A MINHA FAMÍLIA PERDEU O SEU PATRIARCA
- Na Antiguidade, a
expressão “Patriarca” reportava-se ao Chefe de uma Família ou de uma Tribo.
É assim que, por exemplo, foi realçado o papel de Abraão, de Isaac e de Jacob
na formação da Nação Judaica. São, ainda hoje, assim referenciados os
Chefes das Igrejas Cristãs do Oriente, da Igreja Ortodoxa Grega, etc. O
Patriarca é, pois, uma figura referencial e reverenciada.
- Em muitas famílias
angolanas, sobretudo, nas mais tradicionais, há quase sempre alguém que
assume um papel preponderante, colocando-se numa posição de merecido
respeito e consideração. Pela conjugação de um conjunto de circunstâncias,
dá-se-lhe, pois, uma maior atenção, ouvem-se mais atentamente os seus conselhos
e as suas considerações.
- Na verdade, para
nós, o Patriarca é um líder informal, alguém que é investido de um poder
de influência não suportado em qualquer lei ou dispositivo normativa. O
Patriarca é um símbolo de unidade e torna-se, por isso, o garante da
continuidade dos valores, princípios e regras prevalecentes dentro da
família.
- Entre os Pinto de
Andrade (numa perspectiva extensa), atribuímos esse título honorífico à
pessoa de Bento Falcão Pinto de Andrade – sempre tratado com enorme
respeito e carinho: para uns, o “Mano Bentinho”; para outros, o “Tio
Bentinho”; ou o “Primo Bentinho”; ou ainda o “Avô Bentinho”.
- O meu “Primo
Bentinho” – agora falecido – impôs-se perante todos nós, pelo modo peculiar
como aliou a sabedoria e a inteligência à elegância e à finura no trato.
Ele concentrou uma dose elevada dessas características que se disseminavam,
ainda, pelos restantes irmãos e irmãs. De todos os irmãos, o “Primo Bentinho”
– irmão do Mário Pinto de Andrade e do Joaquim Pinto de Andrade, para só falar
destes dois mais destacados – foi o que teve uma vida menos atribulada.
- O Mário e o Joaquim seguiram
rumos talvez mais complicados. Coube aos dois irem estudar para a Europa.
Depois, seguiu-se um longo exílio – no caso do Mário – e as sucessivas prisões
do Joaquim. Pelo seu percurso de vida, tornaram-se verdadeiros esteios do
nacionalismo angolano moderno.
- O Bento Falcão, o
Joaquim e o Mário eram filhos do meu tio José Cristino Pinto de Andrade,
homem grande da sua época e um dos fundadores da Liga Nacional Africana,
em 1930.
- Na minha família, o
associativismo – seja de carácter cívico ou político – quase posso dizer
que tem carácter genético, e tornou-se mesmo indissociável da nossa
existência. Ele impulsiona-nos e dificilmente sucumbe perante circunstâncias
adversas.
- O meu tio José
Cristino Pinto de Andrade fundou a Liga Nacional Africana juntamente com
Gervásio Ferreira Viana – pai do Gentil Viana – Manuel Inácio Torres
Vieira Dias, Sebastião José da Costa, António de Assis Júnior, José Vieira
Dias, Fernando Torres Vieira Dias, Lucrécio Africano de Carvalho e Aurélio
Neves. Está aqui,, pois, um ilustre “naipe” de figuras grandes da nossa
sociedade, merecidamente consagrados como precursores do nacionalismo
angolano moderno.
- Esses fundadores da
Liga Nacional Africana tinham, ainda, uma forte vocação pan-africanista,
ao pretenderem unir num mesmo laço cultural, desportivo e recreativo os
distintos africanos do Cairo ao Cabo. Isso pode explicar a designação que
escolheram para a sua agremiação: Liga Nacional Africana. Afinal, o
prenúncio de uma ideia de Unidade Africana.
- O meu primo Bento
Falcão Pinto de Andrade, agora falecido, e os seus irmãos – o Mário e o
Joaquim – acompanharam o germinar da semente associativista e
proto-nacionalista lançada por aquela geração de homens grandes e que
inspirou também outros homens grandes da nossa história moderna, como
Viriato da Cruz, Lúcio Lara, Hugo de Menezes, Eduardo Macedo dos Santos, Agostinho
Neto.
- Todos aqueles “Mais
Velhos”, mais estes últimos, e as gerações que se lhes seguiram, entre as
quais a minha, partimos de exercícios de afirmação da nossa identidade
cultural para formas mais avançadas de luta, na busca do caminho que nos
conduziria à completa autodeterminação.
- Aprendi com a minha
mãe, que os ilustres antepassados da geração do Mário e do Viriato
cultivavam, sobretudo, o gosto pela leitura, pelo saber, mas tinham,
também, forte apego ao debate epistolar. Foram cultores dessa forma original
de debate contraditório de ideias, ao seu tempo, um expediente para o
aperfeiçoamento da sua cultura democrática.
- O meu “Primo
Bentinho”, o Bento Falcão Pinto de Andrade, sempre nos manifestou a sua
elevada estima pelo meu pai e seu tio, Justino Pinto de Andrade, a quem
atribuía a maior responsabilidade no seu tirocínio democrático. E fazia-o
nos seguintes termos: “Não foi nos livros que eu aprendi os fundamentos da
Democracia. Foi com o meu Tio Justino!”. Uma frase que nos enchia de
orgulho, nós que perdemos o nosso pai muito prematuramente.
- O debate democrático
morou entre as nossas antigas elites culturais, ao ponto de, em 1948,
Viriato da Cruz ter caracterizado da seguinte forma os objectivos do
movimento cultural, o “Vamos Descobrir Angola”, de que se tornou o mais
lídimo representante: “Queremos reavivar o espírito combatente dos
escritores do fim do século XIX, de Fontes [José Fontes Pereira] e dos
homens que compuseram “A Voz de Angola Clamando no Deserto”.
- Pena, sim, que os
projectos totalitários que se seguiram tenham quebrado essa linha de
intervenção cívica e política dos nossos antepassados. Mas, agora, a Nação
já se vai, felizmente, renovando, vai saindo, aos poucos, da nova “noite
grávida de punhais” – como caracterizou Mário Pinto de Andrade os últimos
anos do período colonial – sobretudo pelo esforço e abnegação de uns
poucos temerários que um dia a história consagrará…
- Com o
desaparecimento físico do meu “Primo Bentinho” quase que dou por expirada
uma linhagem de gente de boa cepa que inspirou os meus passos… Sou-lhes
muito grato pelo que hoje sou.
- Aos 96 anos, o nosso
Patriarca sucumbiu perante a força invencível da morte. Durante algum
tempo, estaremos nós quase sem rumo… Até que se afirme um novo Patriarca…
Esse novo Patriarca sempre existiu. Justino Feltro Pinto de Andrade, de seu nome. Primo Bento descansa em Paz!
ResponderEliminarLegal
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