segunda-feira, 10 de março de 2014

HENRIQUE GUERRA E “O TOCADOR DE QUISSANJE”


1.    Henrique Lopes Guerra nasceu em Luanda, em 1937, filho de Francisco Lopes Guerra e da minha tia Merciana Pinto de Andrade. Formou-se em Engenharia Civil e foi professor na Universidade Agostinho Neto, entre os anos 1978 e 1982. Trabalhou na SONEFE e, posteriormente, até 2009, no GAMEK (Gabinete de Aproveitamento do Médio Kwanza), nas fases de estudo, construção e entrada em funcionamento da Barragem de Capanda.

 

2.    Inicialmente, os jornais e as revistas foram os espaços aproveitados pelos escritores angolanos (também, os das restantes colónias portuguesas), para exporem os seus talentos e as suas ideias. Foi, assim, com o benguelense José da Silva Maia Ferreira, ao publicar na “África Lusófona”, em 1849, “Espontaneidades da minha alma – As senhoras africanas”, aquele que é por muitos considerado o primeiro livro de poemas de um escritor angolano.

 

3.    Segundo os estudiosos da matéria, a então incipiente literatura angolana é mais ou menos coincidente com a emergência de uma burguesia angolana resultante do desenvolvimento de uma nova economia, já não mais baseada no tráfico de escravos para o Brasil – que começou a ser bastante reduzido a partir de 1836 – mas, sim, em outras actividades económicas, fundamentalmente, na agricultura e no comércio.

 

4.    Foi assim, também, com o jornalista, escritor e advogado de origem portuguesa, Alfredo Trony, ilustre criador da novela “Nga Mutúri”, hoje justamente tido como um dos precursores da literatura angolana, pela forma rigorosa como retratou aquela época da vida de Luanda.

 

5.    Alfredo Trony viveu muitos anos em Luanda, onde faleceu em 1904. Fundou em Luanda o periódico “Jornal de Luanda”, em 1878, também o “Mukuarimi”, em 1888, e, segundo se diz, terá também fundado o periódico “Conselhos do Leste”, em 1891.

 

6.    Foi ainda assim, com o também jornalista Pedro Félix Machado – cultor da prosa de ficção – ao publicar em folhetim, na “Gazeta de Portugal”, a primeira edição da sua novela “Scenas d’África”, reeditado em 1882. Será dele, igualmente, o livro de sonetos “Sorrisos e Desalentos”, entre outros escritos.

 

7.    A instalação do prelo em Angola data de 1845, com o surgimento do Boletim Oficial – 400 anos após a invenção da impressão gráfica por Gutemberg. Esse foi o ponto de partida para o aparecimento de outras publicações periódicas, inicialmente mais frequentadas pelas elites europeias instaladas em Angola, que os utilizavam para defenderem os seus interesses nem sempre coincidentes com os da Metrópole.

 

8.    Alguns africanos participaram também nesses periódicos, sem, contudo, que eles perdessem a sua característica essencial: a defesa dos interesses económicos e administrativos da Colónia, a luta contra a escravatura e contra as arbitrariedades praticadas por algumas das autoridades.

 

9.    Alguns dos primeiros periodistas africanos tiveram o cuidado de escrever também em Kimbundu, dando assim um outro tom ao periodismo angolano. Que se saiba, o primeiro periódico editado por africanos foi o “Hecho de Angola”, em 1881. Seguiram-se outros, como “O Futuro de Angola”, de 1882; “O Farol do Povo”, de 1883; “O Arauto Africano”, de 1889; “O Serão”, de 1886; “O Desastre”, de 1889. E outros.

 

10.                      Foi no “O Farol do Povo” e no “O Arauto Africano” que se destacou o prolixo e muito polivalente intelectual angolano, natural do Icolo e Bengo, Cordeiro da Matta, autor do primeiro dicionário de kimbundu, “Ensaio de Dicionário de Escrita” – língua de que era exímio cultor.

 

11.                      Henrique Guerra não escapou a essa tradição vinda do século XIX, dispersando, também ele, escritos por revistas e por jornais. Foi assim que, entre 1956 e 1963, HG escreveu na revista “Cultura”, editada pela “Sociedade Cultural de Angola”; no boletim “Mensagem”, editado pela “Casa dos Estudantes do Império”; no “Jornal de Angola”, editado pela “Associação dos Naturais de Angola”; e no vespertino luandense, “ABC”, seguramente, do ambiente colonial, o mais independente de todos quantos circulavam na época. Também publicou no boletim “Angola”, da “Liga Nacional Africana”, já em 1974, assim como na gazeta “Lavra & Oficina”, da “União dos Escritores Angolanos”.

 

12.                      Muitos dos escritos de HG passaram a figurar em diversas antologias, como “Na Noite Grávida de Punhais – Antologia temática de poesia africana”, compilada por Mário Pinto de Andrade; na “Literatura africana de expressão portuguesa”, de 1970, também compilada por Mário Pinto de Andrade; “No Reino de Caliban – antologia panorâmica da literatura africana de expressão portuguesa”, compilada pelo Professor Manuel Ferreira; em “Poesia de Angola”, compilada pela Professora Irene Guerra Marques. Ainda, entre outras, na recente antologia compilada por Adriano Botelho de Vasconcelos, com o título “Todos os sonhos – antologia de poesia moderna angolana”.

 

13.                      A obra de António de Assis Júnior, “O Segredo da Morta” é um marco histórico-literário da ficção angolana. Foi publicada em 1929, em folhetins, no jornal “A Vanguarda de Luanda”, e reeditada em 1935, pela tipografia “A Lusitana”. Henrique Guerra teve a oportunidade de prefaciar a última reedição dessa obra de Assis Júnior, dada à estampa pela União dos Escritores Angolanos. Nesse Prefácio, HG designa o período literário que vai de 1910 a 1940, como um período de “quase não-literatura”, tal o vazio que então se instalou na produção literária angolana.

 

14.                      Tento, por vezes, perceber o porquê desse vazio que se instalou na produção literária angolana: a violência que acompanhou o período da ocupação militar do território angolano por parte dos portugueses; a 1ª Guerra Mundial; o período entre as duas Guerras Mundiais e, sobretudo, a germinação do fascismo, com toda a sua intolerância.

 

15.                      A partir de 1940, a produção literária angolano ganhou novo impulso com o surgimento de mais revistas, graças também ao protagonismo de dois grupos referenciais: o chamado “Movimento dos Jovens Intelectuais” e os autores que tiveram como Lema “Vamos descobrir Angola”.

 

16.                      Porquê, então, esse reacender da veia literária em Angola? Talvez fruto do novo tipo de imigração que o fascismo produziu, com a deportação para Angola de muitos dos que se lhe opunham em Portugal; também pela emergência dos ideais de justiça e liberdade que se seguiram ao desenvolvimento dos processos de autodeterminação dos povos asiáticos e caribenhos que impactaram sobre as nossas jovens elites intelectuais.

 

17.                      Em 1950, aparece no quadro intelectual angolano a “Antologia dos novos poetas de Angola”, seguindo-se a revista “Mensagem”, de efémera duração (1951/1952). Mesmo assim, aqui despontam figuras como Agostinho Neto, Alda Lara, António Jacinto, António Cardoso, Antero Abreu, Mário António Fernandes de Oliveira, Mário de Andrade, Viriato da Cruz, Óscar Ribas.

 

18.                      Vem, depois, a revista “Cultura II” (1957/1961), participada por alguns elementos da “Mensagem” e por outros intelectuais apostados numa estratégia conducente à definição de uma verdadeira identidade nacional. Agrupam-se aí, de novo, Agostinho Neto, Óscar Ribas, Antero Abreu, mas, também, Mário Guerra, Henrique Guerra, Carlos Ervedosa, Costa Andrade, Luandino Vieira, e outros.

 

19.                      Em 1962, sendo ainda Alferes Miliciano, Henrique Guerra publicou na então “Colecção Imbondeiro”, um livro de contos sob o título “A Cubata Solitária”. Depois, seguiu-se um longo período de oito anos e meio de prisão, nas cadeias portuguesas de Aljube, Caxias e Peniche, de onde só saiu em 1973.

 

20.                      Por altura da Independência, em 1975, publicou o ensaio “Angola – Estrutura Económica e Classes Sociais”. No ano seguinte, deu à estampa “Quando me Acontece Poesia”; em 1977, “Alguns Poemas”, nos Cadernos “Lavra & Oficina”, da UEA; em 1979, sai da sua pena a peça de teatro “O Círculo de Giz de Bombô”; fez ainda sair, em verso e prosa, em 1982, baseando-se na tradição oral, a obra “Três Histórias Populares”. Henrique Guerra é autor de diversos estudos sobre Literatura Angolana do séc. XIX.

 

21.                      Em 1979, o Professor Manuel Ferreira publicou uma obra intitulada “África: Literatura. Arte. Cultura”, onde inseriu dois capítulos de um texto inédito de Henrique Guerra, escrito em 1961, intitulado “Lípu – Kua – Púkua”.

 

22.                      O seu ensaio sobre a economia da Angola nos últimos anos da ocupação portuguesa, “Angola – Estrutura Económica e Classes Sociais “, foi escrito no período em que estava na cadeia, em Portugal (1964/1973), e é frequentemente referido com uma obra essencial para a compreensão do fenómeno económico e social daquela época.

 

23.                      Henrique Guerra tem sido um associativista por natureza. Ele participou na fundação da União dos Escritores Angolanos, onde exerceu o cargo de Secretário para as Actividades Culturais. Participou, igualmente, na fundação da União Nacional dos Artistas Plásticos de Angola (UNAP), de que foi Presidente da Direcção em duas Comissões Directivas (1984 e 1988). Como artista plástico ganhou dois prémios de desenho e pintura (1955 e 1958) e foi Secretário-Geral da Associação Bantu dos Artistas Plásticos (1985).

 

24.                      Em 2013, o escritor Henrique Guerra foi distinguido pelo Ministério da Cultura de Angola com um Diploma de Mérito, pelo seu contributo para a valorização da literatura angolana desde a “Geração da Mensagem”, e pelo seu trabalho de investigação no campo da literatura tradicional e o seu envolvimento em outros domínios da cultura nacional. A Ministra da Cultura, Rosa Cruz e Silva, fez questão de reconhecer a dívida que até então persistia para com Henrique Lopes Guerra.

 

25.                      A presente obra de Henrique Guerra, “O Tocador de Quissanje” é um conjunto de 6 contos, escolhidos de um caderno escrito no início dos anos sessenta e guardado durante décadas pelo seu amigo, Cândido da Velha. São vivências tiradas dentro de si, e que o autor publica pela primeira vez. São, pois, inéditos.

 

26.                      Ele também nos diz que, daquele caderno, escolheu alguns escritos, fez a sua revisão e publica-os agora, não como uma visão crítica da época colonial, mas como um marco do seu percurso que o transformou naquilo que ele é.

 

27.                      Digo eu, agora: o Henrique Guerra tem a obrigação histórica e intelectual de rever e publicar os restantes escritos que foram retirados do fundo do baú do seu amigo. Com estes hoje apresentados e com os restantes, a literatura angolana ficará, seguramente, mais enriquecida, tal é a valia da sua narrativa.

 

28.                       Transcrevo aqui um extracto do rico Prefácio desta obra, escrito pela Irene Guerra Marques e que vem destacado na contracapa:

 

O Tocador de Quissanje, obra que engloba um conjunto de seis contos, constitui uma galeria de quadros sugestivos, onde a realidade colonial angolana, com todos os seus contrastes e contradições se vai vislumbrando, descobrindo, transportando-nos quase para universos cinematográficos, sonhados em sequências feitas de planos milimetricamente enquadrados, onde paletas de cores se misturam com sons e pautas de músicas, subtilmente montados, ora por elipses, ora encadeados”.

 

29.                      No seu conto, “Josefo Camalata”, HG retrata um dos aspectos que acompanhou o processo de expansão dos povos ovimbundu cada vez mais para o sul do nosso território, praticando, inclusive, o roubo do gado dos povos oxikwanyama e mumwila. Esse foi não só um profundo fenómeno económico, mas, também, um não menos importante fenómeno de miscigenação cultural, de onde não escapa, naturalmente, o contributo dos portugueses. O exemplo mais emblemático é a figura de Josefo Camalata, como diz, a propósito, Irene Guerra Marques: “… um mulato situado entre dois mundos e várias culturas: a kwanyama, a ovimbundu e a portuguesa, o que lhe permite posicionar-se numas e noutras sem quaisquer constrangimentos.”

 

30.                      Mas a obra de HG contém ainda o “Mulengue”, que pinta o processo de transformação de um local da sua infância e juventude, ainda com grandes quintalões de aduelas e as suas ruas de barro vermelho, onde existiu o Musseque Braga e surgiu o Bairro do Café – este já um produto do surgimento de uma nova fonte de riqueza, com o afastamento cada vez mais acelerado das famílias africanas, remetidas para as periferias da cidade. Nandinho é a expressão desse processo de exclusão social, vendo cada vez mais limitados os seus passos.

 

31.                      Adorei ler “A Caçada”. É escrito por HG quase que misturando a sua sensibilidade de escritor com a de artista plástico. “… Inesperadamente, vinda dos lados da mata, uma queimada começou a lamber a terra, avançando rapidamente em nossa direcção, como um grande rolo compressor.” HG posiciona-se neste conto como narrador e protagonista, retratando uma das suas vivências, ainda jovem, como topógrafo, numa das suas actividades no interior do país.

 

32.                      No Prefácio, Irene Guerra Marques assinala: “De repente, no mural, descubro duas imagens distintas, mas de grande intensidade: a grande palanca “que num salto magnífico eleva-se no ar, ultrapassa as redes e ganha a liberdade” e o exército fantasma de “”mulheres velhas e carcomidas, que sofregamente começam a cavar buracos, buscando os seus manjares (…) ratos mortos, tributo que a vida concedia à sua miserável condição de velhas””.

 

33.                      O livro começa com o curto conto que lhe deu o título: “O Tocador de Quissanje”. Neste conto, sobressai, em prosa, a alma poética do autor, pintando, em letras de múltiplas cores, o lindo quadro do feliz encontro entre o transe melódico do tocador de quissanje e a natureza no seu percurso de lutas sem fim.

 

34.                      Finalmente, o “Kurika”, onde intervêm também a figura da Elisa e do Quinino, num triângulo de disputa amorosa que não termina como geralmente acontece… Nem o Kurika, nem o Quinino… Nesse conto, novamente, HG traça-nos um pouco da sua vivência, vislumbrando por detrás de um cenário de múltiplas emoções, não apenas a enorme mobilidade dos povos e culturas, mas, também, as sementes da revolta que estavam latentes na região da Baixa de Cassanje.

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