segunda-feira, 11 de maio de 2009

DUAS DISPOSIÇÕES ALGO POLÉMICAS

  1. No texto do seu projecto constitucional, a UNITA inseriu algumas questões que acho de grande relevância, quando se inicia o debate para a elaboração da futura Constituição. Porém, tratarei agora apenas de duas: a problemática da nacionalidade e cidadania angolanas, e o chamado direito de resistência, matérias que, por si só, podem ser capazes de criar linhas de fractura político-ideológica, animando, então, o debate constitucional.

 

  1. A UNITA classificou os angolanos em dois grupos, uns que definiu como sendo os “angolanos natos”, e integrando no outro grupo os “angolanos naturalizados”. Para mim, uma designação mais adequada para os “angolanos natos” seria a de “angolanos originários”, por contraposição aos “angolanos naturalizados”, uma vez que estes últimos serão aqueles cidadãos estrangeiros a quem é, entretanto, atribuída cidadania angolana, desde que cumpridos alguns requisitos.

 

  1. Teoricamente, a nacionalidade é uma relação jurídica de direito público interno, competindo, por isso, ao Estado definir, e de maneira exclusiva, a quem atribuí-la e de quem retirá-la. Pode-se também ter acesso a uma determinada nacionalidade por via do direito internacional, caso o Estado aceite submeter-se a esse direito.

 

  1. Uma pessoa natural pode adquirir uma nacionalidade por duas vias: por aquisição originária – ou seja, no momento do nascimento – ou posteriormente, por naturalização. Existem também dois caminhos para a aquisição da nacionalidade originária: o ius sanguinis, ou seja, o “direito de sangue”, também chamada nacionalidade por filiação, e o ius soli, o “direito de solo”, que é a nacionalidade pelo território onde o indivíduo nasceu. O direito positivo angolano optou claramente pelo ius sanguinis, na sua vertente ambilinear, por filiação que pode provir do pai ou da mãe. É essa a definição constante do projecto constitucional angolano da UNITA. Suspeito que, pelo menos nesse domínio, não haverá muitas diferenças relativamente às restantes propostas que darão entrada na Comissão Constitucional, mesmo que se venham a detectar pequenas divergências de pormenor.

 

  1. A opção pelo ius sanguinis ou pelo ius soli tem muito a ver com a tradição do país concreto, ou com aquilo que se pretende que o país venha a ser. Se um país é de tradição imigratória, como, por exemplo, os Estados Unidos da América, Brasil, Argentina, Austrália, o direito de nacionalidade tem por base o ius soli, o local de nascimento da criança. Os países europeus são mais de tradição emigratória, pelo que optam pelo ius sanguinis. A Angola de hoje tende claramente para um modelo próximo do europeu, alegadamente para salvaguardar direitos e elementos identitários.

 

  1. Vejo, porém, com certa relutância, a obrigação apresentada pela UNITA para alguém obter a naturalização angolana ao ter que “demonstrar possuir vínculos identitários da história, cultura, línguas e costumes da cidadania angolana…”. Posto nestes termos, torna-se tudo muito subjectivo, isto porque, por exemplo, não vejo que haja um único padrão cultural em Angola. Nós somos um país onde coexistem múltiplas culturas, muitas das quais chegam a colidir frontalmente com o direito positivo vigente. Recordo, por exemplo, a prática de se eliminar com certa dose de arbitrariedade pessoas idosas acusadas de serem feiticeiras, como aconteceu não há muito tempo no Kuando Kubango. Tenho também bem presente a ostracisação e mesmo a eliminação física de crianças também acusadas de feiticeiras. Outros exemplos: o casamento tradicional que envolve a matança de bois ou carneiros não é um padrão cultural nacional, mas, sim, exclusivo de algumas comunidades rurais, ou então de recente ancestralidade rural; a família extensa tende a diminuir com o fenómeno da urbanização galopante; a prática de o irmão mais velho ficar com a viúva, não é um padrão cultural angolano, mas apenas de algumas comunidades; espoliar a viúva de todo o património do casal, depois da morte do cônjuge, tem também um âmbito restrito do ponto de vista geográfico e não é comum, por exemplo, nas chamadas classes médias urbanizadas de longa data. Temos múltiplas línguas e costumes, e o seu uso prática tem muito a ver com a origem e a inserção social de cada um. Recordo que o Português também é uma língua nacional, e é a primeira e única língua para muitos angolanos. Ela tem a mesma dignidade das outras línguas, e a sua expansão pelas diversas comunidades é uma exigência do desenvolvimento, do acesso ao saber e da modernidade.

 

  1. Respeitando a exigência temporal da residência e mais um ou outro predicado, o candidato a nacional angolano por via da naturalização deveria sujeitar-se ao preceito de um conhecimento médio de uma qualquer das línguas de Angola (incluindo o Português), e mais alguns dados sobre a nossa história recente. Tudo o resto é demasiado vago, subjectivo e está muito dependente das mutações do tempo e da dinâmica social.

 

  1. A atribuição da nacionalidade tem pelo menos duas valências que devem ser tidas em conta: por um lado, confere ao adquirente determinados direitos, mas, igualmente, deveres e obrigações; por outro, aumenta o nosso potencial enquanto país. Ela poderá ser, pois, também, do nosso próprio interesse.

 

  1. Julgo que a questão da dupla nacionalidade é a mais polémica. A condição de “cidadão angolano originário” não deve ser passível de qualquer beliscadura nos seus direitos, isto porque ela pode ser adquirida por sangue, por casamento, e até mesmo pelo tempo de permanência num país estrangeiro. De modo algum se pode ver essa condição como configurando um crime, um quase crime, ou algo capaz de provocar uma lesão no nosso interesse nacional. Não se trata de gente portadora de um qualquer defeito ou estigma. São “angolanos originários” de pleno direito e não devem ser equiparados aos “angolanos naturalizados”. O controlo dos seus actos deve ser realizado pelos mecanismos políticos, jurídicos e outros que o Estado detém para preservar o seu interesse. São esses mecanismos que dão pujança e maturidade ao Estado.

 

  1. Por fim, abordemos a polémica proposta de inserção no projecto constitucional da UNITA do instituto do direito de resistência, algo que terá provocado alguma perturbação psicológica, sobretudo porque a UNITA cuidou de introduziu na sua redacção do artigo 23º a expressão “repelir pela força qualquer agressão”, quando diz: “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública ou quando a autoridade pública viole os direitos fundamentais e ordem constitucional democrática.”

 

  1.  O direito de resistência é um instituto político-jurídico posto ao serviço do cidadão permitindo-lhe enfrentar o Estado, quando este não concretiza as disposições constitucionais, em especial, quando viola (ou descura flagrantemente) direitos fundamentais do cidadão, como o direito à habitação, saúde, educação, segurança, etc. São esses e outros direitos que garantem a própria sobrevivência do cidadão. São também eles que constituem a razão da existência do Estado, enquanto uma entidade promotora do bem comum.

 

  1.  É consensual a ideia segundo a qual a convivência social provoca, necessariamente, uma redução da nossa liberdade individual. É esta constatação que legitima o poder, dando-lhe capacidade para cercear algumas das nossas liberdades. Mas os limites à nossa liberdade são definidos por leis democráticas e não por uma qualquer arbitrariedade pessoal ou de grupo.

 

  1.  O direito de resistência vem consagrado nos textos constitucionais de muitos países democráticos, quer seja de uma forma explícita ou implícita. Ele manifesta-se de forma implícita através de vários meios legais, somo sejam o direito de petição, manifestação, habeas corpus, o direito à greve, a objecção de consciência religiosa. O direito de resistência passa a ter uma expressão mais extrema na actividade de determinados movimentos sociais, e, sobretudo, na revolução e na guerra. Ao exercício do direito de resistência que se devem as diversas lutas contra a opressão e as desigualdades. O direito de resistência tem sido o grande motor das transformações sociais.

 

  1.  A quem queira questionar o direito de resistência, imponho, pois, algumas perguntas: Será lícito ficar-se indiferente quando um poder exorbita as suas funções constitucionais, quando se torna despótico, ou quando se alheia do bem comum que tem o dever de promover e realizar? Será também lícito um poder descurar os fins democráticos e de justiça social para o qual foi instituído? São, afinal, questões prévias a uma qualquer discussão sobre o formato do texto, embora eu reconheça a preocupação que causou a inserção no artigo 23º do projecto constitucional da UNITA da inquietante expressão “repelir pela força”.

2 comentários:

  1. Incluir o direito de resistência nestes termos ("repelir pela força ...") é o mesmo que considerar sem qualquer valor a Constituição, porque é o reconhecimento que esta não é capaz de garantir a defesa dos cidadões perante o Estado em termos de Direito. A defesa dos cidadãos pelo Direito e não pela força é a única aceitável num Estado de Direito.

    ResponderEliminar
  2. Sou brasileiro e tenho uma filha que vai casar com um Angolano.
    Ele adquirirá a nacionalidade brasileira após 1 ano de residencia no pais pois que nossa constituição permite aos falantes nativos da lingua portuguesa.
    Existe esta possibilidade na Lei Angolana?

    Grato,
    Dr. Vanderlei da Rosa
    Advogado

    ResponderEliminar