segunda-feira, 10 de março de 2014

ALGUNS FLAXES DE MEMÓRIA


  1. Aproxima-se a data comemorativa dos 40 anos do “25 de Abril em Portugal”, etapa histórica que marcou uma viragem democrática na vida daquele país irmão e que se tornou, igualmente, referencial para os povos das suas antigas colónias.

  1. Por norma, quando caminhamos para esse dia, aproveito fazer um pequeno “replay” à minha memória, revelando recordações que marcaram a minha vida e ajudaram a moldar a personalidade que hoje tenho.

  1. Ao contrário do que acontece com algumas pessoas que conheço, a lembrança das situações menos boas que vivi não me inspira algum ódio ou vontade de “revanche”. Os maus momentos da vida funcionam como que estações de rápida passagem… Fazem-me apenas recordar factos marcantes e revisitar pessoas com quem convivi e com quem irmanei causas e objectivos.

  1. Esta manhã, vivi mais um desses dias em que reavivei a memória. Fui estimulado pela entrevista que concedi a uma estação de rádio portuguesa, na preparação de um trabalho de fundo, em homenagem aos 40 anos do “25 de Abril em Portugal”.

  1. Entre outras questões, quem me entrevistou quis saber das motivações subjectivas que estiveram na base da minha precoce tomada de posição contra o colonialismo português.

  1. Saltou à minha memória, e de imediato, a imagem dos primeiros contactos negativos com as autoridades portuguesas – ia eu ainda nos verdes 13 anos de idade:

i)                   A invasão da minha casa pela tropa portuguesa, sob suspeita de termos escondido ditos “terroristas”;

ii)                Uma rusga em que fui levado para a concentração no quintalão do Hospital de São Paulo, e misturado com outros “suspeitos”;

iii)              Um tenebroso espectáculo a que assisti – o abate a tiro de um cidadão que, inadvertidamente, desobedeceu a uma ordem de paragem dada pelos cipaios dos portugueses (força repressiva auxiliar constituída por africanos);

iv)              Outras rusgas indiscriminadas, bem junto à minha casa, com os homens rusgados colocados em posição incómoda e humilhante;

v)                O assalto à Cadeia de São Paulo protagonizado pelos nacionalistas do dia “4 de Fevereiro”;

vi)              O assassinato do meu tio Carlos Costa – irmão mais novo da minha mãe – às mãos de alguns portugueses. O meu tio Carlos trabalhava na Igreja dos Remédios com o Cónego Manuel das Neves. Pode ter sido uma consequência…

 

  1. A isso juntaram-se à minha memória outros factos memoráveis dessa época:

 

i)                   O ambiente social e político – muitas vezes disfarçado de cultural – que fui acompanhando na companhia da minha mãe, por exemplo, aquando da campanha eleitoral de 1958 com a figura empolgante do General Humberto Delgado a desafiar Salazar e o seu regime;

ii)                As prisões políticas que se celebrizaram com o nome de “Processo de 50”;

iii)              A prisão e deportação do Dr. Agostinho Neto e do Padre Dr. Joaquim Pinto de Andrade;

iv)              A prisão dos também meus primos Mário Guerra e Pedro Trindade Aleixo da Palma;

v)                Os relatos sobre o “Massacre da Baixa de Cassanje”.

 

  1. Todo esse conjunto de factos constituiu o berço que embalou a minha consciência cívica, política e nacionalista. Na realidade, sou uma testemunha viva de um dos períodos mais emocionantes dessa parte da nossa história. Não foi, pois, por um mero acaso que, poucos anos depois desses acontecimentos, já me encontrava a conspirar, de um modo organizado, contra a presença colonial.

  1. De modo algum, sou o fruto de um qualquer impulso momentâneo, nem o reflexo de uma opção eventualmente irreflectida. O meu posicionamento face à circunstância histórica e o percurso que se seguiu decorreu, naturalmente, sem sobressaltos nem precipitações – mesmo que me tenha tornado um actor demasiado precoce.

  1. Quem me entrevistou procurava o testemunho de um protagonista africano, para ilustrar o seu trabalho sobre o papel da PIDE, a polícia política portuguesa que se extinguiu com a queda crepitosa do regime fascista e colonialista de Salazar e Caetano. Penso que lhe facilitei a tarefa, rememorando esses e outros factos, sem emoções e sempre pautado pelo equilíbrio e pela necessidade de fazer justiça histórica. Revelei-lhe outros episódios que vivi, quer na Cadeia de São Paulo, quer também no Tarrafal.

  1. À sua pergunta do porquê de eu não evidenciar qualquer sentimento de ódio para com aqueles que me prenderam, respondi ser-me muito fácil não alimentar ódio dentro de mim. Encarei a luta política como um jogo onde todos os actores desempenham o seu papel, cada um defendendo aquilo em que acredita.

  1. Eu sempre acreditei nos valores da liberdade e da justiça. Os colonialistas e os fascistas acreditavam nas suas regras, nos seus valores e princípios, que eram diametralmente opostos aos meus. No final de todo aquele drama – mesmo que com algumas mazelas na minha saúde – eu saí vencedor, juntamente com todos os que comungaram as minhas causas.

  1. O trabalho jornalístico de que me tornei acidentalmente parte, terá por título “No Limite da Dor…”. E isso motivou a minha entrevistadora a culminar a reportagem querendo saber o seguinte: “Afinal, que dor eu guardava ainda dentro de mim?”.

A resposta saiu-me fácil e rápida: “A dor pelo facto de muitos daqueles que partilharam comigo o mesmo sonho, e que saíram vivos da cadeia, não terem tido essa mesma ventura, quando fomos novamente encarcerados…”. É evidente que esse é já um outro episódio, fora dos limites da memória da PIDE. Trata-se, afinal, de uma dor com outros contornos, e com outros actores…

1 comentário:

  1. Ouvi a entrevista que concedeu à Antena Um para o programa "No limite da dor". Felizmente, que a revolução do 25 de Abril em Portugal, liquidou a ditadura e deu a nós, portugueses, e aos africanos colonizados por Portugal, a liberdade, a democracia e o fim das guerras coloniais. Foi um belo programa que passou na rádio Antena Um; é de arrepiar o testemunho de antigos presos políticos da Pide.
    Pena que, as gerações mais novas, não dêem valor à liberdade que tanto custou a conquistar. Obrigado senhor dr. pelo seu testemunho e pela sua coragem na luta pelo ideal em que sempre acreditou.
    Ps: sou português, leitor do seu e de outros blogs de angolanos, leio tudo que fale de Angola, nunca vivi em África, mas adoro especialmente Angola. Porquê? Não sei, nada me liga a Angola, mas que gosto,gosto.

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