segunda-feira, 10 de março de 2014

CONFLITOS MODERNOS COM RAÍZES ANCESTRAIS


1.  Nos últimos dias, as atenções mundiais viraram-se para a Ucrânia, tendo-se logo de seguida centrado mais na disputa feroz que opõe, na Península da Crimeia, as novas autoridades ucranianas ao poder instalado na Rússia.


2.  Com isso, relegou-se para um plano secundário quer os desenvolvimentos da guerra na Síria, o impasse nas conversações tendentes a pôr termo ao conflito israelo-palestiniano, ou mesmo a degradação da situação em determinados países africanos, com maior acento na República Centro-Africana. A Ucrânia e a Crimeia concentram sobre si todos os holofotes. E é deles que aqui e agora me proponho abordar.

 
3.  Fisicamente, a Península da Crimeia é uma continuação do território da Ucrânia, a quem se liga pelo chamado Istmo de Perekop. Está estrategicamente localizada no Mar Negro, dando, pelo Estreito de Kerch, igualmente acesso Mar de Azov. Pelo Estreito de Kerch tem-se acesso à Península de Taman, esta já em território russo.

 
4.  O contacto com a história remota – e mesmo a história mais recente da Península da Crimeia – mostra-nos o quanto ela tem sido importante na geo-estratégia daquela parte do mundo, muito próxima do Mediterrâneo. A Península da Crimeia foi disputada por gregos, romanos, pelo Império Bizantino, pelos Mongóis, pelos russos, também pelas principais potências europeias. A história da Península da Crimeia está, por isso, demasiado marcada por invasões, por anexações, desanexações e, para cúmulo, por deportações massivas de partes das suas populações.

 
5.  Essa mistura de dramas tem uma grande quota de responsabilidade no actual quadro demográfico da Península da Crimeia, onde coabitam populações etnicamente identificadas com a Rússia, com a Ucrânia, com a Bielo-Rússia, com a Turquia, com a Arménia.


6.  Em 1944, Joseph Stalin promoveu a deportação em massa da população tártara de Crimeia, estimando-se que apenas metade deles tenha sobrevivido às agruras que lhe foram impostas. Em contrapartida, Stalin estimulou o povoamento do território da Crimeia por cidadãos russos. Os tártaros só puderam regressar após a queda do Império Soviético – ficando, assim, em minoria face aos russos.


7.  Até 1954, a Crimeia esteve anexada à República Socialista Soviética da Rússia, altura em que foi devolvida à República Socialista Soviética da Ucrânia, por determinação de Khruschov.


8.  O Fim da União Soviética permitiu que a Crimeia se assumisse inicialmente como um República independente, optando, de seguida, por se tornar uma região semi-autónoma dentro da Ucrânia, com o seu próprio corpo legislativo, um poder executivo, com a justiça, porém, a depender directamente do poder central ucraniano.


9.  A presença da Frota Russa do Mar Negro em Sebastopol, aliada à enorme percentagem de cidadãos etnicamente russos, condiciona o actual quadro político-militar na Península da Crimeia, tornando-o favorável aos actuais interesses de Putin e do poder que ele representa.


10.                  Mas a importância da Ucrânia e da Crimeia para a Rússia não decorre apenas da vertente militar e étnica. Ela advém, igualmente, do facto de ser uma zona de enorme potencial para a produção de bens alimentares, ser a Crimeia um pólo de desenvolvimento turístico excepcional – pelas condições climáticas que possui – sendo ainda a Ucrânia uma passagem obrigatória para boa parte do gás natural que a Rússia fornece à Europa Ocidental.


11.                  Devo realçar o facto de o actual confronto prevalecente naquela região ser ainda a manifestação de um conflito marcadamente político-ideológico, opondo os anseios de uma boa parte da população ucraniana – especialmente a que vive na parte ocidental do território – que se identifica com o modelo político democrático, enquanto que as populações etnicamente russas estão ideologicamente mais identificadas com o modelo autoritário que vigora na Rússia em muitas das antigas Repúblicas Soviéticas.

 
12.                  Há, pois, na análise da questão ucraniana e, também, no caso específico da Península da Crimeia, que atender às diversas dimensões desse complexo problema, onde ainda pairam vestígios da história misturados com interesses militares e económicos presentes, sem menosprezar as opções ideológicas e politicas das populações.

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