, vítima daquele que ficou para a história como “O Caso Watergate”.

6. Os protagonistas foram os jornalistas norte-americanos Bob Woodward e Carl Bernstein, ambos do jornal Washington Post. Foram eles que denunciaram as escutas ilegais mandadas fazer por Richard Nixon à sede de campanha do Partido Democrata, o Edifício Watergate, em Washington. A investigação levou-os aos cinco ex-membros da CIA, encarregues de realizar espionagem electrónica para descobrir informações sobre a campanha democrata. Para tal, beneficiaram da colaboração de um agente do FBI, Mark Felt, que ficou para sempre conhecido como o “Garganta Funda”. Mark Felt revelou o seu segredo mais de 30 anos depois.

7. Bob Woodward e Carl Bernstein foram distinguidos com o “Prémio Pulitzer”, pelo contributo relevante que deram ao jornalismo. Hoje, Bob Woodward tem 66 anos de idade e continua a fazer jornalismo investigativo. Escreveu livros sobre os bastidores das guerras do Iraque e Afeganistão. Carl Bernstein, com 65 anos de idade, continua no activo, e foi Professor da Universidade de Nova Iorque. O agente do FBI que ajudou a deslindar o “Caso Watergate”, Mark Felt, “O Garganta Funda” viveu até aos 95 anos. Morreu em Dezembro de 2008.

8. Nenhum dos três americanos foi assassinado. Sê-lo-iam, seguramente, se o destino os tivesse feito russos. Teriam merecido a sorte de Anna Politkovzkaia, Stanislav Markelov, Anastácia Barbulova e, agora, de Natália Estemirova, equivalentes russos do nosso Ricardo Melo e também do moçambicano Carlos Cardoso… Também silenciados por saberem demais. Assassinados com uma clara e inequívoca precisão cirúrgica…