terça-feira, 13 de novembro de 2012

A MAKA DA CHUVA


  1. Se chove em Luanda, penso de imediato nas populações dos bairros periféricos pois, por regra, são elas as mais penalizadas.

 

  1. Habituei-me a escutar nas rádios relatos dramáticos que envolvem desabamentos de casas rústicas, aluimentos de terras com mortes de pessoas por afogamento e por electrocussão, mas, também, episódios envolvendo ruas onde se abrem verdadeiras “gargantas”, o derrube de árvores sobre pessoas e sobre viaturas.

 

  1. As imagens que mais me entristecem em consequência das chuvadas que se abatem sobre Luanda são as de pessoas a caminharem para os seus destinos, com um ar maltratado, sujas e em desespero. No dia seguinte, repete-se o cenário. Possuo, pois, sempre, termos de comparação, pois os estragos de antes são recorrentes.

 

  1. Hoje, um pouco por todo o lado, lá vamos assistindo à execução de trabalhos de reparação, ou até mesmo à construção de novas infra-estruturas com vista a resolver parte dos problemas básicos da vida urbana da nossa cidade. Porém, são, por norma, trabalhos de pouca qualidade. Vindo novas chuvas, permanecem os mesmos problemas que, depois, se somam a novos problemas.

 

  1. A cidade de Luanda apresenta-nos duas faces bem demarcadas: uma parte urbana que se quer aparentar como moderna, com prédios altos e crescentemente vidrados (querendo assemelhar-se ao que se faz lá fora, mas em países frios ou de temperaturas mais moderadas), e uma outra parte mais periférica, suburbana, que faz lembrar o rosto cansado de um pobre vagabundo a quem ninguém presta atenção, porque não é importante…

 

  1. O nosso pobre vagabundo só vai merecendo alguma suposta atenção em determinados períodos da nossa vida colectiva, sobretudo, quando se avizinham actos eleitorais. Isso porque o voto individual do morador da periferia conta tanto como o voto do executivo que se faz transportar em veículo de alta cilindrada, que tem motorista e se protege com guarda-costas.

 

  1. Quando se pensa nesse pobre vagabundo, é como se houve uma espécie de recuperar de uma memória perdida, procurando-se criar a sensação de que o morador da periferia também é importante. Parece que ele passou a fazer parte do quadro das nossas preocupações. Então, o pobre vagabundo, o morador da periferia – desgrenhado e sem dentes – vira “Miss”… Ou passa a ser apaparicado, temporariamente, como se fosse uma “Diva”…

 

  1. Eu não nasci em Luanda, mas vivo aqui quase desde que me conheço, salvos alguns episódicos interregnos, e por força das circunstâncias… Não me espanto, pois, quando vejo os profundos estragos causados pelas chuvas de se abatem sobre esta minha cidade de adopção.

 

  1. Em 1963, por exemplo, e mais precisamente no mês de Abril, Luanda recebeu uma visita bastante incómoda que deixou marcas de que não podem restar saudades. É que as chuvas de 1963 perturbaram a vida de muita gente: eram trovoadas a assustar a cidade, acompanhadas pelos inevitáveis relâmpagos que criaram luz como se fosse dia…

 

  1. Em Abril de 1963, o caos tomou conta desta Luanda que não me teve mas que me tem. O caos da chuva lançou o pânico entre a população: torrentes de lama corriam pelos terrenos argilosos; pedras rolando de mistura com entulho; sarjetas entupidas; condutas a rebentarem; árvores a caírem e a danificaram casas e carros. Esta Luanda que não é minha mãe, mas que eu amo como se fosse, gemeu de uma dor profunda. Uma dor quase de morte… Muito diferente da única dor que dá prazer, a dor de um parto…

 

  1. Em Abril de 1963, a parte baixa da nossa cidade foi tomada de assalto pelas chuvas. Até mesmo residências luxuosas da gente bem foram invadidas pelas águas que desciam enfurecidas. E nos bairros dos pobres onde eu vivia, éramos assaltados por todos os temores. Mesmo até pela crença do fim do mundo… Seria então esse o tal castigo divino que um dia teria que se abater sobre um povo pecador? O mesmo cenário quase que se repetiu em 1967: Luanda foi de novo sitiada por um grande temporal, se bem que com menores consequências. Nenhum dos dois submergiu Luanda. A minha cidade de adopção resistiu aos dois feitiços caídos do Céu…

 

  1. Quer dizer que as chuvas não são invenção dos tempos que hoje correm. Muito menos as enxurradas. Mas, também é verdade que a desculpa que hoje se encontra para justificar este estado de coisas é uma desculpa muito esfarrapada. Dizem alguns: “Isso só acontece porque a cidade cresceu de forma desmesurada…”; “A nossa cidade não foi dimensionada para tanta gente…”. É mentira, tudo isso não colhe porque, de um modo geral, todas as cidades crescem, e em todos os países.

 

  1. Os processos de urbanização são um fenómeno natural na vida das comunidades. O que se vem passado, porém, entre nós, é que não estamos face a um processo de urbanização normal e controlado, um processo de urbanização fruto do desenvolvimento económico e social.

 

  1. A nossa cidade vem crescendo de um modo desorganizado. O processo de urbanização em Angola em geral, e em Luanda em particular é, sobretudo, fruto de um êxodo rural que tem uma origem na guerra. Mas é igualmente o resultado de políticas públicas mal concebidas e mal executadas.

 

  1. O êxodo rural que assola Luanda é, tipicamente, “terceiro-mundista”, e parece não ter fim à vista, dada a persistência de políticas públicas que ainda só atendem e privilegiam alguns habitantes das cidades. Cada vez mais, nas cidades e, sobretudo, em Luanda, se vêem novas e atraentes realizações, que se transformam em verdadeiras “miragens” para quem vive no interior. Por isso, o interior almeja, justamente, vir para a capital com o desejo de também puder beneficiar do “sonho de Luanda”. Como resultado, milhões de entre nós, acotovelamo-nos na periferia.

 

  1. E, como a cidade necessita de crescer para albergar a crescente classe média, desenvolve-se um processo de desalojamento – não poucas vezes, com o recurso à força – para se dar espaço à construção de novos condomínios. Esta lógica dos condomínios, tal como existem entre nós, é ela também demasiado “terceiro-mundista”. É um fruto amargo da exclusão social e é geradora de exclusão social.

 

  1. Nas periferias, deixou de haver espaço para o escoamento das águas pluviais. Todo o espaço que ainda existia foi tomado por mais “casebres”. E o que antigamente eram os quintais para dar qualidade de vida aos habitantes das casas, passou à condição de verdadeiros “bairros”, onde as pessoas se acotovelam em busca do seu pequeno e desconfortável abrigo.

 

  1. Hoje, cada quintal inclui mais 2 ou 3 anexos que, por sua vez, crescem em compartimentos, para acolherem toda a gente que procura um tecto para morar. E as ruas da periferia viraram becos, becos pequenos que só dão para passar uma pessoa – e, em muitos casos, quase que de gatas, para não bater com a cabeça no tecto. Porque há sempre um pequeno espaço onde se pode plantar mais alguma coisa… Tudo isso conduz ao caos.

 

  1. O caos é o acúmulo de gente em pequenos espaços insalubres. É o lixo que se transforma num companheiro permanente e indesejável de quem vive na periferia. São as poças de água que viram piscina das crianças da periferia, onde também se lança o lixo e os dejectos. A imundice. A podridão toma conta da vida dos pobres. Depois, vem o paludismo, as diarreias, a tuberculose. A alta mortalidade, sobretudo, a infantil, tem aí uma das suas principais causas.

 

  1. A criminalidade juvenil, a violência doméstica casam bem em todo esse ambiente. Dão-se bem com a falta de iluminação, com a estreiteza dos becos, com a promiscuidade de toda ordem. Não dá, pois, para falar apenas da chuva. Há, entre nós, muitas outras chuvas que chocam, que matam, mesmo que seja de forma lenta: a chuva da miséria, da malnutrição, da violência permanente nos bairros pobres que só são objecto de atenção quando se aproxima o tempo do voto.

 

  1. Nos países mais ricos e mais organizados, por vezes, a chuva que cai do Céu também se transforma em preocupação. Não é toda a chuva, como aqui entre nós – é apenas alguma, a chuva que vem quando São Pedro abre as comportas… Mas, aqui entre nós, qualquer chuvisco, mesmo tímido ou envergonhado, preocupa, perturba, e até mata. Esse é que é o nosso problema.

 

  1. Tem, pois, que haver uma solução. A solução é acabar com a desorganização que aprofunda a pobreza e que expõe os pobres a todas as contingências… Pelo menos a pobreza extrema, que até nos envergonha.

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